Lúcio Flávio de Almeida
Final de ano, examino o que se amontoou na caixa de mensagens deste estressado laptop e me deparo com esta mensagem. O título, Debate aberto, desperta minha atenção. O segundo parágrafo inicia-se com O Capital. Impossível não ler. Será uma esquerda anticapitalista? É um artigo do Flávio Aguiar, Do socialismo científico ao socialismo utópico publicado na Carta Maior de 15/12/2008 e repassado pela Carta O Berro. Claro que li. O objetivo do autor é recuperar a dimensão ética da luta contra o capitalismo, o que implica abandonar cientificidade de índole positivista colada no marxismo que nem masca de chiclete.
Ótimo, só que isto dá um trabalho danado, que exige muita leitura e releitura de textos espinhosos. Exatamente o oposto do que Aguiar recomenda, ao menos no que se refere a O capital. Utopias também possuem determinações de classe. Portanto, algumas, além de inevitáveis, são desejáveis. Desconfio das que, em nome do anticientificismo, excluem o conhecimento científico da sociedade que se pretende transformar. O texto do Flavio Aguiar não é aberto. É desqualificador, o que não chega a assustar no debate que em geral se trava o duplo sentido é intencional no interior das esquerdas. Naquele segundo parágrafo, Aguiar afirma que O Capital, de Karl Marx, compartilha com a Bíblia, além de questões de estilo, editoração, exegeses interpretativas e até propósitos um destino muito peculiar: é livro muito citado e pouco lido. Em nenhum momento o autor se dá ao trabalho de sequer insinuar uma demonstração deste compartilhamento de estilo e editoração pelas duas obras.
Nem explicita porque juntou aspectos cuja vinculação com a autoria, ao menos no caso de O capital, pode parecer óbvia, mas não é: o serem objetos de tantas exegeses interpretativas (sic) e pouco lidas. Quanto aos propósitos , nada entendi, mas é melhor deixar pra lá. Aguiar afirma que, na sua geração, poucos leram o primeiro livro dO capital e pouquíssimos foram além. Afinal, os livros dois e três, publicados postumamente com base no nobre esforço editorial de Engels (estará aí uma proximidade com a Bíblia?), são mais descosidos e de leitura mais árdua. Aguiar contentou-se com o opúsculo de Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico, que, admite, leu mal, de modo maniqueísta e linear. É neste texto parte de um livro maior, o Anti-Dühring que Aguiar centra suas considerações sobre a necessidade de se refundarem as bases de uma luta pelo socialismo.
Todavia, mesmo aqui, não é de todo descabida a suposição, a partir do que o próprio Aguiar declara, de que o articulista ainda tem muitas contas a acertar com a leitura de um texto de menor calibre polêmica e divulgação do que a principal obra teórica de Marx. Mas isso é assunto dele, que, aliás, mistura o tempo todo, sua trajetória pessoal, inclusive opções de leitura, com as formulações elaboradas por dois caras, Marx e Engels, que não têm muito a ver com isso. Quanto mais propostas para o avanço, em tempos muito difíceis, das lutas para mudar o mundo, melhor.
O lamentável é justamente agora, quando se manifesta uma ampla crise do capitalismo, desencorajar as pessoas, especialmente os jovens trabalhadores, de lerem O capital. Refundar as perspectivas de transformação social, e não apenas se preocupar com políticas neodesenvolvimentistas, exige muito trabalho, inclusive muito estudo. Neste caso, a leitura atenta e crítica dO capital é imprescindível. Enquanto escrevinho estes comentários, tenho ao meu lado um exemplar do opúsculo de Engels (Rio de Janeiro, Vitória, 1962), que utilizei em diversos grupos de estudo. Bate uma saudade gostosa. Hoje, boas edições de O capital estão disponíveis, despertam grande interesse e levam à formação de grupos de estudo bem mais numerosos. Recentemente, participei de uma experiência dessas na universidade onde trabalho.
Convidamos estudiosos para fazerem as conferências e dedicamos um semestre a cada livro. Diferentemente do que faz Aguiar, recomendo. O tempo ruge e vou mudar de assunto. Abraços, boas festas, muita garra e muito tino na difícil luta para que esta crise não deságüe em barbárie ainda maior.
Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida (professor; autor de Uma ilusão de desenvolvimento: nacionalismo e dominação burguesa nos anos JK. Florianópolis, EDUFSC, 2006).
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