A dimensão política da crise

Rui Falcão

Em artigo publicado pela Folha de S. Paulo (24/10/2008), Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e ex-secretário geral da Unctad, observa, a propósito da crise financeira, que “as análises falam de tudo, menos de moral e de política. Dão a impressão de que o problema se limita a aspectos técnicos, sem vinculação com os valores éticos e independentes das relações de poder”.

De fato, não há como compreender o colapso sem remontar à mudança na correlação de forças na sociedade, ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, entre grupos e classes dentro de cada país e entre estes e atores externos, mudança que acabou por conferir uma nova expressão institucional ao Estado. É dizer que a transferência de ativos e de capacidades de decisão do Estado para a iniciativa privada, a eliminação dos controles, a desregulamentação do trabalho, o desmantelamento da rede de proteção social, a contração do gasto público em políticas sociais, a redução de impostos sobre os ricos, a preeminência conferida à economia fictícia (financeira) sobre a economia real (da produção) – tudo isso se constitui em expressão de uma determinada modalidade de organização da vida econômica - agora em frangalhos geotectônicos -, somente compreensível à luz de uma nova relação entre Estado e mercado, resultante de um novo sistema de poder associado a ela.

Aí está a dimensão política da crise, de que fala Ricupero. Sem ela, não é possível compreender como nos Estados Unidos, por exemplo, a participação do setor financeiro no total dos lucros corporativos tenha saltado de 10% em 1980 para 40% em 2006, apesar de gerar apenas 5% dos empregos, enquanto a participação dos salários na renda nacional declinava. “Não se avança sobre quase metade dos lucros da economia sem contar com a cumplicidade do sistema político. A mudança de poder que abriu o caminho à hegemonia financeira foi, nesse período, a ‘revolução’ neoconservadora de Reagan e de Thatcher...”, acrescenta.

A nova configuração na distribuição e apropriação do excedente social somente se tornou possível mediante as profundas mudanças promovidas nas relações de poder na sociedade, e disso ela é expressão. O redesenho e o controle da rede institucional do Estado, que daí resultaram, postos a serviço do capital financeiro, expressam o que vem a ser o poder político em termos singelos – a capacidade de convencer ou obrigar os outros a fazer algo que não estava em sua intenção fazer, ou abster-se de algo que gostariam de fazer.

Isso se torna possível quando se concentram e mobilizam recursos de natureza variada, incluídos os de caráter econômico. Como resultado da mudança na distribuição e no uso dos recursos, mudam as relações entre indivíduos e grupos sociais, assim como mudam a sua posição relativa na hierarquia, a sua capacidade de ação e de imposição de objetivos e metas.

Eis a grande reestruturação, agora à beira do colapso, que gerou ganhadores e perdedores. Estes são fáceis de identificar na configuração política que resultou da redistribuição dos recursos em termos de eqüidade social e de poder sobre a máquina do Estado. Em primeiro lugar, o maior peso atribuído ao mercado pelos reformadores neoliberais implicou transferência de poder, das instituições do Estado para os atores que dele se apropriaram, com vistas a impedir que a sociedade, por mediação do Estado, lhes impusesse cobro no exercício da liberdade individual, concebida pelos neoconservadores como incompatível com toda e qualquer modalidade de controle e responsabilidade social – selvageria ideológica travestida de “empreendedorismo”, “capacidade de iniciativa”, “criatividade”, “inovação”.

Em segundo lugar, como resultado da preeminência dos interesses do mercado sobre a sociedade e o Estado, enfraqueceram-se os mecanismos de negociação, de organização e de mobilização dos movimentos sociais, já debilitados politicamente pela crise do desemprego e da estagnação econômica, que se agravava desde a segunda metade da década de 1970.

Além de propiciar o aumento da concentração da renda e a distribuição desigual dos custos e benefícios das políticas de recomposição das finanças públicas, o debilitamento do controle social sobre o Estado, em favor das elites neoconservadoras, provocou o esvaziamento das políticas sociais, que até então haviam caracterizado e legitimado a gestão pública, ainda que de eficácia incerta.

O discurso neoconservador, que passou a inculpar o Estado de Bem-Estar social pelos excessos distributivos do Estado - o mesmo Estado que durante 30 anos havia assegurado a estabilidade e o crescimento econômico revigorado por políticas sociais -, alcançou notável aceitação, graças à cooptação dos grandes meios de comunicação, em especial no caso do Brasil. Uma vez derrubado o muro de Berlim, os direitos sociais e a organização do trabalho, anteriormente brandidos como apanágio do mundo livre, passaram a ser estigmatizados em nome da democracia, da eficácia econômica e do livre mercado.

Na estratégia dos reformadores, o papel do Estado deveria restringir-se ao nível mínimo de provisão de bens públicos, estes interpretados em sentido restritivo. E, para desmantelar os instrumentos de intervenção, que haviam servido ao Estado de Bem-Estar, foi necessária uma prévia concentração de poderes decisórios em seu aparato institucional, imprescindível para impor a desregulamentação, a abertura e a entrega de funções essenciais do Estado à iniciativa privada; vencer as resistências democráticas em defesa do diálogo e da negociação e alterar o equilíbrio preexistente.

Para tanto, impunha-se a retração da gestão pública no terreno da economia e das políticas sociais, para confiar a execução da justiça distributiva à mão invisível do mercado. Somente assim, a mão neoconservadora pôde exercitar-se, depois de ter imposto a sua hegemonia no controle do Estado e de se ter apropriado de suas funções coercitivas, para a realização dos novos objetivos anti-sociais. De então em diante, caberia ao mercado, de modo excludente, na sua suposta condição soberana de matriz da riqueza, da eficiência e da justiça, promover a alocação dos recursos, distribuir bens, serviços e rendas e remunerar empenhos e engenhos.

A manifestação mais freqüente da ampliação da soberania estatal sob domínio neoliberal – ou seja, da ampliação da capacidade do Estado de impor decisões com autoridade suprema sobre a população e o território – foi a concentração do poder no âmbito do governo central, em especial o Poder Executivo, que passou a absorver prerrogativas do Parlamento, legislar por instrumentos de exceção ou de emergência, e dos tribunais. Truculência quando necessário – é o que exigia o teor anti-social das reformas.

Não se pode esquecer de que, entre outros botins, estava em jogo a disputa pela apropriação e controle de ingentes fundos sociais, como as contribuições dos sistemas de pensões e aposentadorias, sob gestão estatal. Por isso, os promotores das reformas, ao mesmo tempo em que festejavam a falência do totalitarismo soviético, lançavam mão de recursos extremos de concentração de poder.

Assim é que, enquanto na Argentina o presidente Carlos Menem recorria a medidas de exceção, como decretos de emergência, para entregar os fundos públicos da previdência à iniciativa privada, no Chile o general Augusto Pinochet, ao suspender os direitos democráticos e impor uma ditadura sangrenta, promovia a privatização radical do sistema previdenciário, cujo controle confiou às finanças internacionais.

A previdência social brasileira teria tido o mesmo destino, não fossem os movimentos sociais a barrar o intento do governo FHC de privatizá-la, motivo por que a reforma, entre nós, limitou-se a restaurar as finanças públicas sem que a mão do mercado pudesse apropriar-se da poupança dos trabalhadores, como prescreviam, a mando das finanças globais, o FMI e o Banco Mundial.

A diferença na qualidade dos resultados referentes às reformas da previdência colhem-se agora, no calor da crise financeira atual. A variação dos impactos da crise sobre o sistema previdenciário dos países da América Latina, entre outros, reflete a variação na capacidade de luta dos trabalhadores de cada um deles na defesa de seus interesses contra a voracidade neoliberal dos governantes associados à “mão invisível”. Assim, por exemplo, as perdas no valor dos fundos de aposentadoria chilenos, sob controle das finanças internacionais, que haviam atingido 25% em setembro, estão na iminência de ultrapassar 40% em outubro, enquanto na Argentina as perdas atingiram mais de 40%, o que levou o governo Kirchner a reestatizá-lo. Para não falar da Islândia, país modelo das reformas neolilberais, onde as perdas dos aposentados já ultrapassam 70%. Já no Brasil, graças à resistência dos trabalhadores contra as investidas privatizantes de FHC, as perdas são nulas.

A crise financeira, como lembra Ricupero, é de natureza política, gera ganhadores e perdedores e convida a uma nova distribuição de poder, que queremos menos desigual e mais eqüitativa, como condição para a estabilidade econômica, a expansão do emprego e o fortalecimento da democracia. Isso somente se assegura mediante a vigilância e a defesa da sociedade organizada contra as ameaças recorrentes de retorno dos neoliberais ao poder.

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Rui Falcão, 64 anos, advogado e jornalista, é deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores. Foi deputado federal, presidente do PT e secretário de governo na gestão no governo Marta Suplicy.

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