União Europeia ignora recomendação da UNESCO e cria Imposto CTT

A nova lei alfandegária da União Europeia, que deixou de isentar encomendas de valor inferior a 20€, vai contra a recomendação da UNESCO ao incluir livros e revistas e na prática criou em Portugal um imposto privado, que beneficia os CTT.

Flávio Gonçalves, Pravda.ru

Desde 1 de Julho que todas as encomendas extracomunitárias começaram a ser sujeitas a desalfandegamento, esta medida foi empurrada de cima para baixo por Bruxelas naquilo que não é mais que uma birra geopolítica que tem como principais objectivos afectar as pessoas que insistam em efectuar encomendas a empresas radicadas no Reino Unido, como vingançazinha pelo Brexit e, claro está, às várias plataformas low cost com sede na China e EUA.


Após pouco mais de uma década como promotor literário (soa melhor e é mais abrangente que crítico) em língua portuguesa, este ano dei o salto para o mercado de língua inglesa e fiquei surpreso por ficarem retidas na alfândega as encomendas com livros que recebo como ofertas promocionais de editoras britânicas e americanas, mais surpreso fiquei ainda ao constatar que revistas periódicas que assinava em formato físico foram também sujeitas a desalfandegamento.

O imposto CTT


Portanto, como o processo de desalfandegamento automático via portal dos CTT recusa o valor de 0,00€ para as encomendas – recordo que são ofertas promocionais – tive que pagar IVA sobre um valor fictício que atribuí aos livros, tendo pagado uns meros cêntimos de IVA tanto pelos livros como pelas revistas. Até aqui tudo bem, o mais chato é que os CTT cobram 4€ pelo processo de desalfandegamento!


Isso mesmo, doravante sempre que uma revista mensal ou bimestral me chegar, tenho que pagar 4€ daquilo que na prática constitui um imposto privado por cada revista e uns meros cêntimos de IVA, sendo este o valor que recai para o Estado. Escusado será dizer que em Julho cancelei todas as assinaturas que tinha em formato físico de revistas estadunidenses e britânicas, passando-as a assinaturas digitais.


O resultado prático foi o que eu já suspeitava: após os primórdios das edições digitais em que no portal da revista se descarregava um PDF, facilitando a livre circulação do mesmo e penalizando as editoras (no mundo civilizado isto aconteceu há muito tempo, em Portugal os jornais e revistas ainda funcionam assim, o que para variar até transforma o nosso atraso num alívio), agora tenho que instalar uma app diferente para cada revista que assinei e, como abomino ler livros em formato digital, o mesmo se pode aplicar às revistas, ficando estas por ler. O próximo passo será mesmo cancelar as assinaturas.

A recomendação da UNESCO


Desde a sua criação em 1945 que a UNESCO tem defendido uma política mundial para os livros e bens literários como revistas culturais e publicações periódicas, apelando aos governos do mundo que os isentem de alfândega por os considerarem como a ferramenta por excelência para a democratização do mundo.
Nas últimas décadas temos vindo cada vez mais a viver numa idiocracia cada vez mais descarada, “a utilização do livro como promotor da paz e da segurança global tem sido uma tarefa complexa”, fazendo minhas as palavras da historiadora Céline Giton. A livre circulação de livros teve sempre no seio da UNESCO duas interpretações:


“Da perspectiva ‘francesa’, o livro era descrito como ferramenta de emancipação, providenciando um maior conhecimento pessoal e estimulando a uma maior reflexão. Estas qualidades tornam o livro no apoio ideal para o diálogo e a mútua compreensão entre os povos. As grandes obras e grandes autores ocupam um papel essencial na definição de um legado literário comum.


A segunda abordagem, mais ‘anglo-saxónica’, apresentava o livro acima de tudo como uma ferramenta para a educação dos povos, encorajando o desenvolvimento económico, levando a um bem-estar generalizado, sendo também considerado como um suporte extremamente útil à comunicação.” (tradução minha, retirado do site da UNESCO).

Birra geopolítica e vingançazinha pelo Brexit?


Esta medida da União Europeia só afectará o Reino Unido e a China na medida em que irá penalizar e irritar de tal modo os cidadãos europeus que insistam em fazer encomendas de fora da União Europeia com, suponho, o intuito de que estes deixem de o fazer. Na realidade gigantes como a Amazon e o AliExpress conseguem contornar estas restrições sem qualquer problema, dispondo já de vastos armazéns dentro da União Europeia e recorrendo a distribuidoras alternativas aos correios institucionais.


As encomendas que recebi via Correos (os correios espanhóis que aproveitam a lacuna dos CTT privados para distribuir correspondência cá, recorrendo a estafetas precários ao estilo da Uber Eats) e outras transportadoras não foram sujeitas a alfândega, visto este papel do Estado estar agora na prática entregue a uma empresa privada e não a uma Guarda Fiscal ou Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, os CTT só cobram o seu imposto e IVA de importação às encomendas que lhe chegam de outros serviços postais institucionais como o Royal Mail e o United States Postal Service.


Não sei em que raios estava a União Europeia a pensar, ao tentar regredir uma das poucas regalias que a globalização nos trouxe. Esta birra para com as gigantes plataformas da China e dos EUA e a vingançazinha contra o Brexit não fazem qualquer sentido no século XXI, são mero retrocesso obsoleto na era do populismo e da idiocracia* generalizada.

 

*Idiocracia, governo dos idiotas, é um termo que se tornou extremamente popular graças ao filme "Idiocracy" de 2006, realizado por Mike Judge com guião escrito em co-autoria com Etan Cohen. Desde a era Trump que muitos de nós julgamos já estar a viver no futuro retratado no dito filme.

Flávio Gonçalves
Exclusivo Pravda.ru

Flávio Gonçalves é cronista, crítico e difusor literário na edição em língua portuguesa do Pravda.ru, director da revista "Libertária", tradutor, autarca, membro do Conselho Consultivo do Movimento Internacional Lusófono, sócio fundador do Instituto de Altos Estudos em Geopolítica e Ciências Auxiliares, activista do Conselho Português para a Paz e Cooperação e das campanhas internacionais Tirem As Mãos da Venezuela e Hands Off Syria Coalition, é colaborador do Centre for Research on Globalization (Canadá) e do Center for a Stateless Society (EUA), ex-jornalista na revista "Your VIP Partner" e no semanário "O Diabo", pode apoiar o seu trabalho em patreon.com/autarkies e segui-lo em twitter.com/flagoncalv

 

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