222 anos da revolta dos búzios

222 anos da revolta dos búzios

 

Florisvaldo Mattos*

 

Cumprem-se nesta quarta-feira 12 de agosto, 222 anos da insurreição baiana que se convencionou chamar de Revolução dos Alfaiates ou, mais recentemente, de Revolta dos Búzios, irrompida na então Cidade da Bahia, em 12 de agosto de 1798, com a disseminação por locais públicos do que a Justiça colonial apelidou de "boletins sediciosos", em nº de 12, convocando a população ao embate com o poder colonizador.

 

Em agosto de 2018, a Assembleia Legislativa da Bahia promoveu sessão especial, pelos 220 anos da também chamada Conjuração Baiana, a que compareci, por convite da deputada Fabíola Mansur, para pronunciar palestra como autor de livro, por sinal publicado pela Assembleia Legislativa, em convênio com a Academia de Letras da Bahia, em 1998, por ocasião das comemorações dos 200 anos desse movimento revolucionário, a merecer atenção de conceituados historiadores.

 

Nesta obra, que recebeu o título de "A comunicação social na Revolução dos Alfaiates", deixando a parte essencialmente histórica da sublevação a seus historiadores, especialmente o professor Luiz Henrique Dias Tavares, seu mais destacado estudioso, preferi me fixar em um ponto crucial, creio que pioneiramente, que consistia em definir o papel da comunicação social na insurreição, optando pela designação mais repetida entre os estudiosos do fato histórico, hoje mais comumente chamado Revolta dos Búzios.

 

Sucedeu que, na última década do século XVIII, um grupo de pessoas em  diversas situações de classe, porém preponderantemente da mais baixa escala social, intentou promover um levante, que visava libertar o Brasil-Colônia do jugo português, empunhando múltiplas bandeiras, tais como   independência da Capitania, implantação da república, a abolição da escravatura, igualdade para todos, livre comércio com as nações do mundo, interrupção do vínculo com a Igreja do Vaticano, instituição do trabalho remunerado, melhoria do soldo militar e garantias para os plantadores de cana, fumo e mandioca, assim como para comerciantes.

 

No que se refere às ideias dos que estavam engajados no movimento de libertação, esse caldeirão efervescente pressupõe um vasto campo de procedimentos durante certo período, em que imperaram as relações de comunicação, para obtenção de consenso em torno dos propósitos da intentada conjuração. No entanto, desbaratada a revolta, o resultado de tão elevada aspiração ficou na história como exemplo máximo de sofrimento, crueldade e tragédia, recaindo as penas de enforcamento, seguido de esquartejamento, sobre quatro dos envolvidos, dois deles soldados (Luiz Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas do Amorim Torres) e dois artesãos (João de Deus do Nascimento, mestre alfaiate, e Manoel Faustino dos Santos Lira, então oficial alfaiate, mas ex-escravo), livrando-se da severa punição um quinto personagem, Luiz Pires, também artesão, porque fugira, desaparecera sem deixar rastros.

 

Tem-se uma ligeira noção desse quadro com a descrição do que era a Capital da Bahia em 1798, ano da derrocada do movimento. Tratava-se de uma sociedade de vizinhança, aquela em que, conforme define a sociologia, a relação entre as pessoas se estabelece por via predominantemente oral, isto é, por canais diretos de comunicação, com a escrita (canal indireto) funcionando como forma subsidiária, sujeita a graus de instrução e, por isso mesmo, constituindo-se patrimônio de poucos.

 

A estrutura social de então assentava-se no patriarcalismo e na economia escrava, em que pontificavam os senhores de escravos, dos engenhos, das terras, das minas e dos currais de gado e os lavradores proprietários, que só se distinguiam daqueles por não possuírem engenhos. Distribuía-se pelo intermédio, entre o senhor patriarcal e o escravo, um certo número de categorias: clero, magistrados, comerciantes, servidores da administração colonial, o chamado povo livre, os artesãos e os que ostentavam profissões qualificadas, além dos marginalizados da economia, como os mendigos, os desocupados e as prostitutas.

 

A educação formal se limitava ao ensino imposto e administrado pela Igreja, isto é, pelos jesuítas, reduzindo-se ao estudo das sete disciplinas da chamada Ratio Studiorum, a que poucos tinham acesso. Não havia universidade, tampouco bibliotecas, livrarias e imprensa devido às rigorosas proibições impostas pela Coroa portuguesa, desde o início da ocupação do território. Segundo o maior estudioso dessa conjuração, o professor e historiador Luís Henrique Dias Tavares, os livros e outros escritos chegavam da Europa "nas cabeças, baús, amarrados de jovens brasileiros estudantes em Coimbra", enquanto Nelson Werneck Sodré garante que vinham de contrabando, tudo às escondidas.

 

E quanto à população? Luiz dos Santos Vilhena, em suas Cartas Soteropolitanas, situava a Capitania em menos de 200 mil habitantes, sendo desses 50 mil para o Recôncavo e menos de 60 mil para a Capital, o que praticamente iria se confirmar no censo realizado pelo Conde da Ponte, em 1807, com 51 mil para a Capital, sendo 28% compostos de brancos e 72% de pretos e pardos. Desses últimos sairia a esmagadora maioria dos participantes da planejada sedição, formada por escravos, artesãos, soldados e alforriados, mas também, embora poucos, por profissionais qualificados e religiosos, como o Padre Agostinho Gomes, que facultava livros à leitura, municiando o ideário dos descontentes com o statu quo da Colônia então identificados com os princípios dos revolucionários franceses de 1789.

 

O essencial desses princípios pode refletir-se no poema revolucionário intitulado "Décimas sobre a Igualdade e da Liberdade", de criação atribuída a Salvador Pires de Carvalho e Albuquerque e, também, a Francisco Moniz Barreto que o conjurado Manuel Faustino dos Santos Lira, quando em depoimento o Juiz do Feito lhe perguntou se dele tinha notícia, ouvindo do depoente, como resposta, que as lera e decorara, passando a repeti-lo oralmente. É este que agora reproduzo abaixo, em versão crítica de ortografia atualizada.

 

DÉCIMAS SOBRE A LIBERDADE E IGUALDADE

 

Letra

 

Igualdade e Liberdade

No Sacrário da Razão

Ao lado da sã Justiça

Preenchem meu coração.

Décimas

Se a causa motriz dos entes

Tem as mesmas sensações

Mesmos órgãos, e precisões,

Dados a todos os viventes,

Se a qualquer suficientes

Meios da necessidade

Remir com equidade;

Logo são imperecíveis

E de Deus Leis infalíveis,

Igualdade e Liberdade.

Se este dogma for seguido,

E de todos respeitado,

Fará bem aventurado

Ao povo rude, e polido,

E assim que florescido

Tem da América a Nação

Assim flutue o Pendão

Dos franceses que a imitaram

Depois que afoitas entraram

No Sacrário da Razão.

Estes povos venturosos

Levantando soltos os braços

Desfeitos em mil pedaços

Feros grilhões vergonhosos,

Juraram viver ditosos,

Isentos da vil cobiça,

Da impostura, e da preguiça,

Respeitando os seus Direitos,

Alegres, e satisfeitos,

Ao lado da sã Justiça.

Quando os olhos dos Baianos

Estes quadros divisarem,

E longe de si lançarem

Mil despóticos Tiranos

Quão felizes, e soberanos,

Nas suas terras serão!

Oh! Que doce comoção

Experimentam estas venturas,

Só elas, bem que futuras,

Preenchem o meu coração.

(Ilustrações do cartunista Cau Gomez)

 

*Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista, autor de " A comunicação social na Revolução dos Alfaiates", 2018, e outros livros de poesia e ensaio.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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