A continuidade do golpe e a contradição principal

A continuidade do golpe e a contradição principal

Cesar Mangolin

O golpe ainda não se completou. O caráter de classe do golpe e, portanto, a sua razão fundamental, vai agora aparecer de maneira mais escancarada, afinal se trata de garantir a consumação dos interesses do consórcio que reuniu a alta finança, a burguesia associada, grandes corporações estrangeiras e a geopolítica mundial em favor dos EUA, contrário às políticas do ciclo dos governos petistas no sentido de perceberem a possibilidade de ganhos impedidos por certa preponderância de uma fração da burguesia que prestava os serviços voltados ao desenvolvimento de alguns setores fundamentais e pelas políticas de desenvolvimento social, que destinavam porções da riqueza produzida socialmente e da arrecadação à melhoria das condições de vida de populações secularmente deixadas na linha da miséria e da pobreza, bem como para o investimento em serviços públicos fundamentais para essa população, como a educação pública e a saúde. Esses setores do consórcio golpista não deixaram de lucrar bastante com o ciclo de governos encabeçado pelo PT: apenas sabem que é possível ganhar muito mais e recolocar o Brasil na condição de um simples satélite do imperialismo, um país da periferia do sistema que serve ao centro, quebrando as pretensões de uma autonomia na política internacional, estabelecidas e ensaiadas pela entrada no BRICS e por acordos bilaterais com países em condições similares de desenvolvimento e ocupando lugares comuns no quadro internacional.

A pequena burguesia histérica aparecerá agora como um problema a ser resolvido. Os criadores da onda fascistizante precisarão dar conta do monstro que criaram e deverão procurar as formas de fazê-lo sair de cena.  O consórcio nacional e internacional da burguesia golpista precisa se desvencilhar das motivações da base social que criou para o golpe. O suposto combate à corrupção deu impulso ao discurso moralista e repleto de preconceitos e ódio, levou a uma histeria coletiva, criando um amontoado de gente para o qual não há história, não há lei, não há nada: apenas a ação de cães raivosos, repetindo uma ladainha decorada, sem  sentido e com ações cada vez mais violentas. Será uma tarefa árdua e não sem riscos e contradições a tentativa de apascentar sua récua, uma vez que ocorreu a prisão daquele que oferecia maior risco ao projeto golpista, supostamente a situação eleitoral mais tranquila.

O golpe, como todos sabem, nada teve com o combate à corrupção. Ou teve, mas da maneira inversa daquela que entenderam seus cães de guarda, como foi bem expresso naquele áudio do senador Romero Jucá, que explicitava a necessidade de reunir, além dos já citados setores, também os nossos seculares bandidos que vivem da política institucional, os militares e o judiciário. Tratava-se de atender aos interesses diferentes desses setores todos, mas que apontavam para uma necessidade imediata: a derrubada da presidenta Dilma Rousseff, cujo governo permitia a investigação dos crimes de corrupção. Essa era a sangria que deveria ser contida, segundo Jucá: era necessário derrubá-la para que todos eles não fossem pegos, já que não conseguiram derrotar esses governos nas urnas. Sempre é bom insistir que foram os méritos dos governos de Lula e Dilma e não os seus defeitos que foram julgados e condenados. Nossa história possui exemplos de momentos similares, em que avançamos nas conquistas sociais e temos, na sequência, uma saída golpista, que lança tudo ao chão e nos obriga a recomeçar quase do zero. Podemos pensar na crise que envolveu as duas deposições de Vargas (a segunda mais dramática, sem dúvida, com o suicídio do presidente) e a conjuntura do começo da década de 1960 e a deposição de João Goulart, seguida da instalação da ditadura civil-militar que persistiu até 1985, de triste memória em todos os aspectos.

Não há ninguém desinformado nessa história. Ao concentrarem seus esforços e mostrarem seus dentes apenas para os casos de corrupção envolvendo o PT e outros participantes do governo, todos fizeram vista grossa à continuidade das práticas bastante conhecidas de todos nós. Nesse caso, há a complacência com alguns partidos e políticos e a severa perseguição daqueles que representam o ciclo de governos anterior. Perseguição que chega ao cúmulo da mentira e de julgamentos que não têm por base as provas necessárias para condenação. Inclusive fazendo do STF um órgão que resolve legislar, extrapolando o seu papel e indo contra a Constituição Federal, o que escancara a fraude e o golpe, além de detonar uma crise dentro do próprio judiciário.

Mas tudo isso apenas revela o caráter de classe do golpe, bastante distante dos discursos que têm motivado o ascenso de grupos e militantes de uma nova direita, que não entende bem o que isso significa. O golpe ainda não terminou. A ideia é que ele termina com a passagem do governo do Brasil ao PSDB. Isso exige uma autocrítica: há pouco menos de um ano, respondi umas perguntas feitas pelo camarada Eduardo Vasco, para o Pravda. Vivíamos o momento das denúncias contra Temer e os rumores de um golpe dentro do golpe. Ali, acreditei que o presidente golpista não seria capaz de se sustentar e que cairia em breve. Errei feio: não contei com a capacidade de articulação e com o poder de compra do "apoio" necessário na mídia, no Congresso e no Judiciário (com promoções e bilhões distribuídos de acordo com a necessidade do momento). Outro erro cometido, claro, foi a tentativa de "prever" o futuro, como algo determinado, e não as possibilidades postas e as probabilidades.

Pois bem, errei ao acreditar que o golpista Temer cairia ali, mas não insisto na compreensão de que a consumação do golpe passava, necessariamente, pela entrada do PSDB no governo. Faltou ali pensar numa outra opção tática do próprio PSDB: entrar com um mandato tampão após uma saída de Temer poderia complicar as coisas nas eleições de 2018. Melhor esperar e cumprir outros passos importantes para garantir a vitória eleitoral (ou tentar fazê-lo pelo menos), incluindo aí uma dúbia posição diante da população com relação ao governo golpista de Temer (falo da tentativa de parecer não pertencer ao governo, enquanto lhe dá base), passando, obviamente, pela prisão de Lula e impedindo sua candidatura.

Por que o PSDB? Repito aqui coisas já ditas naquela entrevista. O PSDB é o fiel escudeiro no país dos interesses do capital estrangeiro, da alta finança internacional e da burguesia associada. Foram quadros do PSDB, como José Serra, que estiveram nos EUA antes do golpe ajustando as coisas e prometendo a entrega da Petrobras. O PSDB é o partido que assume  como programa a agenda das políticas neoliberais e a ideia de que a economia brasileira deve caminhar, necessariamente, atrelada e submetida aos interesses e grandes lances do capital estrangeiro.  FHC em seus dois mandatos aplicou fielmente a cartilha do FMI, do Banco Mundial e do Consenso de Washington. A histórica foto de FHC com a língua de fora, qual cachorrinho manso, enquanto Clinton (que era presidente dos EUA), por trás,  se apoiava em seus ombros, é uma boa síntese da relação do PSDB com o imperialismo. Não foi a toa que Serra seguiu, ainda que com incompetência patente e grosseiramente assumida,  para o Ministério das Relações Exteriores logo após o golpe. O PMDB, Michel Temer  e sua camarilha não são plenamente confiáveis.

O golpe não pode ser entendido, portanto,  como uma pendenga entre ladrões de galinhas ou uma disputa entre partidos: em síntese (e é necessário insistir nisso!) o golpe deve ser compreendido como a derrubada pela força (já que não tiveram a capacidade de derrotá-lo nas urnas,como ocorreu na Argentina, por exemplo) de um ciclo de governos cujo programa para formação social capitalista brasileira tinha pretensões  neodesenvolvimentistas. Podemos reunir uma série de frações burguesas  que não estavam plenamente favorecidas por esse programa e de interesses  diversos que explicam o golpe, tendo a crise mundial do capitalismo como pano de fundo: os interesses das frações da burguesia brasileira associada , os interesses das grandes corporações internacionais (pelo petróleo brasileiro, por exemplo),  a política externa mais autônoma e a aproximação do Brasil de um eixo fora das asas dos EUA e a formação do BRICS, a ameaça de democratização e, ao mesmo tempo, de um marco regulatório dos meios de comunicação, os interesses de partidos e políticos ligados às históricas benesses do seu próprio aparelho de Estado e as sucessivas derrotas eleitorais. Isso tudo formou uma unidade de ruptura, ainda que com interesses difusos, mas uma unidade que tornou o golpe viável, após uma intensa campanha midiática e a geração de uma crise política que começou a afetar inclusive a economia.

Mas, retornando ao início do texto, o golpe possui, como qualquer golpe, uma dessas frações ou um desses grupos como dominante e, em última instância, será aquela fração que precisa se impor no processo. O processo eleitoral tende para o favorecimento da vitória de um grupo de maior e estrita confiança para fazer com que os interesses do grande capital internacional e da burguesia local associada prevaleçam sobre os demais. Os fantoches desses interesses pertencem ao PSDB. É a ideia de um mandato, finalmente,  conquistado pelo voto, após quatro derrotas eleitorais.

Mas, como diria Garrincha, é preciso combinar essa tática com os russos... Ainda que blindados pela grande imprensa, os tucanos possuem dois grandes problemas: o primeiro é que não possuem força política suficiente para escapar do jogo "republicano" da compra de apoio, muito menos escapar do loteamento do patrimônio público para que seja sangrado pelo grosso dos nossos políticos profissionais e seus partidos, verdadeiros bandidos que provam todos os dias que o crime, bem organizado ou não, sempre compensa. Aliás, a ausência da força política se deve ao fato de que a tucanagem  participa ativamente e com os seus melhores quadros do mesmo esquema. O segundo grande problema é a corja fascista gerada por esse processo, que não possui, necessariamente, uma direção bem consolidada e pode muito bem sair totalmente de controle, como vimos recentemente nos eventos do sul do país e temos cotidianamente notícias de suas barbaridades e violências. Essa gente tende a não ver o PSDB como o vê a alta finança internacional e a burguesia associada.

Enfim, temos um quadro bastante complicado. Penso que, tendencialmente, devam começar a aparecer nos meios de comunicação "denúncias" envolvendo o presidente golpista de plantão e outros candidatos à presidência. Também deve ser possível que, em breve, os tucanos declarem o rompimento com o governo, num lance apenas midiático. Mas o fato mesmo é que a prisão de Lula apenas escancara o caráter de classe do golpe e abre uma etapa, com grandes dificuldades e com o imprevisível e imponderável jogando um papel importantíssimo: algumas faíscas podem resultar num grande incêndio. Isso porque poucas vezes estivemos tão próximos de fazer explodir o barril de pólvora que é a formação social brasileira e seus seculares mecanismos de manutenção da exploração popular. O barril está sem a guarda devida, pois falta quem seja capaz de aglutinar as forças necessárias para garantir a hegemonia do processo.

Correndo o risco de parecer banal, penso ser necessária muita atenção para não morder as iscas que pretendem precipitar as organizações de esquerda às ruas com disposições mais radicais em condições acentuadamente desiguais de luta. Vale manter a objetividade e compreender a correlação de forças. Na nossa conjuntura, a contradição principal (que se expressa na oposição entre as frações burguesas que encabeçaram o golpe e os interesses do desenvolvimento nacional e autônomo e da melhoria das condições de vida dos trabalhadores) ainda passa pela necessária articulação de uma frente capaz de derrotar a tucanagem e congêneres nas eleições de outubro. Uma vitória eleitoral de forças de esquerda ou articuladas numa frente mais ampla e comprometida com a retomada e o avanço progressista das políticas anteriores derrotaria o golpe e colocaria para as forças de esquerda condições mais propícias para a abertura de uma nova fase de lutas, qualitativamente diferente.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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