O sentimento popular de injustiça é correto, mas será apenas instrumentalizado

O sentimento popular de injustiça é correto, mas será apenas instrumentalizado

An­te­ci­pado por ra­zões po­lí­ticas, a fava con­tada da con­de­nação do ex-pre­si­dente Luiz Inácio Lula da Silva, por três votos a zero no TRF-4 de Porto Alegre, em se­gunda ins­tância, con­tinua a con­sumir os de­bates po­lí­ticos e ma­ni­fes­ta­ções de rua.


Ave­nida Pau­lista, que horas antes re­ce­bera cerca de 500 verde-ama­relos, en­cheu à noite em apoio ao ex-pre­si­dente


Por Gabriel Brito, do Correio da Cidadania

An­te­ci­pado por ra­zões po­lí­ticas, a fava con­tada da con­de­nação do ex-pre­si­dente Luiz Inácio Lula da Silva, por três votos a zero no TRF-4 de Porto Alegre, em se­gunda ins­tância, con­tinua a con­sumir os de­bates po­lí­ticos e ma­ni­fes­ta­ções de rua.

Di­ante de uma mi­ríade de aná­lises e pontos de vista, fica di­fícil para qual­quer pessoa ab­sorver um sen­tido po­lí­tico mais amplo do que os ob­je­tivos elei­to­rais nesta con­de­nação. Al­guns falam em gui­nada au­to­ri­tária do Es­tado bra­si­leiro, ou­tros chegam a de­bo­char deste olhar ao elencar o sem nú­mero de crimes, abusos e de­ci­sões dis­cri­ci­o­ná­rias dos po­deres ins­ti­tuídos.

É certo que es­tamos fa­lando de um jogo rou­bado: Lula ir, em ve­lo­ci­dade má­xima, ao banco dos réus en­quanto fi­guras como Mi­chel Temer e Aécio Neves con­ti­nuam go­zando do status de inim­pu­tá­veis é de causar en­gu­lhos em qual­quer ci­dadão mu­nido de ho­nes­ti­dade in­te­lec­tual. Os dis­cursos e li­cenças poé­ticas rei­vin­di­cados pelos três re­la­tores do pro­cesso do trí­plex, em seu si­mu­lacro de jus­tiça e "lei para todos" não são menos ri­sí­veis.

No en­tanto, não é pos­sível fazer con­ces­sões ao lu­lo­pe­tismo e sua no­tória es­tra­tégia de se apre­sentar ao pú­blico como ví­tima de um sis­tema lar­ga­mente de­nun­ciado por aqueles que tanto des­prezou - e até cri­mi­na­lizou - ao longo dos úl­timos anos.

O "di­reito de Lula" num país sem di­reitos

"O Ra­fael são muitos. Em 2006, quando foi apro­vada a nova Lei de Drogas, 401.236 pes­soas es­tavam na ca­deia e o Brasil era o 4º país que mais prendia gente. Pas­sados 11 anos o nú­mero de presos do­brou. Um em cada três res­ponde por trá­fico de drogas. Dos 726 mil de­tentos, 40% não foram jul­gados - ou seja, estão ile­gal­mente presos sem nunca terem sido con­de­nados. Quantos deles você acha que têm ad­vo­gado? O jul­ga­mento de Lula - que eu con­cordo, tem dois pesos e duas me­didas em re­lação aos de­mais ca­ci­ques da classe po­lí­tica - co­meçou na quarta-feira às 08:30 da manhã. A Ci­dade de Deus já es­tava sob tiros havia exa­ta­mente 1 hora e 39 mi­nutos. O jul­ga­mento acabou. Os ti­ro­teios não", es­creveu a jor­na­lista ca­rioca Ce­cília Ol­li­veira, do The In­ter­cept Brasil e ide­a­li­za­dora do apli­ca­tivo Fogo Cru­zado, que in­forma seus usuá­rios sobre os fre­quentes ti­ro­teios no Rio de Ja­neiro.

"'Agora a po­lícia bate em quem tem que bater', Lula chegou a dizer. Ainda bem que esse plano fa­lhou. Talvez por isso os grupos de mo­ra­dores de fa­velas (dos grupos dos quais faço parte) se­quer fa­laram sobre 'o jul­ga­mento do sé­culo' acon­te­cido ontem em Porto Alegre", res­gatou Ce­cília, a res­peito de frase do ex-pre­si­dente em 2010, quando apa­recer na foto ao lado de Sergio Ca­bral e Edu­ardo Paes era bem visto. Aliás, faz poucos dias que Lula saiu em de­fesa dos go­vernos de Sergio Ca­bral, preso pelas in­ves­ti­ga­ções da Lava Jato, isto é, em de­fesa do mo­delo de de­sen­vol­vi­mento econô­mico que pi­lhou as fi­nanças do Rio de Ja­neiro, agora afun­dado em nova es­piral de bar­bárie so­cial após a pa­na­ceia dos me­ga­e­ventos es­por­tivos.

A exemplo do que ob­servou o fi­ló­sofo Ro­berto Ro­mano, não se pode perder de vista o pro­cesso, como também dito aqui em ma­téria an­te­rior, de res­tau­ração das elites econô­micas e po­lí­ticas bra­si­leiras, após o ter­re­moto de 2013. De­fi­ni­ti­va­mente des­co­lado de suas bases so­ciais após o es­te­li­o­nato elei­toral de Dilma, que aplicou o pro­grama de Aécio Neves e sua aus­te­ri­dade sem dia pra acabar, o PT ficou sem de­fesa ante a in­ces­sante von­tade das ve­lhas oli­gar­quias e seus ga­rotos de re­cado do Con­gresso em, pura e sim­ples­mente, re­tomar a chave do cofre.

"O Ju­di­ciário bra­si­leiro, no dia 24/01/2018, deu um passo im­por­tante na trilha de ins­taurar o Es­tado de Ex­ceção. Nas duas di­ta­duras do sé­culo 20, a de Vargas e a civil-mi­litar de 1964, apesar das tor­turas, as­sas­si­natos de presos por agentes es­ta­tais, exí­lios, cas­sa­ções, não se­guiram a rota do Es­tado de Ex­ceção de modo tão de­sas­troso. Ex­plico: apesar de exis­tirem tri­bu­nais mi­li­tares para julgar os su­postos crimes contra a Se­gu­rança Na­ci­onal, o rito, pelo menos for­mal­mente, se­guia a ló­gica comum dos tri­bu­nais con­so­li­dados: acu­sação, de­fesa, juízo in­de­pen­dente", ana­lisou Ro­mano ao Portal IHU.

Pois é isso. Mais um passo, não ini­cial, nem talvez uma in­flexão. Apenas uma ex­pressão mais mi­diá­tica (e ve­remos até que ponto dis­fun­ci­onal aos pró­prios be­ne­fi­ciá­rios ime­di­atos).

"A von­tade da volta ao pas­sado con­tradiz o fato de que a his­tória não dá marcha à ré. O golpe de força de Cunha e Temer é ex­pressão da exaustão da de­mo­cracia de baixa in­ten­si­dade, que fun­ciona com dois pesos e duas me­didas, sur­gido do fim da di­ta­dura mi­litar. A crise da Nova Re­pú­blica é ter­minal. Assim como o fim da abo­lição selou a sorte do Im­pério, a crise da eco­nomia ca­fe­eira con­denou a Re­pú­blica Velha e o aban­dono da in­dus­tri­a­li­zação li­de­rada pelos em­pre­sá­rios na­ci­o­nais levou ao golpe de 1964, agora, a crise ter­minal da in­dus­tri­a­li­zação li­de­rada pelas em­presas mul­ti­na­ci­o­nais con­dena a Nova Re­pú­blica. A dis­puta real é saber o que co­locar em seu lugar (e não como pro­longar sua agonia)", disse o eco­no­mista Plinio Ar­ruda Sam­paio Jr, autor do recém-pu­bli­cado Crí­tica à Eco­nomia dos Go­vernos Lula e Dilma, co­le­tânea de textos pu­bli­cados ao longo dos úl­timos 10 anos. 

De todo modo, as tí­midas ma­ni­fes­ta­ções dos se­tores con­ser­va­dores e seus in­dig­nados verde-ama­relos, que a res­peito de cor­rupção re­pu­diam muito mais a "con­cor­rência" de se­tores his­to­ri­ca­mente su­bal­ternos do que pro­pri­a­mente sua prá­tica, se­guidas de mais mas­sivas - mas nem tanto - de­mons­tra­ções de apoio da es­querda do sé­culo 20 ao ex-pre­si­dente tornam in­cóg­nitos os pró­ximos ca­pí­tulos da po­lí­tica bra­si­leira.

"Fi­nal­mente, agora são os ini­migos que lhe dão so­bre­vida. Já que não con­segue mais des­pertar es­pe­ranças nem tem nada de re­le­vante para propor, con­segue manter-se à tona com a chan­tagem emo­ci­onal da vi­ti­mi­zação e a pro­messa de vin­gança contra Mi­chel Temer (um vilão que manda muito menos do que qual­quer grande ban­queiro, mas com os ban­queiros o PT e Lula não ousam mexer) e de re­versão das re­formas que o poder econô­mico exigiu e, com unhas e dentes, im­pe­dirá de serem re­ver­tidas", es­creveu em seu blog o jor­na­lista e ex-preso po­lí­tico Celso Lun­ga­retti, que aqui res­gatou o ca­ráter his­to­ri­ca­mente fun­ci­onal ao sis­tema do lu­lismo, desde as ro­man­ti­zadas ori­gens.

Dessa forma, po­demos es­pe­cular até que ponta iria a ir­res­pon­sa­bi­li­dade, di­gamos assim, das bur­gue­sias bra­si­leiras em seu ódio ao ex-ope­rário, que muito bem lhes fez. Como dis­sera há anos Ildo Sauer, ex-di­retor da Pe­tro­brás, o lu­lismo e seus go­vernos apro­fun­daram como nunca no Brasil o ca­pi­ta­lismo não só na po­lí­tica ofi­cial como em suas re­la­ções so­ciais, isto é, em termos es­tru­tu­rais e também cul­tu­rais. 

Pautas como a re­forma agrária, por exemplo, após con­quis­tarem apoio ma­jo­ri­tário da so­ci­e­dade, estão pra­ti­ca­mente mortas no ima­gi­nário co­le­tivo. De modo que é mais di­fícil do que nunca es­ta­be­lecer um pro­grama po­lí­tico an­tis­sis­tê­mico e que vise de­sin­flar se­tores que se for­ta­le­ceram como nunca, in­clu­sive dentro dos apa­ratos de Es­tado, como as imo­bi­liá­rias nas grandes ci­dades, as em­prei­teiras, o sis­tema fi­nan­ceiro e, acima de tudo, o agro­ne­gócio - este, pra ser breve, li­te­ral­mente en­gole o Brasil.

"A di­reita bra­si­leira está per­dida. No en­tanto, o maior pro­blema é o es­tado atual da maior parte da es­querda que, além de per­dida, re­vela alto nível de ig­no­rância, pu­si­la­ni­mi­dade e ve­na­li­dade. Parte da es­querda bra­si­leira avança cada vez mais no campo da ig­no­mínia. A es­querda bra­si­leira pre­cisa de um con­senso: a pu­nição efe­tiva e se­vera (ter­rena e/ou di­vina) de Lula é con­dição ne­ces­sária para en­ter­rarmos, de vez, o lu­lismo", as­se­ve­rara nesta en­tre­vista o eco­no­mista Rei­naldo Gon­çalves, dos mais im­pla­cá­veis crí­ticos dos go­vernos pe­tistas.

Ben­vindos a 2013

Dentro de tal con­texto, uma es­querda que se pre­tende an­ti­ca­pi­ta­lista pa­tina entre a rup­tura e a pos­tura de crí­tica à se­le­ti­vi­dade do Ju­di­ciário bra­si­leiro. Como pu­bli­cado aqui, apa­ren­te­mente opta por aguardar um es­pólio po­lí­tico - e mi­li­tante - do Par­tido dos Tra­ba­lha­dores, mas também perde a chance de criar laços efe­tivos com as lutas reais e novas formas de ati­vismos e mo­vi­mentos so­ciais que têm en­vol­vido a ju­ven­tude bra­si­leira. 

"Uma parte desse 're­call' pode con­ta­minar o PT, mas seu des­tino en­quanto par­tido está se­lado. Não re­novou suas li­de­ranças, atua nos bas­ti­dores contra mo­bi­li­za­ções de rua (quando não atua contra elas, como no caso de junho de 2013) e é parte in­te­grante do con­do­mínio de au­to­pre­ser­vação em que se trans­formou a po­lí­tica ins­ti­tu­ci­onal bra­si­leira na es­teira da Lava Jato. Ele é parte desse sis­tema, quer vê-lo re­cons­truído e tenta nos ho­lo­fotes fazer o dis­curso es­quer­dista de de­fesa da po­pu­lação, uma ma­ni­pu­lação pouco con­vin­cente, além de opor­tu­nista", já dis­sera a este Cor­reio o ci­en­tista po­lí­tico Hen­rique Costa.

"Ou­tros estão, até ho­nes­ta­mente, em busca de cons­truir al­ter­na­tivas, mas são ví­timas da ali­e­nação que tomou conta da es­querda con­tem­po­rânea, isto é, não con­se­guem ver que a de­mo­cracia que rei­vin­dicam no nível ins­ti­tu­ci­onal nunca existiu no chão so­cial. Estão vi­ci­ados em si mesmos e re­pro­duzem essa cul­tura do nar­ci­sismo para con­sumir uns aos ou­tros. Este é um nicho que se tornou in­ter­lo­cutor pre­fe­ren­cial do 'pe­tismo sem povo'. Mais uma vez, é o ob­je­tivo elei­toral que anima esses par­tidos, com re­sul­tados apenas mo­de­rados, por su­posto", também as­si­nalou Costa.

Como men­ci­o­nado por Ce­cília Oli­veira, o lu­lo­pe­tismo se de­para, em sua me­tás­tase, com os mesmos me­ca­nismos de abuso e má fé das ins­ti­tui­ções fer­men­tadas na vi­o­lência, no es­cra­vismo, no apartheid so­cial e na es­po­li­ação da na­tu­reza e dos tra­ba­lha­dores, no me­lhor es­pí­rito "para os amigos tudo, para os ini­migos a lei".

E se res­ga­tarmos todo o pro­cesso ju­rí­dico do men­salão, igual­mente re­pleto de in­con­sis­tên­cias pro­ba­tó­rias e juízos de oca­sião, como a te­oria do "do­mínio do fato" e os jul­ga­mentos que con­de­naram Dirceu e ou­tros per­fei­ta­mente en­cai­xados no ca­len­dário elei­toral*, chega a ser ina­cre­di­tável o grau de do­ci­li­dade dessas fi­leiras pe­rante o Poder Ju­di­ciário. 

"A es­querda tem que se dar conta de que é es­querda; que en­quanto tal pro­cede e per­segue um pro­jeto de so­ci­e­dade cujo ho­ri­zonte his­tó­rico está ma­te­ri­al­mente de­se­nhado e atu­a­li­zado pelos mo­vi­mentos so­ciais, com ba­li­za­mento ide­o­ló­gico ori­en­tado pelas classes su­bal­ternas - tra­ba­lha­dores do campo e das ci­dades que neles se ins­talam - e que se re­vela no seu pro­ta­go­nismo rei­vin­di­ca­tório de exer­cício da po­lí­tica e também dis­tri­bu­ti­vista, cuja re­a­li­zação se faz na dis­puta sem quartel com a di­reita, para que a bu­ro­cra­ti­zação por esta en­gen­drada não es­vazie o seu pró­prio con­teúdo ide­o­ló­gico, des­po­li­ti­zando e sub­traindo o ca­ráter de­mo­crá­tico que deve dar subs­tância à par­ti­ci­pação no poder, no fun­ci­o­na­mento do sis­tema de jus­tiça e na dis­tri­buição e gestão de­mo­crá­tica dos meios de co­mu­ni­cação", cri­ticou José Ge­raldo Souza Jr, também ao IHU, ci­tando seu texto Es­tado De­mo­crá­tico da Di­reita, que compõe a co­le­tânea De­mo­cracia: da Crise à Rup­tura.

A ins­tru­men­ta­li­zação do sen­ti­mento

O des­fecho da de­cisão do TRF-4 segue em aberto. Lula po­derá re­gis­trar sua can­di­da­tura e pro­va­vel­mente pos­tergar até o li­mite das leis elei­to­rais seu plano B, ou tê-la cas­sada pelo TSE. Apa­ren­te­mente, convém a todos os lados, in­clu­sive seus de­tra­tores, que po­derão re­pensar mais al­guns meses se vale tanto a pena im­pedir Lula en­quanto não dis­põem de ne­nhum grande nome, dado que todos são até mais des­mo­ra­li­zados no grosso da em­po­bre­cida po­pu­lação. 

De todas as ma­neiras, está claro que um ter­ceiro man­dato de Lula, além de não vis­lum­brar o mí­nimo con­fronto com a atual em­bo­ca­dura do ca­pi­ta­lismo bra­si­leiro, po­deria ser con­tro­lado à base de chan­ta­gens do pri­meiro ao úl­timo mi­nuto. Ade­mais, não se pode es­quecer do jogo duplo re­a­li­zado pelo par­tido e seu grande líder na onda de pro­testos do Fora Temer, até es­vaziá-lo; seu apoio en­ver­go­nhado à ab­sol­vição do atual pre­si­dente pelo TSE (quando se alegou a im­por­tância da não con­de­nação si­mul­tânea de Dilma); e, por fim, mas talvez até mais duro, do uso pelas cen­trais sin­di­cais de dois cha­mados de greve como mo­edas de troca em favor da ga­rantia de suas fontes es­ta­tais de fi­nan­ci­a­mento. 

Por­tanto, o mais triste de tudo é que o PT e seus chefes tra­tarão apenas de ins­tru­men­ta­lizar o cor­reto sen­ti­mento de in­jus­tiça de uma po­pu­lação que ainda o mantém em pri­meiro lugar nas pes­quisas elei­to­rais.

Nota:

* José Dirceu foi con­de­nado pela pri­meira vez no caso do Men­salão em ou­tubro de 2010, poucos dias antes do pri­meiro turno da eleição pre­si­den­cial. Em ou­tubro de 2012, em meio às elei­ções mu­ni­ci­pais, ou­tros 25 réus do mesmo pro­cesso foram con­de­nados na jus­tiça. 


Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey