Feliz 2013!

O convite na Vila do Encontro: um bolo com café beduíno! Procurando sair dessa lógica autofágica das dívidas inúteis, dei uma virada no meu padrão de sobrevivência. Quando rompi com o trabalho escravo para o sistema financeiro, estava rompendo com uma série de valores e padrões de sucesso.

Por Amyra El Khalili*

Quanto maior for a dependência financeira maior será a sentença de prisão.

Procurando sair dessa lógica autofágica das dívidas inúteis, dei uma virada no meu padrão de sobrevivência. Quando rompi com o trabalho escravo para o sistema financeiro, estava rompendo com uma série de valores e padrões de sucesso. Porém, inconscientemente, ainda tinha expectativas de viver como vivia nos tempos da carreira profissional como bem sucedida  operadora de commodities e futuros.

Olhava pensativa para as casinhas que ainda resistiam emparedadas entre edifícios pela janela do meu apartamento na Vila Mariana, bairro de classe média baixa de São Paulo que, com o passar dos anos, está se transformando em bairro de classe média alta. Quando comprei o imóvel, queria viver com o menor custo fixo possível, mas a especulação imobiliária nesta cidade cosmopolita jogou-me involuntariamente para um padrão inacessível . Estava rompendo com o sistema do qual passei a ser, por opção pessoal, maior opositora.

Num daqueles dias, suspirando com as minhas convicções sobre o valor das coisas e a valorização dos bens ambientais, compreendi que falava de um jeito, mas vivia de outro. Tomei uma decisão inadiável: vender o apartamento para livrar-me definitivamente do custo compulsório de condomínios e também de uma série de discussões com o síndico e comprar uma casa. Ora, se as pessoas sobrevivem em casas, sem síndicos e sem essa conta absurda de condomínios que representa essa pseudo-segurança em apertados edifícios e engaiolados entre dezenas de paredes, por que eu, uma convicta militante pelos direitos das comunidades e pela preservação ambiental não poderia viver também?

E foi assim que vim parar na Vila do Encontro, subdistrito do Jabaquara, mais precisamente vizinha de uma famosa "boca de fumo" da periferia na Zona Sul de São Paulo. Onde nessa cidade não tem "boca de fumo"? Aliás, em qual cidade não existe ainda uma "boca de fumo"?

Descobri pelos jornais televisivos que minha adorável por 20 anos Vila Mariana tinha assaltos à luz do dia praticados contra comerciantes por crianças usuárias de drogas. Onde estava eu que não via nada disso? Engaiolada num apartamento bem longe dessas misérias e, ao mesmo tempo, filosofando e debatendo com comunidades país afora sobre como poderíamos fazer de nossas Vilas um lugar melhor e sustentável para se viver.

Foi pela necessidade de conviver de perto, olho a olho, cara a cara, com a realidade de uma comunidade que decidi morar na periferia na condição de mulher solitária, ou melhor, mulher solidária (como muitas vivem!).

Fui criada na periferia de São Paulo, na Zona Leste, até os 21 anos; depois, morei no centro da cidade, na Praça de República, e posteriormente no Vale do Anhangabaú, até comprar apartamento na Vila Mariana. Meus amigos disseram que seria retrocesso sair da Vila Mariana e retornar para periferia. Estava convencida de que essa mudança era necessária para trazer-me de volta ao ponto de partida. Foi graças a minha origem humilde que não perdi a noção da razão e do bom senso convivendo por anos no mundo dos mercados de riscos e negócios virtuais com a ilusão das grandes fortunas.

Mudei-me para a Vila do Encontro. Resisti colocar cerca elétrica, arame farpado ou espetos no muro. Também resisti às grades nas janelas e portas. Como beduína, recebemos as visitas e somente perguntamos o que vieram fazer em nossa tenda uma semana depois.

A casa estava vulnerável aos deliquentes usuários de drogas que esperam um momento oportuno para o assalto. Acreditei nas minhas convicções, entre as quais, a de que o diálogo com os jovens e com a comunidade era o caminho para combater a violência e as drogas. Era o que eu pregava, afinal.

Em frente a minha nova casa havia um ponto de encontro de usuários de drogas que se misturavam com crianças jogando futebol e soltando pipas na rua. Era, para mim, difícil identificar no grupo quem era quem e quais eram as crianças e jovens comportados salvos (ainda) da maldição das drogas entre os que eram delinquentes.

Na mesma semana que em cheguei, uma liderança veio falar comigo e contou-me sua história. A de que era filho de um famoso traficante assassinado em 1999 no quintal de sua casa e que virara lenda na Zona Sul de São Paulo por seu carisma e também rigorosa "disciplina". Sendo assim, o território estava demarcado e, para minha surpresa, a quadra da minha casa fazia parte deste território. Travei com essa liderança, doravante denominada e batizada por mim de "chefia", um diálogo permanente quase que diário. Ficamos amigos!

Certo dia, como era de se esperar, a estrada me chamava para mais uma palestra peregrina desta beduína neste Brasilzão. Peguei a mala e a cuia e me piquei para Porto Velho em missão inadiável: defender os povos das florestas e os bens comuns. Segui viagem turbulenta atravessando São Paulo de Congonhas a Guarulhos e depois pingando entre um vôo e outro com pousos e decolagens para Cuiabá e, finalmente, Porto Velho. Chegando lá, fomos para o "risca faca" do debate. Minha cabeça estava concentrada na missão, bem distante das mazelas da Vila do Encontro.

Na última noite em Porto Velho, tive um sonho com minha avó beduína-palestina, Fátima Sad El Din. Ela me dizia: "Amyra, seja o que for que tenha acontecido com sua casa, o que importa agora é sua vitória em defesa dos povos da floresta. Todo prejuízo será recompensado."

Chegando em São Paulo, ao dobrar a esquina da rua pela noite, vi as luz da janela do quarto acesa. Quando abri o portão, a janela da sala fora arrombada, a casa revirada como se tivesse passado um furacão. Os delinquentes assaltaram minha casa, roubaram alguns pertences entre eles meu notebook e minha adaga beduína - troféu que ganhei homenageada pelo Clube Sírio e Libanês de Santos.

No outro dia a "chefia" bateu na porta pela manhã: "já tô sabendo que arrobaram sua casa e levaram suas coisas. Vô tomá umas providências."

A "chefia" voltou com um punhado de meninos juntando todos na porta de minha casa e fez discurso: "onde já se viu roubar a casa da muié que só ajuda vocês e todo mundo! Isso não aceito não". E fala de cá, os meninos se defendem de lá e a coisa estava virando um colóquio digno de palanque. Não deixei por menos e disse: "vejam bem, meu notebook é rastreado. Quando ligarem na internet os "homi" vão descobrir o endereço e vão pra cima. E depois,levaram meu troféu rezado na mesquita. Essa adaga que levaram é cruzada e o traidor paga com a degola. Meu povo é de guerrilha. Azar de quem pulou aqui e levou o patuá."

Chamei a "chefia" num canto e disse que esse assunto seria tratado na competência de seu falecido pai. Que fique esperto! Se ele, a "chefia" não resolvesse, o pai dele resolveria sem pestanejar.

E de fato, foi um Deus nos acuda! A coisa pipocou por toda a Vila.

No outro dia, os meninos vieram em peso na porta de casa. Pediram bolo, refrigerante, água e, como sempre, dei a todos como se nada tivesse acontecido. Um deles veio falar comigo. Olhando no olho do jovem, eu disse: "sabe meu amigo, o que machuca não é o roubo não, é saber que quem fez isso é gente que eu quero bem e cuido. Isso é que machuca, mas eu sei que tem jeito. Os que pularam aqui podem mudar, mas quem mandou fazer isso, infelizmente não tem solução." Referia-me a um cidadão maior de idade usuário de crack, o suspeito do feito!

Ele respondeu-me como olhar firme:" se depender dos que pularam tem jeito sim!"

Decidi viajar novamente e, desta vez, limitei-me, com muita resistência, a colocar apenas espetos no muro. A casa ainda estava sem grades.

Quanto retornei, ao dobrar a esquina em um dia chuvoso e escuro, a rua estava deserta e eis que aparece a "chefia" de guarda-chuva vindo ao meu encontro prestando contas:

"Fica tranquila que nada aconteceu com sua casa! E bem que você disse que mexer nas suas coisas dá degola. Os moleques que pularam na sua casa tomaram um corretivo. Um dirigindo em alta velocidade bateu de frente com outra moto e está hospitalizado com pinos na cara. O outro foi assaltar uma muié lá pra cima e acabou atirando no próprio joelho, foi preso e o outro foi roubar uma moto e foi pego e despachado para a Fundação Casa."

Convidei a "chefia" para mais um bolo com café.

Depois soube que um deles era justamente aquele com quem eu havia desabafado e que me afirmara que "ainda tinha jeito".

Gradeei a casa, reforçando a segurança. Compreendi que o problema entre os deliquentes era a maldita droga que os faz perder totalmente a noção de certo e errado, de justo e injusto e quaisquer outros valores além da miserável vida que esses jovens vivem. Eles ficam descontrolados e inconscientes. Se não estabelecermos limites, como espetos, grades, regras de convivência, entre outras providências, não adianta exigir deles que tenham limites.

Hoje, ao acordar, ouço passarinhos, vejo o jardim e as rosas que plantei desabrochando. O susto do assalto passou. A violência avança na cidade de São Paulo com as últimas notícias de chacinas e policiais mortos. Aqui perto, em Americanópolis, houve uma chacina. Agora, olho da janela da minha casinha as árvores e as flores da Vila do Encontro sem saudades da Vila Mariana, apesar do assalto. Não me arrependo de ter feito essa escolha por saber que consigo estabelecer um código de comunicação onde o diálogo atinge corações e mentes. Não estou imune a novos assaltos ou riscos, como ninguém neste mundo violento está. Sinto-me mais segura aqui nesta Vila do que em qualquer edifício com síndicos, porteiros e sistemas sofisticados de segurança.

A sensação de segurança que adquiri com essa experiência está lastreada na esperança de continuar construindo um mundo melhor e sustentável. De não apenas falar em "sustentabilidade" como teoria de acadêmicos e cientistas, mas fazê-la no meu dia a dia sem romantismos.

Voltando de outra viagem pela noite, na esquina, alguns jovens se drogavam e um deles gritou: "Ei, mais tarde eu passo lá para tomar aquele café!" Ele imitava a "chefia".

Esse passou a ser nosso código de boa convivência: um bolo com café beduíno. É o pacto de amizade de quem quer ajudar e cuida. De quem acredita que ainda tem jeito, sim!

Esses jovens são meus amigos. Nunca foram meus inimigos!

Amyra El Khalili* é economista, autora do e-book "Commodities Ambientais em Missão de Paz: Novo Modelo Econômico para a América Latina e o Caribe". São Paulo: Nova Consciência, 2009. 271 p. Acesse gratuitamente www.amyra.lachatre.org.br .

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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