Mário Maestri*
Em 20 de novembro de 1695, em um ermo perdido das matas alagoanas, no sul da capitania de Pernambuco, Nzumbi dos Palmares caía lutando, vítima da delação de um seu homem, capturado e torturado. Seu corpo foi mutilado e seu sexo, arrancado e enfiado em sua boca. A cabeça do guerreiro, decepada, foi exposta, em Recife, em um chuço, até apodrecer, para que os humildes lembrassem sempre a sorte dos que desafiam os donos da riqueza e do poder.
Nzumbi foi o último grande chefe político-militar da confederação dos Palmares, nascida da federação dos quilombos da região, que unificaram suas forças diante dos incessantes ataques escravistas. A confederação teria reunido, em diversas aldeias semi-autônomas, após o fim da ocupação holandesa do Nordeste, em 1654, uns seis mil habitantes, população significativa para a época.
Nzumbi chefiou a confederação após a defecção de Nganga Nzumba, que, em novembro de 1578, em Recife, rompeu a unidade quilombola e aceitou a anistia oferecida apenas para os nascidos nos quilombos, em troca do abandono dos Palmares e da vil entrega dos ex-cativos ali refugiados.
Para Nzumbi, não havia cotas na liberdade, ela era para todos! Acreditando nas palavras dos poderosos e na liberdade concedida para apenas alguns, Ganga Zumba abandonou as alturas dos Palmares para estabelecer-se nos baixios de Cucuá, a 32 quilômetros de Serinhaém, onde muito logo, com seus seguidores, conheceu a morte e a reescravização.
A confederação palmarina foi república de produtores livres, incrustada no seio de despótica sociedade escravista, formada por cativos fugidos da iníqua escravidão do nordeste açucareiro, ou nascido nos Palmares. Por longas décadas, significou para milhares de africanos, mas também para crioulos, nativos, mestiços e alguns homens livres, a possibilidade de materialização do sonho de viver do próprio trabalho, plantando, caçando, pescando, escambando, em liberdade.
Nos ataques derradeiros aos Palmares, as armas de fogo, a artilharia e a capacidade lusitana de deslocar e abastecer rapidamente suas tropas, registravam o maior nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais do escravismo, no contexto de relações sociais de produção desumanizadoras. As tropas que combatiam o reduto libertário eram a avançada, nas matas palmarinas, do ainda poderoso império português, parte da divisão mundial do trabalho da época. Palmares escaparia da destruição final apenas se espraiasse a rebelião aos trabalhadores dos engenhos, roças e aglomeração do Nordeste.
O quilombo do Macaco, a derradeira tentativa de resistência estática palmarina, quando a confederação vergava, foi destruído, em fevereiro de 1694, por poderoso exército colonial artilhado, formado por brancos, mamelucos, nativos e negros.
O último reduto palmarino, fortemente defendido por fossos, trincheiras e paliçada, encontrava-se nos cimos de uma altaneira serra.
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A serra da Barriga e regiões circunvizinhas, na Zona da Mata alagoana, então cobertas por densas matas, constituem ainda hoje paragem de singular beleza. O visitante que se aproxima da região, vindo do litoral, maravilha-se com o espetáculo natural. O maciço montanhoso surge abruptamente no horizonte, como fortaleza natural expugnável, dominando as terras baixas que o cercam, cobertas por imenso mar verde dos canaviais flutuando ao lufar do vento.
Quem conhece a saga palmarina, com um pouco de imaginação, ouve os tambores africanos chamando às armas os guerreiros, anunciando o aproximar das malditas tropas negreiras. Se refinar mais o ouvido, sentirá a reverberação dos tam-tans lançados do fundo da história, lembrando às multidões que labutam, hoje, longuíssimas horas ao dia, não raro até a morte por exaustão, por alguns punhados de reais, nos verdes canaviais que cercam a serra devassada, que a luta ainda continua, apesar da já longínqua morte do general negro de homens livres.
* Mario Maestri, 63, é professor do curso e do PPG em História da UPF. E-mail: [email protected]
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