Por ANTONIO CARLOS LACERDA
SÃO PAULO/BRASIL - No ano passado, 2010, depois de desnudar as entranhas da diplomacia mundial, principalmente a dos Estados Unidos, mostrando a verdade dos bastidores da política americana, revelando informações confidenciais sobre as guerras do Afeganistão e do Iraque, a prisão de Guantánamo e mensagens de serviço diplomático dos Estados Unidos, este ano, 2011, a vida do WikiLeaks não está fácil.
Seu fundador, Julian Assange, sofre processo de extradição do Reino Unido para a Suécia, onde é acusado de crimes sexuais. A Mastercard e a Visa bloquearam as doações ao site desde o fim de 2010. Além disso, o sistema de submissão de documentos ao WikiLeaks está fora do ar, depois de ter sido sabotado por um ex-funcionário.
"Somos fortes o bastante para resistir a isso, porque a opinião pública está do nosso lado", disse em São Paulo, no Brasil, o jornalista islandês Kristinn Hrafnsson, porta-voz do WikiLeaks, em entrevista ao Estadão.
Kristinn Hrafnsson acusa os Estados Unidos de estarem promovendo uma "privatização da censura", ao pressionar grandes empresas a agirem contra o WikiLeaks. O jornalista islandês fez uma apresentação na Pública, agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos, em São Paulo. A seguir, trechos da entrevista.
O que aconteceu neste ano, que vocês têm publicado menos?
Três coisas estão nos desacelerando e causando problemas. A primeira, é claro, é o caso de extradição que Julian Assange, nosso editor-chefe, está enfrentando. Neste momento, ele se encontra em prisão domiciliar por vários meses, com liberdade limitada. Isso nos torna mais lentos de alguma forma. Em segundo lugar, sofremos ataques muito sérios de gigantes financeiros. Em dezembro do ano passado, a Visa e a Mastercard decidiram fechar o canal de doações que eram nossa única fonte de recursos. Isso nos prejudicou financeiramente. Não temos os recursos que esperamos para expandir nossa atuação. Além disso, estamos sob constante ameaça de ações legais do governo americano, que tenta construir um caso contra nós, com base na lei antiespionagem. Existe um grande júri trabalhando nesse caso em Alexandria, Virginia. Falando de tecnologia, nosso sistema de submissão de documentos foi sabotado por um ex-colaborador. Vamos levar algum tempo para reprogramá-lo. Por sermos uma organização pequena, decidimos que não é uma prioridade. Seria injusto para os informantes, se recebêssemos material sem conseguir trabalhar direito. Temos de ter certeza de que não existe traço de informação que possa levar ao informante.
O que estão fazendo para resolver esses problemas?
Anunciamos na sexta-feira à noite que demandamos da Visa e da Mastercard que reabram o canal de doações. Se não fizerem isso, tomaremos medidas legais. Levaremos uma reclamação à corte européia sobre o abuso sério da posição dominante que eles têm na Europa. Juntas, a Visa e a Mastercard detêm 96% do mercado, o que é uma violação muito séria do Tratado Europeu, artigos 101 e 102. Se a Comissão Européia decidir que existe um desrespeito ao tratado, isso pode levar a uma multa de 2% a 10% do faturamento total das empresas.
Os governos tentam estrangulá-los financeiramente e nos tribunais?
Com certeza. Estamos brigando, de um lado, com a única superpotência do mundo e os maiores gigantes financeiros, de outro. Sabemos que pessoas importantes do governo americano têm ligado para empresas, agindo basicamente para nos bloquear. Isso é público. Joe Lieberman (presidente do Comitê de Segurança Interna do Senado Americano) teve contato de seu escritório com a Amazon, que hospedava nosso material, para que deixasse de fazê-lo. Tenho certeza de que a mesma coisa se aplica a outras companhias. O que está acontecendo é, basicamente, a privatização da censura. O governo coloca uma pressão forte para que esses gigantes poderosos ajam.
Qual foi o impacto do WikiLeaks no jornalismo?
Foi extraordinário. No ano passado, quando passamos a publicar este material muito importante do Departamento de Estado (dos Estados Unidos) e do Pentágono, começamos a trabalhar com jornalistas que passaram a reconhecer a importância desse conceito. Também houve hostilidade, uma resistência em admitir que fazemos parte da comunidade jornalística. Mas, devagar e gradualmente, isso está mudando. O impacto que vimos foi a aceitação da idéia de que é possível criar uma plataforma segura para informantes anônimos submeterem material para ser divulgado ao público geral. Muitos grupos de mídia estão criando suas próprias plataformas e também estamos vendo o surgimento de outros sites guiados pelos mesmos princípios. Um colega meu contou mais de 20, como BalkanLeaks e OpenLeaks. Existem vários.
E o que mudou para as empresas jornalísticas?
Estamos colocando pressão nos grupos de mídia estabelecidos para que eles trabalhem juntos, mais do que antes. Foi espetacular, em outubro do ano passado, quando tivemos a colaboração de nove grupos de mídia, incluindo o WikiLeaks. Estamos falando sobre o New York Times, o Guardian, Der Spiegel na Alemanha, El País na Espanha, Le Monde na França, o Bureau of Investigative Journalism e o Channel 4 no Reino Unido e a Al Jazeera. Foi uma aliança que nunca houve na história. Ter todos esses grupos de mídia trabalhando no mesmo projeto, compartilhando descobertas e recursos entre eles, é extraordinário. Esse é o espírito que lançamos e que será um modelo para o futuro. Porque mesmo os grandes grupos de mídia do mundo são pequenos quando comparados às organizações que precisam ser monitoradas e levadas a prestar contas. Se os grupos de mídia trabalharem em conjunto no jornalismo investigativo, conseguiremos um ótimo resultado.
O sr. disse que o WikiLeaks é um grupo de mídia. Mas vocês são um grupo jornalístico ou uma fonte para jornalistas?
Somos editores. Temos acesso a informações. Desde o ano passado, e o WikiLeaks existe desde 2006, o aspecto de análise do material e a decisão de publicação do material é feito dentro do WikiLeaks. É o caso de assuntos muito importantes, como o caso do colapso do Kaupthing Bank, na Islândia, meu país, e o caso de corrupção e assassinatos ilegais pelo governo queniano, que foram analisados pelo WikiLeaks em colaboração com a mídia tradicional. Fazemos jornalismo, em grande colaboração com os meios estabelecidos. Há quem critique a colaboração entre o WikiLeaks e os meios estabelecidos, dizendo que a informação deveria ser divulgada diretamente ao público.
Estamos basicamente trabalhando dentro das regras da comunidade jornalística. Temos acesso a um conhecimento muito importante e, pela natureza competitiva do ambiente da mídia, com um certo grau de exclusividade, é possível conseguir um compromisso mais forte de recursos maiores, em termos jornalísticos. Nossa prioridade, e nosso compromisso com as fontes, é oferecer a informação para o maior número possível de pessoas. Procuramos maneiras de fazer isso. Mas isso não quer dizer que agiremos sempre dessa forma. Quero trabalhar mais no espírito da nova mídia, e temos feito isso. A Pública (agência sem fins lucrativos) é um exemplo disso.
O sr. vê o WikiLeaks como uma resposta a essa transição do jornalismo impresso para os novos meios?
De alguma forma, sim. É um reflexo disso. Não é segredo que o jornalismo investigativo está declinando em todo o mundo, nos últimos dez anos, por falta de recursos e de profissionais. Ao mesmo tempo, os governos têm aumentado o nível de sigilo, principalmente depois do 11 de setembro. As empresas também estão crescendo em tamanho, e em paralelo a isso vemos uma privatização de atividades públicas. Antes, o que era público e aberto está sendo colocado sob domínio do setor privado, que não é guiado pelos mesmos princípios de informação livre e pública. Diante desse cenário, o WikiLeaks é uma idéia que chegou no momento certo. De certa forma, é um reflexo dessa situação.
O jornalista investigativo islandês Kristinn Hrafnsson trabalhou para a RÚV, televisão estatal de seu país, onde produziu reportagens sobre o colapso do Kaupthing Bank, com base em documentos divulgados pelo WikiLeaks. Tornou-se porta-voz da organização em meados do ano passado, depois de seu contrato com a TV não ser renovado.
ANTONIO CARLOS LACERDA é correspondente internacional do PRAVDA.RU
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