Abril comemorado no Brasil

Abril 24, 2010

No passado dia 20, na cidade de São Paulo, no Brasil, teve lugar um evento político sobre a Revolução Portuguesa de Abril que se revelou uma iniciativa a vários títulos notável. Organizado por iniciativa dos camaradas militantes do PCP aqui emigrados, foi uma realização do Centro Cultural 25 de Abril, com sede naquela cidade brasileira.


Considerando as experiências anteriores recentes, de comemoração desta data, usualmente participadas pelos camaradas e amigos do PCP e reunindo duas ou três dezenas de participantes, desta vez decidiu-se inovar e virar as comemorações deste ano para a juventude brasileira. Organizou-se então uma iniciativa/debate, para a qual foram convidados os estudantes universitários da faculdade onde lecciona uma das nossas camaradas e para o dia mais apropriado à sua mobilização, que se viu ser o mencionado dia 20, terça-feira.


Para grande alegria nossa, na hora aprazada (19h), o salão da biblioteca da Casa de Portugal em São Paulo estava completamente cheio, com mais de 200 pessoas presentes, ocupando a totalidade dos lugares sentados e com algumas dezenas de pé, na esmagadora maioria jovens universitários.
Um dos professores de história convidados, como orador na sessão, reunia a feliz condição de doutor em História com trabalhos sobre a revolução e de ex-estudante em Portugal, no período do final de 1974 e anos seguintes, sendo uma pessoa de esquerda profundamente conhecedora e apaixonada pela Revolução dos Cravos.


Interveio durante cerca de uma hora, historiando os antecedentes imediatos do 25 de Abril, o papel dos capitães do MFA (Movimento das Forças Armadas) – nome por que ficou conhecido o movimento insurreccional dos oficiais democratas – , os acontecimentos desse dia e nos dias imediatos ao golpe militar, as várias etapas dos sucessivos governos provisórios, os avanços da revolução alcançados pelas sucessivas derrotas das tentativas de golpe spinolistas, até à génese da provocação montada pela direita militar encabeçada por Ramalho Eanes que, atraindo para a acção directa o regimento dos para-quedistas, iria conduzir ao golpe contra-revolucionário do 25 de Novembro de 1975, golpe militar que inicia o processo de destruição dos avanços e conquistas revolucionárias, todos obtidos desde Abril de 1974 até meados daquele ano.

Com um carinho e um entusiasmo contagiantes, este professor foi relatando a acção das organizações operárias e populares durante todo o período revolucionário, bem como identificando os partidos e classes sociais que se confrontavam no terreno, os vários 1°.’s ministros – Palma Carlos, Vasco Gonçalves, Pinheiro de Azevedo (o tal que declarou o seu governo em greve e mandou o povo “bardamerda”), Mário Soares – abordando com destaque o papel dirigente do PCP, antes e depois do 25 de Abril, na condução dos avanços políticos, sociais, económicos e culturais operados pela revolução, assim como a acção contra-revolucionária desempenhada por Mário Soares e pelo PS, mancomunados com o imperialismo norte-americano e com o grande capital, quer os grupos monopolistas nacionais derrotados com a revolução, quer as transnacionais que se beneficiavam igualmente do regime fascista vigente em Portugal até Abril de 74.


Falando sobre o papel transformador e decisivo das massas trabalhadoras e populares, com a mobilização da vontade de milhões de portugueses, antes sem grande consciência social e política e que foram acordados para a acção revolucionária pelo gesto libertador dos capitães de Abril, o professor orador deteve-se um pouco sobre esse esfusiante fenómeno, dando como exemplo o (para ele) espantoso facto da maciça mobilização para o 1°. de Maio em Lisboa, poucos dias após o golpe militar, de uma massa de meio milhão de participantes num universo de pouco mais de dois milhões de habitantes em toda a área metropolitana de Lisboa, como a mais clara demonstração da capacidade mobilizadora da Revolução e o enorme grau de adesão popular que revelou.

Sempre atentamente escutado, o orador ia descrevendo os plenários de trabalhadores nas empresas, as greves, as ocupações de fábricas para evitar o roubo de máquinas e equipamentos, as experiências de auto-gestão operária, as barricadas populares nas entradas de Lisboa para barrar e anular a marcha da “Maioria Silenciosa” no 28 de Setembro, os enfrentamentos e escaramuças de rua, as manifestações e os comícios, a acção dos populares demovendo os militares golpistas que cercavam o RALIS no 11 de Março, as assembleias de moradores, as jornadas de generoso trabalho voluntário, a solidariedade dos operários metalúrgicos com a Reforma Agrária, a mobilização das organizações operárias e populares que, dia-a-dia, iam organizando as acções defensivas da revolução.


As caras jovens dos presentes iam revelando os sentimentos que os tomavam, ouvindo aqueles relatos. Perplexidade e espanto, admiração, entusiasmo, adesão empolgada à capacidade transformadora que a Revolução foi capaz de operar nos sentimentos, na vontade e na determinação de progresso do povo português, à medida que iam sendo descritos pelo palestrante.

E iam ouvindo falar, decerto pela primeira vez, na fuga dos capitalistas, na ocupação e gestão operária das empresas abandonadas pelos patrões e mantidas a produzir pelos seus próprios trabalhadores, nas acçõespopularespelo fim das guerras coloniais e regresso dos soldados, na ocupação das terras dos latifundiários pelos operários agrícolas e na constituição de centenas de cooperativas rurais, na eleição de combativas comissões de trabalhadores em milhares de empresas e na explosão das suas reivindicações, na constituição de comissões de moradores que geriam os bairros populares e dirigiam, muitas vezes, a ocupação por famílias pobres de casas deixadas devolutas, nas nacionalizações da banca e das empresas nos principais sectores económicos estratégicos, realizadas pela iniciativa revolucionária dos seus trabalhadores e dos sindicatos, na gestão democrática e participada das escolas, nas estruturas do Estado tomadas pelos democratas, depois da expulsão dos fascistas e dos colaboracionistas oportunistas e reaccionários, enfim, um rol de transformações políticas e conquistas sociais que iam desfilando pela mente dos ouvintes deixando-os extasiados, até por efeito do chocante contraste que este relato ia estabelecendo com o que conhecem e vivenciam no seu dia-a-dia brasileiro do presente, um presente distante, geográfica e temporalmente, desse tempo português lá atrás, há trinta e seis longos anos, um tempo no qual a fraternidade, a confiança no futuro e a alegria de viver andavam no ar que respirávamos.


Alguns de nós próprios, participantes directos de muitos daqueles e de outros acontecimentos do período revolucionário em Portugal, era também com emoção que íamos escutando e aferindo o relato do orador, recordando com admiração e justo orgulho aquelas páginas da História portuguesa recente, ali tratadas por quem de fora nos estudou e observa, valorizando repetidamente, talvez até mais que nós próprios, o alcance e o significado daqueles avanços revolucionários alcançados pelos portugueses e depois tão duramente fustigados e destruídos pelos sucessivos governos contra-revolucionários, num processo liquidacionista que dura até aos dias de hoje.


No final da sessão, depois de se ouvir uma prolongada salva de palmas, por certo dirigidas a Abril e ao orador – amplamente merecidas, até pela sua notável capacidade comunicativa -, uma camarada professora, dizia-me: “Que bom seria fazermos também lá [em Portugal] sessões deste tipo para os nossos jovens, tão mal informados sobre a nossa Revolução!…” Ouvindo-a com atenção, respondi-lhe que por estes dias estão a ter lugar por todo o país centenas de iniciativas comemorativas do 25 de Abril, dos mais variados tipos, decerto algumas também direccionadas para a juventude, nomeadamente organizadas pela JCP, a nossa “juventude do PC!”.


Ela concordou, mas eu fiquei pensando como seria bom, de facto, termos muitas iniciativas semelhantes àquela e realizadas para divulgar e explicar aos portugueses jovens os acontecimentos transformadores e progressistas do período revolucionário em Portugal que não viveram e, sobretudo, para difundir entre a juventude a ideia estimulante e mobilizadora da Revolução.


De facto, demasiadas vezes rememoramos os acontecimentos de 1974/75 com uma perspectiva errada, que não é a nossa, elencando os ganhos e conquistas sociais, (sobre)valorizando a obtenção da democracia política formal burguesa, uma relação de avanços que é correcto fazermos mas subestimando o dado mais importante: tudo o que o nosso povo alcançou, de extraordinários avanços progressistas, de avanços históricos ímpares no século XX político europeu – e mesmo mundial -, foi obtido pela Revolução, uma revolução democrática e nacional de características profundamente populares, iniciada no dia 25 de Abril de 1974 com o golpe militar e prosseguida pela acção diária organizada, determinada, combativa, abnegada de amplas massas populares, tornadas o sujeito principal da marcha da História, com o papel destacado desempenhado pela classe operária e pela generalidade do proletariado, logo secundados por outras camadas sociais igualmente exploradas e oprimidas pelo fascismo e que, unidas à componente revolucionária do MFA, estiveram na base das principais transformações revolucionárias deste tão rico e exaltante período da história contemporânea portuguesa.


Sobretudo para os jovens, faltam-nos com frequência estes relatos vivos dos acontecimentos que podem ser contados por tantos milhares de militantes e revolucionários, tal como nos falta dar prioridade à valorização da própria actividade revolucionária de um povo que, aprendendo em semanas ou meses aquilo que não tinha conseguido aprender durante décadas de repressão e opressão fascistas, foi capaz de construir um regime democrático de características únicas, incomparavelmente mais democrático e progressista que a mais experiente democracia das velhas democracias burguesas.


Os historiadores burgueses e os comentaristas neoliberais de todos os quadrantes vão nestes dias redobrar os seus esforços permanentes para iludir o carácter revolucionário do 25 de Abril português, visando “reescrever” o nosso passado próximo, chamando docemente “Estado Novo” ao regime fascista e falando na “evolução” para a “democracia”, falando de Abril como uma “transição” marcada por muitos “exageros” mas que o redentor (para eles) golpe do 25 de Novembro permitiu anular, assegurando a passagem para o tão amado (por eles!) “Estado Democrático de Direito”.


Nós rejeitamos energicamente tal mistificação e tais “releituras” burguesas da Revolução Portuguesa de Abril. Agredida, fustigada, mistificada, interrompida, praticamente destruídas todas as suas conquistas, nós continuamos a afirmar Abril como um revolução democrática inacabada, tal como afirmamos que o regime caduco e esgotado que lhe sucedeu nos reclama lutarmos corajosamente por uma urgente e renovada ruptura revolucionária, democrática e patriótica, que retome os caminhos luminosos de Abril, rumo ao futuro de um regime verdadeiramente democrático e de plenas liberdades para todos os portugueses – políticas, económicas, sociais, culturais, de soberania nacional -, futuro que já divisámos no nosso horizonte colectivo há 36 anos e que ainda aí está adiante de nós, conclamando-nos a agir, a unir vontades e energias, a lutar sem desfalecimentos, até à derrota de todos aqueles que hoje protagonizam a mais despudorada traição aos interesses nacionais e às mais profundas e legítimas aspirações de progresso social do povo português.

Julio Filipe
Brasil

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey