A tragédia do clientelismo

Hamilton Garcia de Lima

Vem se tornando bastante comum, no meio acadêmico e entre os formadores de opinião, a percepção de que o clientelismo é um falso problema, pois manifestação hodierna, mesmo que enviesada, da inclusão política e social. Para estes intelectuais, o clientelismo vem ao encontro dos anseios de cidadania dos excluídos, derivando daí a razão de sua popularidade entre as maiorias carentes de políticas públicas e sua impopularidade entre a minoria já atendida por elas ou pagadora de serviços privados.

Os argumentos positivantes do clientelismo são, como ocorre em grande medida à maioria dos produtos da perspectiva funcionalista de viés conservador, bastante simplificadores, não obstante sua aparente sofisticação. O aspecto mais problemático deste tipo de abordagem encontra-se em sua relativa alienação histórica: partindo de uma literatura estrangeira e de sua tosca adaptação ao nosso contexto nacional, perde-se de vista que não se trata de fenômeno assincrônico, ou seja, desconectado de um contexto específico que lhe empresta determinado sentido em vez de outro.

Se alguma inteligibilidade tal análise nos permitisse, ela não ultrapassaria os umbrais das periferias das maiores cidades brasileiras nos anos 1960-1980, quando a expansão econômica criou as grandes cidades-dormitório carentes de Estado. Neste cenário, as políticas públicas adentraram a vida cotidiana pela mão de chefes políticos locais que manipulavam discricionariamente recursos de estruturas estatais embotadas — como foi o caso da Baixada Fluminense sob o tenorismo e o chaguismo.

Hoje, ao contrário, a função social do clientelismo é marginalmente prover serviços onde eles não existem e muito mais perverter estruturas estatais razoavelmente desenvolvidas e estruturadas, em proveito de grupos privados de poder. Não que não existam buracos na malha estatal de serviços — no plano federal, estadual e municipal —, mas tais “buracos” são politicamente construídos visando a enfraquecer o Estado em proveito do empoderamento dos grupos que controlam o voto popular.

Neste novo contexto predominante, em níveis diferentes conforme o desenvolvimento regional, estes “buracos negros” atraem uma massa compacta de interesses privados que impedem o fluxo normal do interesse público, promovendo-o por caminhos perversos. Apesar da irracionalidade burocrática do procedimento, sua legitimação ocorre pela prevalência do senso comum popular, que tende a perceber o interessse privado como mais palpável e seguro que o interesse público — pecado venial da superficialidade leiga, que não poderia ser repetido por intelectuais de alta cultura.

Na modernidade, o interesse público é provido através de estruturas burocráticas, cujos objetivos são o de maximizar os benefícios ao maior número possível de pessoas a um custo economicamente sustentável. Nela, o clientelismo atua não como agente catalizador de políticas públicas, como na protomodernidade, mas como corrosivo de estruturas burocráticas que as canalizariam em proveito da cidadania, restringindo, ao invés de ampliar, o alcance e a efetividade das políticas de bem-estar.

É o caso, por exemplo, das freqüentes interferências de vereadores e deputados, ou pretendentes, nas organizações públicas de ensino, saúde, assistência social, etc., visando a privatizar parcelas de suas estruturas de atendimento em benefício de seus cabos eleitorais e potenciais eleitores. Neste esforço político predatório, os agentes públicos são coagidos, sob pena de perderem seus cargos ou bônus de promoção, a fraudarem a ética pública em proveito da ética egoísta dos dirigentes do Estado e seus asseclas, sacrificando, em proveito de critérios eleitorais, os critérios técnicos e impessoais de seleção para admissão em creches, escolas e leitos hospitalares dependentes da rede pública.

O clientelismo, sob esta ótica, é muito mais perverso do que outrora, quando as estruturas burocráticas do Estado mal se formavam. Isto porque, hoje, ele se limita a corromper as possibilidades de atendimento generalizado de boa qualidade, criando, de quebra, um grave problema político: a desmotivação e o desvirtuamento do funcionário público, bem como a fragmentação da própria cidadania. Ambas as vítimas do clientelismo perdem sua autonomia e passam a cultivar laços de dependência com quadrilhas “políticas” que as tranformam em verdadeiros vassalos, pedintes de seus algozes, em meio a uma anomia civil e corporativa que lembra mais o velho “coronelismo” que a tão almejada modernidade.

As eleições que se avizinham, sem as reformas poíticas que fortaleceriam os partidos e outros atores coletivos democráticos, estão fadadas a repor o status quo do clientelismo hodierno e seus malefícios, marca registrada do Brasil: um país desigual e injusto que tropeça na tacanhez histórica de sua elite política.

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Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da UENF (Campos, RJ).

Junho de 2008

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil

http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=934

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