A ordem medieval inscrita nas ordens profissionais

 

 A ordem medieval inscrita nas ordens profissionais


Bem no seio da estreiteza intelectual e política que se vive na paróquia lusa estão as ORDENS PROFISSIONAIS, uma emanação corporativa de tempos medievais, replicada pelo actual regime pós-fascista a antigas e novas profissões. 

  

Se um Estado reconhece um diploma emanado das suas próprias instituições (temos mais dúvidas em relação aos emitidos por algumas instituições privadas de venda de diplomas), o diplomado deveria ficar livre de tutelas corporativas de grupos mais ou menos mafiosos de profissionais encartados que se arrogam ao direito de condicionar a entrada de jovens na profissão que escolheram e, depois de tecnicamente tomados como habilitados a tal.

  

As castas ou gangs que dominam as Ordens equiparam-se aos medievais mestres das artes e ofícios que decidiam o enquadramento na profissão e avaliavam as qualidades dos aprendizes do ofício bem como a sua progressão. Na Idade Média as corporações eram autónomas do aparelho de Estado, pela simples razão que aquele era embrionário. Hoje, ao contrário dos tempos medievos, o Estado intervém nas Ordens da pior forma, validando condicionamentos no acesso ao exercício da profissão, para que os barões da mesma tenham um vasto mercado. 

  

As Ordens impõem as regras, os percursos e todos os passos para aceitarem um novo membro.

  

Daí surgem as obrigações de estágios, organizados pela Ordem e pagos pelos estagiários (ou melhor, pelas suas famílias), depois de terem arcado com as propinas de um ensino privado ou público. No caso de uma estagiária de advocacia que conhecemos, o seu patrono - dono de um conceituado escritório de advogados - no âmbito de um caso que entregara à estagiária para resolver, decidiu que ela deveria deslocar-se a uma cidade do norte do país, com as despesas ... a seu cargo... mesmo que ela não auferisse um cêntimo durante o estágio. 

  

No caso dos psicólogos, os recém-licenciados começam a sua relação com a Ordem com a inscrição e o pagamento de quota mensal, mesmo que não tenham qualquer rendimento próprio. Depois, têm de encontrar onde possam estagiar - um estágio remunerado - o que no modelo neoliberal de redução constante dos direitos no âmbito do trabalho, não é coisa fácil. E ainda são obrigados a frequentar cursos de formação, ministrados pela Ordem e pagos, por quem ainda não tem o direito de trabalhar na sua profissão, sem o aval dos oligarcas. 

  

Como a psicologia é desprezada pelos governos, muito mais próximos da classe médica (psiquiatras, neste caso, que tendem a resolver as situações com antidepressivos ou com fármacos à base de lítio), Portugal está nos primeiros lugares na parcela da população com problemas de ordem psíquica - 22% (contra 9% em Espanha). 

  

Espanta, como num cenário político e económico tão neoliberal, onde se sublinham as delícias do empreendedorismo, da competitividade, do auto-emprego, da empregabilidade, existam Ordens de onde exala um fedor medieval e oligárquico, cuja função é hierarquizar os profissionais entre ricos, pobres e desempregados e obter o seu quinhão na partilha dos impostos. 

  

Salazar, nunca conseguiu levar até ao fim o seu projeto de instaurar o modelo de "Estado Corporativo" gerado na Itália fascista; e é interessante verificar a criatividade do regime pós-fascista (leia-se PS/PSD) no aprofundamento da ordem corporativa a muitas mais profissões do que Salazar conseguiu. 

  

Nesse contexto, existe uma coisa parasitária chamada CNOP - Conselho Nacional das Ordens Profissionais - que afirma ter por objetivo "promover a autorregulação e a descentralização administrativa, com respeito pelos princípios da harmonização e da transparência"; que visa "a autorregulação de profissões cujo exercício exige independência técnica"; e que as Ordens não podem exercer funções sindicais (à atenção de Ana Rita Cavaco...). 

  

Vamos de seguida enumerar as profissões regidas por Ordens por ordem alfabética, para que tudo fique na devida...ordem: arquitectos, biólogos, contabilistas certificados, despachantes oficiais, economistas, enfermeiros, engenheiros, farmacêuticos, médicos, médicos dentistas, médicos veterinários, notários, nutricionistas, psicólogos, revisores oficiais de contas e solicitadores e agentes de execução. Falta a fabulosa Ordem dos advogados que não se mistura com as anteriores, eventualmente requerendo uma CNOP... só para si.

  

A própria designação de bastonário para a figura realenga do chefe da Ordem tem um cunho medieval, pois designava o portador do bastão de uma confraria numa procissão; ou um apetrecho também usado por marechais... onde existam. Se um bastão tiver uma curva na ponta passa a chamar-se báculo e é usado por outra figura de autoridade com odor medieval - um bispo. Não confundir báculo com... um bácoro que por vezes empunha um bastão!

  

Para replicarem totalmente a prática das ordens profissionais da Idade Média, falta-lhes (?) arranjarem um santo padroeiro e terem fundos para apoio social das famílias com problemas. E mais, porque não ostentarem os seus pendões e bandeiras nas marchas ditas populares de Santo António? Os turistas deveriam achar very interesting a rivalidade entre a marcha dos advogados, de negro fardados e, a dos médicos de branco ataviados, com os respetivos bastonários à frente, fazendo piruetas com os bastões. Wonderful!

  

A mesma lógica corporativa vem-se verificando com a criação de sindicatos como pequenos grupos profissionais fechados, com escasso número de elementos, com poder de chantagem sobre os governos e a sociedade e, desligados de qualquer integração com outros trabalhadores. Pequenas mafias e nada mais. Cada um é uma Cosa Nostra.

  

Neste contexto corporativo, é muito sentida a falta de Ordens para arrumadores de carros, condutores da Uber, canalizadores, eletricistas, reparadores das linhas telefónicas, pedreiros, vidraceiros, sem esquecer a Ordem dos Abrolhos para os membros da classe política...É injusta a discriminação!


2 - Um  país de merda, com uma justiça de merda

  

Nesse país (que não referimos para não sermos processados) foi descoberto, imagine-se, um juiz de merda (cujo nome não dizemos para não sermos processados). E cuja verdadeira vocação melhor teria sido a instrutiva leitura, a grupos de imbecis, de um compêndio de sacras idiotices, pelo menos duas vezes milenar.

  

Claro que a coisa não ficou por aí porque o dito juiz, frustrado nessa sua vocação, decidiu dar a bênção aos energúmenos que maltratam as mulheres; e isso, aliás, tem toda a coerência, dado que as coisas se passam num país de merda, com uma justiça de merda onde um juiz que não seja de merda, destoa e se arrisca a ser sancionado. 

  

No tal velho compêndio, as mulheres são tratadas abaixo de cão, como se diz no vernáculo ... com o nosso pedido de indulgência pela referência ao canídeo perante os circunceliões que gostam muito dos animais, sobretudo se forem... de raça e encerrados todo o dia num terceiro-esquerdo, à espera de uma saída para largar a bosta. Adiante.

  

Esse tratamento decorre, apesar do esforço de muitos séculos de elevadas discussões teológicas, até que pelo século XVIII, os estudiosos do compêndio descobriram que, afinal, as mulheres também tinham alma! Há vários milénios a alma só havia sido outorgada, no compêndio, aos machos, o que não deve espantar ninguém pois o compêndio foi inventado em masculinas meninges. Para complicar e a despeito de tanto estudo teológico, essa coisa da alma, afinal, não existe em homem ou mulher, cão ou periquito, magnólia ou couve-lombarda. 

  

Embora se saiba que a alma não é coisa alguma que fique por aí a circular depois da morte do seu dono - para se livrar do enterro ou do fogo da cremação - o tal juiz de merda continua a basear-se no vetusto e divertido compêndio, despido dessas modernices que elevam as mulheres a ter prerrogativa masculina, como essa de ter alma. Imagine-se! E, zás, manda lavrar em acta.

  

"Se uma mulher é espancada é porque o merece dado que... muito justamente não tem alma, nem o discernimento e a propensão dos machos para a liderança. O lugar da mulher é abaixo e debaixo do homem", diz o pouco imaginoso juiz, sentenciando a espancada fêmea ao sacrifício inerente à sua condição de subalterna, de saco de boxe, libertador dos maus humores do viril companheiro. 

  

E, sela a sentença com uma martelada na mesa que encima o cenário tribunaleiro onde também costuma figurar uma estátua de mulher de olhos vendados com uma espada na mão; nos tempos que correm, melhor seria tirarem-lhe a venda e deixaram-na com um telemóvel com jogos, muitos e cretinos, para se entreter, já que não é possível lavar loiça na sala de audiências embora haja uma bandeira que serviria para a secagem.

  

Entretanto, porque os serviços de advocacia contribuem decididamente para o aumento do PIB, o tal juiz de merda (que não nomeamos para não sermos processados) contrata um advogado de merda para tratar um assunto que é de merda e tem por cenário, um país de merda (que não referimos para não sermos processado) e onde vigora uma justiça de merda.

 

https://grazia-tanta.blogspot.com/2019/07/textos-de-circunstancia-4.html

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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