O grande problema chama-se capitalismo e não globalização

O grande problema chama-se capitalismo e não globalização

Há quem considere que a globalização tem de ser cavalgada pelo capitalismo e quem entenda que o nacionalismo deve substituir a globalização, aceitando o capitalismo. Duas vias, um só vencedor, o capital

Texto: Vítor Lima, Economista · 17 Fevereiro, 2017

A globalização é um longo processo no âmbito do qual se vem construindo a Humanidade. A Terra só se tornou conhecida nos seus principais contornos, com a integração das Américas, da Austrália e das ilhas do Pacífico, a que ficaram ligados os nomes de Colombo, Gama, Magalhães... O estabelecimento de rotas marítimas consolidou e densificou as relações comerciais, as trocas culturais, a miscigenação, sem que se deva esquecer o conspurco constituído por guerras, saques, lutas religiosas, escravatura, genocídios.

Enquanto essa globalização acelerava, a China e o Japão fechavam as suas fronteiras, num encerramento nacionalista que só lhes viria a trazer atraso e humilhação.

A China, que no século XV tinha condições técnicas para praticar um caminho marítimo para a Europa, fechou-se sobre si mesma, queimando os seus enormes navios de 2000 t, muito antes da construção dos galeões europeus, que no século XVII se ficavam ainda por 600 t.

Muito cobiçada, a China, foi retalhada em zonas de influência, ocupada, destruída em guerras que só terminaram com o triunfo de Mao em 1949. O Japão, por seu turno, só saiu do seu isolamento perante a ameaça dos canhões do almirante Perry em 1854. Ainda que com formas e em tempos históricos diversos, aprenderam rapidamente as vantagens do capitalismo, sobre a ruralidade e o feudalismo, cavalgando a globalização. Hoje, com outros países da sua área geográfica, vão mostrando a nova centralidade política e económica do planeta - no Pacífico Ocidental ou na Ásia Oriental, como se prefira, tendo em conta que o planeta é redondo.

Essa nova escala tornou obsoleta a ordem feudal, os seus ducados e condados, tal como arruinou as cidades-estado italianas baseadas no comércio mediterrânico e na finança. Daí resultou que a Alemanha e a Itália só tenham surgido como estados e actores na concorrência inter-imperialista, muito depois de a Inglaterra e a França terem repartido o mundo entre si; tendo decorrido daquele atraso, ambições territoriais que originaram duas guerras mundiais.

Enquanto se extinguiam impérios, relicários históricos como o império Austro-Húngaro, ou o Otomano, entrava-se numa era em que a expressão "a cada povo o seu estado" correspondia aos desejos de cada burguesia de se considerar dona de um território - qual herdeira dos antigos senhores feudais - com direitos de exploração, em exclusividade, dos seus recursos; e sobretudo, do trabalho desenvolvido pela sua população, em disputa constante com os vizinhos.

As nações colonizadas - "não civilizadas" - iriam ficar ainda durante algumas décadas fora desses direitos de autonomia, uma vez inseridas na concorrência inter-estatal, inter-imperialista, entre os vários capitalismos nacionais globalizados.

A globalização é um processo de aproximação dos povos, anterior ao capitalismo que, sem dúvida a aprofundou e estendeu. Os limites inerentes ao capitalismo na sua versão neoliberal, hoje dominante, são conhecidos - concentração dos capitais na área financeira, captura de pessoas e estados através da dívida, emagrecimento de rendimentos do trabalho e dos direitos, baixo crescimento (esse fetiche do capitalismo), abandono de grande parte da Humanidade na doença e na inanição, menosprezo pelos efeitos colaterais da produção e circulação, no ambiente e na cadeia alimentar, subaproveitamento das tecnologias e dos conhecimentos existentes, mercantilização das vidas...

Hoje, politicamente, a hierarquia do capital é determinada pelo capital financeiro e pelas multinacionais que dirigem a acção das classes políticas nacionais, regionais ou globais no sentido da "gestão dos recursos humanos" através de um placebo denominado democracia representativa, da administração dos fundos da punção fiscal, com a submersão das pessoas em enormes caudais de informação enviesada e cascatas de dívida.

Hoje, os estados nacionais, na sua grande maioria, têm a soberania restringida ao uso do hino e da bandeira, uma vez que as ciosas burguesias nacionais, que outrora se acantonavam nos seus territórios, foram substancialmente substituídas pelas redes globais de negócios das multinacionais, que integraram os recursos dos estados-nação, deixando aos capitalistas locais os negócios paroquiais.

Perante esta situação em que a globalização tem sido aproveitada e ampliada pela lógica do capital, há dois caminhos que se podem apontar como alternativos:

Um desses caminhos é o do romântico retorno aos nacionalismos que enformaram as entidades estatais até à II Guerra, na Europa; ou, até ao final dos anos 60, no caso dos antigos espaços coloniais, na sequência da descolonização. Os seus defensores de hoje acreditam em medidas keynesianas, ancoradas em gastos públicos, de difícil concretização dadas as limitações de rendimentos de populações empobrecidas e porque a produção é segmentada e distribuída por vários territórios, só globalmente tendo coerência. O retorno a uma moeda própria é uma via rápida para a inflação, a exigir a repressão adequada, protagonizada por sindicatos domesticados, numa política com efeitos semelhantes à actual "desvalorização interna".Essa deriva nacionalista, fixando-se numa maior relevância das fronteiras, facilmente se torna xenófoba à medida que as dificuldades se desenvolvem; e, o patriotismo facilmente se torna fascismo, como se assistiu na conjuntura autárcica dos anos 30.Por outro lado, como reconstruir estados-nação, cujas principais estruturas económicas fazem parte das redes multinacionais e onde as burguesias autóctones pouco mais são do que conjuntos de empresas descapitalizadas perante populações de escasso poder de compra? Finalmente, em todas as derivas nacionalistas, de direita ou de "esquerda" aponta-se a globalização como causa de todos os males, admitindo-se implicitamente que o capitalismo deve continuar desde que reforçado por nacionalizações... desde que não atingissem o capital estrangeiro, como aliás se observou em Portugal, em 1975.

Um segundo caminho consiste na superação do capitalismo, necessária quando os próprios bancos centrais reconhecem não terem formas de superar a próxima crise financeira, como conseguiram depois de 2008. Se a dívida global cresce em ritmos claramente superiores ao aumento do PIB e se os rendimentos das populações de muitos países são anémicos, a solução terá de passar por um enorme encolhimento do capital financeiro, em contrapartida da anulação de muita dessa dívida, matematicamente impagável.

Diante deste cenário de alta probabilidade deve ter-se em conta:

a) Que não há uma narrativa anticapitalista atualizada e popular, democrática e crítica das sociedades de trabalho, sobrando no terreno, as velhas lógicas autoritárias, burocráticas, crentes no crescimento do PIB, comuns nas margens esquerdas dos regimes parlamentares. Sendo marginal aquela narrativa e perante a crise social que se vive, desenvolvem-se lógicas nacionalistas, xenófobas e fascistas susceptíveis de grande apoio eleitoral, de onde vão saindo Brexits, Trumps ou Le Pens, pobreza e guerra.

b) Qualquer narrativa anticapitalista não pode recusar a unidade da espécie humana, acelerada pelo capitalismo nas últimas décadas e, pelo contrário, deve responder à unidade do capital com a unidade da multidão de trabalhadores, ex-trabalhadores e marginalizados, independentemente do local de nascimento, da nacionalidade, da "raça", da confissão religiosa, do género.

Essa unidade, há cem anos tinha um nome, entretanto esquecido - internacionalismo; e, certamente não se cimentará através de ditaduras do proletariado mas, com a criação de redes rizomáticas de cariz local/regional actuando de modo concertado e solidário e decisão radicalmente democrática.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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