Tráfico de crianças nos Estados Unidos sob conivência estatal

Tráfico de crianças nos Estados Unidos sob conivência estatal: Quem julga o Império mais terrorista da história?

O Departamento de Saúde e de Serviços Humanos, agência federal dos Estados Unidos (HHS, na sigla em inglês) designada pelo Congresso para custodiar crianças estrangeiras que ingressam ao país desacompanhadas (unaccompanied alien children, ou UAC na sigla em inglês), a fim de protegê-las do tráfico humano, tem entregue esses menores exatamente aos traficantes que os utilizam em trabalho análogo à escravidão, sob muita coerção e ameaça de acordo com o relatório da Subcomissão Permanente sobre Investigações do Senado norte-americano, publicado no último dia 26 de janeiro.

Intitulada Protegendo Crianças Estrangeiras Desacompanhadas do Tráfico e de Outros Abusos, a investigação conclui que 28 menores foram traficados após agentes federais tê-los entregues a adultos que deveriam cuidar deles. Outros menores 15 também apresentam sinais de tráfico. Os traficantes retinham os ganhos financeiros das vítimas, e lhes davam muito pouco dinheiro para alimentação e necessidades básicas sob ameaça de agressão física e de morte, inclusive contra os familiares desses menores.

De acordo com indiciamento realizado em 2015, um traficante chegou a agredir uma vítima por esta ter se recusado a entregar o salário. Os traficantes puniram outra vítima menor de idade quando ela havia se queixado trabalhando em uma fazenda do ovo, conduzindo-a a um trailer diferente, segundo a investigação, "anti-higiênico e inseguro, sem cama, sem calor, sem água quente, sem banheiro e com vermes. Os traficantes, então, chamaram o pai da vítima menor de idade, e ameaçaram atirar na cabeça do pai se a vítima menor não trabalhasse. Os réus usaram uma combinação de ameaças, humilhação, privação financeira, coerção, manipulação da dívida e monitoramento para criar um clima de medo e de desamparo que obrigaria [as vítimas] ao cumprimento [das ordens]".

Tais crianças somam-se às pelo menos seis que chegam a 14 anos de idade, traficadas da Guatemala em 2014 sob promessas de uma vida melhor à cidade de Marion, no estado de Ohio, após terem estado sob custódia federal, fato descoberto por juristas que motivou a instauração da atual Subcomissão Permanente. 

A investigação, que busca determinar se as entregas de menores em Marion foram uma trágica série de erros ou uma deficiência mais sistêmica no processo de custódio da HHS, aponta que tais crimes vão além do contrabando de menores, conforme tenta-se fazer crer, caracterizando-se ainda mais gravemente em tráfico de crianças migrantes, diferença esta bem definida pelo Departamento das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes. 

"Durante um período de quatro meses em 2014 [de junho a setembro], no entanto, a HHS supostamente colocou um número de UACs nas mãos de uma quadrilha de traficantes de seres humanos que as forçaram a trabalhar em fazendas de ovos em Marion e arredores, em Ohio, levando a uma acusação criminal federal. Segundo a acusação, os menores vítimas eram forçados a trabalhar seis e até mesmo sete dias por semana, doze horas por dia. Os traficantes ameaçaram repetidamente as vítimas e suas famílias de agressões físicas, e até mesmo de morte, se não trabalhassem ou abrissem mão de todo o salário. A acusação alega que o réus 'usaram uma combinação de ameaças, humilhação, privação,  coerção financeira, manipulação da dívida, e monitoramento a fim de criar um clima de medo e de desamparo que obrigaria [as vítimas] ao cumprimento [das imposições]", relata a investigação.

Em agosto de 2014, a HHS permitiu que um "tutor" de menores impedisse determinado funcionário do bem-estar infantil de visitar uma das vítimas, mesmo depois de o funcionário ter descoberto que a criança não estava vivendo no endereço arquivado pela HHS, relata a investigação.

"É intolerável que o tráfico humano - a escravidão moderna - possa ocorrer em nosso próprio quintal", disse o senador republicano por Ohio, Rob Portman, presidente da Subcomissão. "Mas o que faz com que os casos de Marion sejam ainda mais alarmantes, é que uma agência do governo dos Estados Unidos foi responsável pela entrega de algumas das vítimas às mãos de seus agressores. 

Com base nessa investigação, o Subcomitê conclui que as políticas e os procedimentos da HHS são inadequadas na proteção às crianças que entram no país norte-americano. As graves deficiências encontradas pela Subcomissão inclui fatos tais como a permissão de que supostos tutores, após a entrega de uma criança, recusem trabalhos pós-entrega e até mesmo impeçam o contato do menor com a agência, além do que muitos desses menores nem sequer constam no processo de imigração.

Entre as várias deficiências sistêmicas no processo de entrega de menores por parte da HHS, a Subcomissão aponta que a agência federal tem sido incapaz de proteger as crianças de tutores da tentativa destes de acumular vários filhos, além do uso inadequado de dados domésticos, fragilidade na realização do trabalho pós-entrega, e que a HHS não garante que um tutor tenha renda adequada para manter um menor de idade. É enfatizada também a falta de transparência por parte da agência no que diz respeito às regulamentações e aos procedimentos do programa de acolhimento de menores desacompanhados nos Estados Unidos

Em 1º de julho de 2015, um júri federal indiciou quatro réus pelo recrutamento e contrabando de cidadãos guatemaltecos para os Estados Unidos, com a finalidade de executarem trabalho forçado em campos agrícolas em uma fazenda ovo em Marion. Entre as vítimas, há vários menores que foram entregues a tutores através do Programa de Crianças Desacompanhadas (Unaccompanied Children Program) da HHS.

Segundo a acusação, a partir de 2011 os réus e conspiradores anônimas trouxeram cidadãos guatemaltecos para os Estados Unidos para trabalhar em regime forçado. Em meados de março de 2014, os réus começaram a recrutar menores sob promessas de colocá-los em escolas e de boas condições de trabalho, acreditando que esses menores seriam mais fáceis de serem trazidos ao país sem apresentarem problemas jurídicos, mais fáceis de serem controlados, e que trabalhariam com mais intensidade", segundo o indiciamento.

"Qualquer que seja o ponto de vista sobre a política nacional de imigração, todos concordam que o governo tem a responsabilidade de garantir a segurança das crianças migrantes que entraram sob custódia do governo, até a data do julgamento da imigração", disse o senador Portman.

Acima do bem e do mal

Nos Estados Unidos tais crimes quase não viram notícia, barbaridades que não importam aos porões do poder político e nem à sociedade local: a democracia mais eficiente que o dinheiro pode comprar segue intensamente distraída pela esquizofrenia islamofóbica, profundo sentimento de ódio promovido sobretudo pela AIPAC sionista e pelos meios de comunicação hegemônicos, com o velho caráter fascistoide que marca uma das sociedades mais discriminatórias do planeta, exatamente a norte-americana - lembremo-nos da emblemática organização secreta e terrorista, jamais considerada como tal pelo regime de Washington, a Ku Klux Klan, à solta ainda hoje em nome do ódio racial.

Em março de 2011, WikiLeaks entregou ao jornal mexicano La Jornada diversos telegramas secretos revelando que parte do tráfico ilegal de armas dos Estados Unidos ao México era tão secreta quanto estatal: ignorando solicitações e reclamações da Cidade do México, tinha sinal verde por parte dos lords do bem-dizer do regime de Washington, sob o codinome Fast and the Furious (Rápido e Furioso) que acabaria se tornando um escândalo, devidamente abafado (reportagem de La Jornada. Graças a esse plano elaborado pela administração do Nobel da Paz, Barack Obama, circulam em solo mexicano atualmente mais de 2 mil rifles de alto calibre, fora de controle. Armas de guerra, também contrabandeadas do norte "avançado" ao sul "atrasado", são proibidas por lei no país latino-americano, porém sua comercialização é livre na "democracia mais avançada do planeta", mal-acostumada a espalhar violência e terror mundo afora.

Tiroteios por todos os Estados Unidos quase que semanais em escolas, shopping centers e nos mais diversos lares e locais públicos, fazem a sociedade mais armada do mundo, ostentadora da maior população carcerária do planeta e maior consumidora de drogas do globo, perpetuar o velho bang-bang existente desde o genocídio contra os povos originários, que possibilitou a anexação de 50% do território mexicano.

Por um lado idolatrado desde Hollywood, este cenário é precariamente transformado em "parte da paisagem" com a qual o cidadão estadunidense deve conviver e combater até vencer, isto é, não se encara a guerra civil por que vive o país como subproduto de suas políticas domésticas altamente repressivas, e coercitivo-expansionistas mundo afora, baseadas na indústria bélica, a força de uma "raça superior". Senso comum entre o establishment, trata-se de culpa de inimigos "invejosos" e "rancorosos" sempre combatidos a todo o custo, porém jamais vencidos. A mesma estupidez intelectual que crê no excepcionalismo norte-americano impede de conectar minimamente os fatos, a fim de enxergar que esse excepcionalismo não consegue sobrepassar as telas do cinema.

Isso tudo, apenas para mencionar a política doméstica e a realidade social dentro dos Estados Unidos, sem mencionar sua "política externa" (eufemismo para crimes contra todas as leis internacionais cujo país, apenas na América Latina, perpetrou 47 invasões militares diretas desde 1846, além de ter sido o único em toda a história a atacar com bombas atômicas), se se aplicasse contra o regime de Washington uma pequena parte de seu próprio rigor mundo afora, uma intervenção armada aos Estados Unidos seria necessária mesmo na visão dos menos conservadores, apenas por uma questão de lógica (o que menos importa quando os interesses da decadente capital global do capital estão em jogo).

Em relação à mídia predominante internacional, mais especificamente a intelectualidade sob encomenda tupiniquim (*), certamente muitos "comentaristas" consagrados pela cada vez mais indisfarçável prática intensiva da desinformação das massas nem sequer têm tomado conhecimento do tráfico e da escravização de crianças, facilitados de todas as formas pelo Estado norte-americano - altamente criminoso, ou em última instância incompetente como poucos no mundo, levando-se em consideração inclusive "falhas" históricas como as no dia 11 de setembro de 2001, na infundada detecção de armas de destruição em messa no Iraque de Saddam Hussein, e no assassinato de John Fitzgerald Kennedy.

Quem julga o moribundo Império das mega-mortes sistemáticas, divorciado de sua própria Constituição?

É a pergunta que fazem hoje 100 milhões de famintos, 100 milhões de analfabetos, 222 milhões de excluídos que representam 43% da capacidade de trabalho da região mais rica em biodiversidade e, paradoxalmente, a mais desigual do planeta sobre a qual caem três bombas de Hiroshima anualmente, onde silenciosamente morre uma criança faminta ou enferma a cada minuto: exatamente a América Latina, maior contingente de imigrantes nos Estados Unidos, considerada aberta e historicamente o "quintal" do regime de Washington. Desde o tal Big Stick (Grande Porrete) do presidente Theodore Roosevelt (1901 - 1909), que definia sua "diplomacia" na América Latina através do provérbio africano, "fale com suavidade, e tenha à mão um grande porrete", passando pela "liberdade e democracia" exportadas por Tio Sam à região sob a verdade absoluta já proclamada em 1913 pelo então ocupante da Casa Branca, Woodrow Wilson (1912 a 1921): "Ouve-se falar de concessões feitas pela América Latina ao capital estrangeiro, mas não de concessões feitas pelos Estados Unidos ao capital de outros países... É que nós não fazemos concessões."

Enfim, quando o Estado mais terrorista da história e seus lacaios se conscientizarão, ou abrirão mão dos medos e dos interesses a fim de reconhecer que os pobres não são os culpados pela pobreza? Da mesma forma, o único responsável pela crise imigratória e de refugiados é o sistema competitivo, dominador e explorador, com sede em Wall Street.

Neste sentido, o economista norte-americano Joseph Stiglitz muito bem observou sobre as profundas desigualdades sociais de seu país, no artigo, na revista estadunidense Vanity Fair em Of the 1%, by the 1%, for the 1%:

"O 1% no topo da sociedade tem as melhores casas, a melhor educação, os melhores médicos, e os melhores meios de vida, Mas há uma coisa que o dinheiro não parece ter comprado: o ententimento de que oeu destino está relacionado à forma como o outro 99% vive. Ao longo da história, isso é algo que o topo de cima acaba aprendendo. Muito tarde...".

A história está tratando de julgar precisamente os Estados Unidos e certamente dará seu veredito final, sem demora.

(*) Sobre a intelectualidade sob encomenda tupiniquim, para quem ainda não leu revelações WikiLeaks de telegrama confidencial emitido pela "Embaixada" (centro de espionagem) dos Estados Unidos em Brasília em 22.12.2009, lembremo-nos aqui, lembre-se sempre disto em contraposição à omissão midiática brasileira:

"(...) O Estado de S. Paulo e O Globo, além da revista Veja, podem se dedicar a informar sobre os riscos que podem advir de se punir quem difame religiões, sobretudo entre a elite do país. Esta Missão [Embaixada dos Estados Unidos em Brasília] tem obtido significativo sucesso em implantar entrevistas encomendadas a jornalistas, com altos funcionários do governo dos EUA e intelectuais respeitados" [grifo nosso].

Biografia:

Edu Montesanti é professor de idiomas, autor de Mentiras e Crimes da "Guerra ao Terror" (Scortecci Editora, 2012), colaborador do Diário Liberdade (Galiza), de Truth Out (Estados Unidos), tradutor do sítio na Internet das Abuelas de Plaza de Mayo (Argentina), da ativista pelos direitos humanos, escritora e ex-parlamentar afegã, Malalaï Joya, ex-articulista semanal do Observatório da Imprensa (Brasil), e editor do blog 

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey