O fast-food acadêmico

Por Revista Consciência.Net em 18/03/2010

Deve causar enjôo em muita gente ouvir discussões quanto às mazelas do sistema capitalista nos dias de hoje. Papo de velho comunista, dirão uns; conversa de revolucionários sonhadores, tacharão outros. Afinal, já estamos inseridos nessa lógica há muito tempo e, ao que parece, ou é isso, ou acabaremos caindo em ditaduras ou economias engessadas, ultrapassadas ou que, simplesmente, sofrerão embargos e represálias por não se enquadrarem na panelinha do G-8.

No entanto, ainda é possível sensibilizar-se com alguns dos pontos negativos oriundos desse paradigma que se evidenciam a partir do momento em que o aspecto selvagem do capitalismo provoca reflexos graves em áreas como a saúde ou a educação.

Um exemplo disso está relacionado à crescente mercantilização do ensino superior brasileiro, resultado da incapacidade (ou mesmo impossibilidade) do Estado de gerir por si só esse setor. Mas, até aí, tudo bem. A privatização do ensino, não seria o ponto de discussão proposto aqui. A questão que não se pode perder de vista está relacionada ao modo como esse trabalho está sendo realizado; se a formação de profissionais no país – aspecto central em seu desenvolvimento – contempla diretrizes pedagógicas e acadêmicas adequadas, responsivas às demandas sociais em curso, ou se o que está valendo são apenas cifrões, ou o lucro empresarial, em detrimento da educação.

Um possível foco de apreciação do tema é o que vem ocorrendo numa das maiores empresas privadas de ensino superior do país, a Universidade Estácio de Sá. De acordo com um profissional da instituição que preferiu não se identificar, a universidade – que, ao longo dos anos, obteve o devido reconhecimento pela qualidade de muitos de seus curso e excelência de seu corpo docente – parece estar sucumbindo à lógica dos cifrões.

A crítica é colocada num momento em que a instituição, presente em 15 estados brasileiros e com um corpo discente que ultrapassa 200 mil alunos, vem passando por uma ampla reorganização administrativa que se intensificou desde a decisão de mudar seu estatuto de Instituição filantrópica para empresa de capital aberto, em fevereiro de 2007. Literalmente: de Universidade Estácio de Sá, o grupo passou a se chamar Estácio Participações.

O entrevistado afirma que, ao longo desse processo, vem se instalando na universidade o mais selvagem clima de ultra-capitalismo, em que o ensino é progressivamente empacotado e vendido de forma rápida e fácil, tal qual um Big-Mac. A principal queixa, diz ele, se deve ao fato de que “o setor administrativo predomina cada vez mais sobre o acadêmico”, uma vez que a saúde financeira da instituição “é preconizada como valor último, explicando decisões que, muitas vezes, vão de encontro ao interesse de alunos, professores e acadêmicos em geral”.

Sua queixa é ainda motivada por recente decisão da diretoria da Estácio Participações de reduzir em aproximadamente 30% os honorários de professores e coordenadores, embora estes tenham, em paralelo, “acumulado mais horas de trabalho semanais e mais responsabilidades”.

Segue trecho de seu depoimento:

“Os currículos na Estácio de Sá estão sendo enxugados ao máximo, ficando, por vezes, sensivelmente descaracterizados, tantas são as “jogadas” para fazê-los o mais barato possível e, com isso, oferecer o melhor preço aos alunos – historicamente das classes C e D.

Todos os dispositivos criados por antigos diretores e coordenadores de curso, voltados para objetivos acadêmicos, são desmantelados, sempre sob a desculpa de que, de outra forma, salários deixarão de ser pagos em dia. E todas essas decisões são sempre acéfalas. Não se sabe quem são os responsáveis por ela, que nunca aparecem para assumir e justificar suas decisões. São sempre enviados representantes que prontamente se revelam também indignados com tudo isso e dizem que nada podem fazer.

Embora muito se tenha dito sobre a Estácio ser uma espécie de cadeia “fast food” do campo da educação, o fato é que durante algum tempo ela atraiu para si um grande contingente de professores com ótima formação que encontrava boas condições para desenvolver seu trabalho na instituição. Tais professores, quando assumiam cargos de confiança, imprimiam uma direção muito mais afinada com ideais acadêmicos, do que administrativos. Os reflexos disso fizeram-se sentir rapidamente, com a oferta de cursos que ofereciam boa formação. Muitas vezes falava-se mal da Estácio, sem notar que esse encontro de bons professores com uma população que, até o surgimento da instituição ficava, em grande parte, excluída do campo da educação superior, cumpriu papel social significativo.

Infelizmente o que observamos agora é uma guinada em direção à oferta de cursos no estilo “fast food”. Em 2010.2, com a nacionalização dos currículos, teremos a entrada em vigor de apostilas que oferecerão o programa de curso, aula por aula, já pré-determinado, que vigorará em todos os cursos da universidade. Se não podemos afirmar com certeza que isso será ruim, a coisa cheira a ensino médio ou no mínimo a algo como sanduiches padronizados – que matam a fome por pouco tempo e, segundo dizem, não alimentam e prejudicam a saúde, embora possam ser muito gostosos.

Recentemente, os controladores da Estácio – que agora entregou seu controle administrativo nas mãos de uma empresa estrangeira, especializada em ‘sanear’ empresas tendo em vista o seu lucro máximo – tomaram a iniciativa de transformar alguns de seus professores em professores de tempo integral. Até então, todo o gigantesco corpo docente da instituição era composto por professores horistas, o que, contudo, não atendia às exigências do MEC. Em função de recente necessidade de recredenciamento – e exclusiva e assumidamente por isso, os professores continuam não tendo um plano de carreira – foram criados os TI (professores de tempo integral). Antes, um professor horista 20/20, por exemplo, passava 20 horas dentro de sala de aula e mais 20 corrigindo provas ou fomentando atividades de pesquisa e extensão dentro ou fora do campus, algo semelhante ao que ocorre em universidades públicas. Agora, é obrigado a ficar todo este tempo (40 horas!) dentro da universidade.

Com a redução dos honorários, feita em dois movimentos, um no meio do período letivo de 2009.2 e outro agora em março de 2010, os professores ficaram numa situação difícil, já que a maioria faz seus cálculos de renda de seis em seis meses. Ter o seu salário diminuído no meio do período deixa-os completamente sem chances de se organizar, ao menos em curto prazo”.

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O depoimento pode suscitar questões verdadeiramente atormentadoras. Primeiro, num plano individual, se considerarmos que os profissionais envolvidos podem estar se sentindo profundamente desvalorizados e, por isso, frustrados, em seu ambiente de trabalho. Basta lembrar o pensamento de estudiosos como Cristophe Dejours, que afirma que um dos conceitos fundamentais a ser considerado na esfera do trabalho é justamente o do “reconhecimento”.

Já num nível mais abrangente, o que foi dito pelo profissional preocupa porque o assunto envolve uma das maiores instituições de ensino no país, responsável pela formação de milhares de futuros profissionais. Caso seja realmente a lógica dos cifrões a que predominará, passando por cima de quaisquer esforços em prol da educação e qualificação profissional de qualidade – que não podem, de maneira alguma, ser dissociadas de valores humanos –, a tendência é que o cenário de selvageria capitalista se intensifique ainda mais, com indivíduos, senão mal preparados, acostumados a atuar com base nos seus interesses pessoais, sem uma visão coletiva ou solidária, esta imprescindível para o bem-estar social.

Por fim, o que foi dito pelo entrevistado retoma a discussão acerca das mazelas capitalistas, pois toda essa reforma por que vem passando a Universidade Estácio de Sá é produto da lógica desse sistema. É evidente: enxugar custos, visando ao lucro máximo é o que qualquer empresário que veja apenas números à sua frente considera. Mas, ao fazer isso, ele joga contra princípios que (ainda) conseguem humanizar o capitalismo, como os valores ideais da democracia; da busca pelo bem-estar social; de idéias como a igualdade, liberdade e fraternidade. No caso da Estácio par, ao subjugar os professores dessa maneira, colocando-os contra a parede e, quando o próprio diretor da instituição se dirige aos mesmos como “colaboradores” – termo historicamente usado em regimes totalitários –, a universidade contribui, ainda que indiretamente, para o desfalecimento de todo um conjunto de esforços empreendido diariamente por setores da sociedade que visam a conciliar o funcionamento da máquina capitalista a uma opção de vida saudável e gratificante para aqueles que sustentam tal estrutura.

É claro que compete unicamente a esses profissionais recusar-se a sofrer as implicações da reforma administrativa da Estácio Par. Para isso, têm “apenas” que se demitir, arriscando-se a ficar sem emprego sabe-se lá por quanto tempo. E é nesse ponto, justamente, que tal situação se torna um exemplo do aspecto “totalitário” do capitalismo. A liberdade existe, porém é atravessada por uma boa dose de dependência e submissão à lógica da selvageria de mercado.

Nota da redação: o Consciencia.net não se propôs aqui a produzir uma matéria jornalística. Caso fosse essa a intenção, o direito de resposta da Estácio Par teria de ser obrigatoriamente respeitado. A idéia aqui, contudo, foi produzir uma visão crítica a respeito do atual cenário da educação superior no Brasil, em que essa instituição ocupa lugar de destaque. Apesar disso, além do espaço para comentários abaixo, estamos abertos a, inclusive, publicar a resposta da universidade neste sítio.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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