Sergio Granja
A possível candidatura da senadora Marina Silva (PT-AC), ex-ministra do Meio Ambiente, à sucessão presidencial, pelo PV, assanha o apetite palpiteiro das pitonisas eleitorais. Estas geralmente erram muito mais do que acertam em seus prognósticos, mas têm a seu favor o fato de, apuradas as urnas, ninguém se lembrar mais das previsões que cantaram em verso e prosa.
Há palpites para todos os gostos. Segundo a última pesquisa DataFolha, se a eleição fosse hoje, Serra teria 37% das intenções de voto, em seguida viria Dilma com 16%, Ciro Gomes com 15%, Heloísa Helena (PSol) com 12% e Marina ficaria com 3%. A margem de erro de 2% sugere que Heloísa e Dilma possam estar empatadas com 14% cada uma.
Infelizmente, poucos se ocupam em desvendar para o eleitorado o significado político das opções que são postas. Fala-se em percentuais de votação que cada candidatura estaria em condições de amealhar. Esquece-se de especular sobre o viés político e ideológico dessas candidaturas, do impacto que elas poderiam ter na vida pública brasileira e do que elas representariam em termos de projetos de sociedade.
Vai em estágio bastante avançado o americanalhamento da política brasileira e já se consolida o descrédito nos institutos representativos. A polarização PT-PSDB não contrapõe um projeto hegemônico de sociedade a outro contra-hegemônico, mas se trava como uma disputa no interior do marco hegemônico do capitalismo, com ligeiras variações de nuança. É nesse contexto que surge a candidatura Marina Silva.
Uma novidade? Ou advertir-se-ia alguma similitude com a candidatura de Gabeira à prefeitura carioca? Qual seria, afinal, o projeto alternativo de sociedade dos "verdes"? Essas são algumas das questões que se colocam com uma possível candidatura Marina.
Gabeira encarnou, como nenhum outro, a dimensão pós-moderna da política. Por um lado, o abandono da esperança na possibilidade de um mundo diferente do atual, com o seu corolário: o encaminhamento pragmático de "políticas do possível" (naquela conjuntura, pragmatismo era o mesmo que propostas neoliberais). Por outro, a espetacularização da política, o preenchimento do vácuo de propostas inovadoras com jogos de artifício midiáticos que proporcionam uma sensação etérea de "pós-modernidade", de algo profundamente distinto (diferente e glamoroso) - inabordável, é verdade, mas fundamentalmente "positivo". Descontados os truques de prestidigitação, o conteúdo programático de Gabeira foi, em essência, o receituário das técnicas gerenciais da empresa privada e a apologia da subsunção dos negócios público à lógica do capital. Gabeira prometia solucionar os problemas da cidade com mais capitalismo. E não teve pejo em aparecer ao lado de próceres do tucanato e do próprio Arminio Fraga em pessoa. Com o agravante de que, naquele exato momento, se dava a crise econômica por conta da dinâmica processual do mesmo mercado capitalista por ele mitificado. Agora, ele quer sair candidato do PV ao governo do Rio com o apoio do PSDB e do DEM, e discute com a Marina como isso poderia ser viabilizado.
Mas, vale recordar, já na eleição municipal, não constituíram raridades os setores e personalidades de esquerda que se assanharam para apoiar Gabeira no segundo turno (alguns apoiaram desde o primeiro). O argumento, se bem recordo, era o de que Gabeira aparecia como a opção de "esquerda" na percepção popular. Ora, há aqui um reparo a fazer: se Gabeira passava uma imagem não condizente com a realidade, o dever da esquerda só poderia ser o de esclarecer o equívoco em vez de reforçá-lo.
Marina, sem dúvida, deverá agir com mais recato. Está claro que estará balizada pelo PV: Zequinha Sarney, Sirkis e Gabeira, entre outros. Também está claro que, de um modo geral, não tomará a iniciativa de propostas avançadas, em contradição com a lógica da acumulação capitalista. É provável, entretanto, que se contraponha a setores do capital interessados na ampliação da fronteira agrícola, que barre o desmatamento e reprima a poluição do meio-ambiente. Certamente porá o agronegócio em pé de guerra contra ela e estará no contrapé de práticas empresarias predatórias. No mais, é improvável que vá além do acanhado horizonte social do lulo-petismo.
As pitonisas eleitorais erraram todas nas eleições passadas e nada garante que acertarão desta feita. E mesmo que os prognósticos acertassem na mosca, o que está em jogo não pode se cingir à discussão dos imponderáveis eleitorais.
Atílio Boron e José Paulo Neto coincidem em analisar que há um deficit organizacional na esquerda brasileira (e latino-americana em geral). Tendo a concordar com o diagnóstico deles, desde que se inclua nesse "organizacional" o que eu chamaria de deficit programático. De resto, organização e consciência caminham juntas, uma pressupõe a outra como duas faces de uma mesma moeda.
O PSol não escapa dessa faixa da esquerda com um deficit que é tanto organizacional quanto programático. Um bom programa mínimo, afirmativo de uma opção anticapitalista concreta, já seria um primeiro passo para a superação das dificuldades. Aliás, sem um programa mínimo na contramão da lógica do capital não há possibilidade da construção de uma opção contra-hegemônica. Para além do metabolismo da reprodução dos mandatos e da sobrevivência eleitoral, sindical, etc., ficaria a perplexidade: partido pra quê?
No manifesto inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, Marx saudou, em 1864, a conquista da limitação da jornada máxima de trabalho na Inglaterra como uma vitória da economia política da classe operária sobre a economia política burguesa: "a Lei das Dez Horas não foi apenas um grande sucesso prático; foi a vitória de um princípio; foi a primeira vez que à plena luz do dia a economia política da burguesia sucumbiu à economia política da classe operária". É nesse mesmo sentido que deve operar a lógica de uma plataforma anticapitalista: um programa mínimo concreto para os dias de hoje. Com a diferença de que ele deve contemplar os interesses de aliados da pequena e da média burguesia em contradição com o caráter cada vez mais oligopolista do grande capital. Engels, por sinal, já apontava, em 1895, na sua famosa introdução às Lutas de Classe na França, a importância estratégica do proletariado agrupar em torno de si as camadas intermediárias da sociedade.
Do ponto de vista dos trabalhadores, há um conjunto de medidas que não pode ficar esquecido. Por exemplo:
1) É preciso que os custos de financiamento da seguridade social e dos gastos públicos em geral sejam repartidos pela população de acordo com a capacidade contributiva de cada um. Hoje, ocorre uma inversão: os mais pobres pagam proporcionalmente muito mais do que os mais ricos. Para se ter uma idéia do tamanho da injustiça, os mais pobres precisam trabalhar 91 dias a mais do que os mais ricos para pagar seus impostos: os 10% mais pobres pagam, em termos relativos, 44,5% a mais do que os 10% mais ricos. E para o financiamento da seguridade social, os 10% de renda domiciliar per capita mais baixa destinam 9,4% de sua renda (de R$ 71,52) para a seguridade social, enquanto os 10% de renda domiciliar per capita mais alta destinam 1,09% de sua renda (de R$ 3.992,37). O partido não tem hoje um projeto que corrija as distorções no financiamento da seguridade social. E o projeto de reforma tributária que apresentou é extremamente tímido. Basta dizer que, para o imposto de renda, propõe-se a alíquota máxima de 50%. Na meca do capitalismo, a alíquota máxima era de 70% até ser reduzida para 50% em 1981, na montante neoliberal da eleição de Reagan. Naturalmente que aqui apenas esboço o problema, que é vasto e complexo, exigindo uma reformulação profunda, mas cujos eixos inescapáveis passam pela progressividade das alíquotas, pela taxação da riqueza e pela desoneração dos imposto indiretos.
2) Na questão do emprego e da renda, ao lado da recuperação das pensões e aposentadorias, e da valorização do salário mínimo, está colocada a redução da jornada de trabalho sem perda salarial, a ampliação dos direitos da gestante e da lactante, o encarecimento das horas extras e das demissões, mas também a proibição das demissões em massa e das dispensas imotivadas, de modo a garantir minimamente a estabilidade no emprego.
3) A estatização do sistema bancário, securitário e financeiro em geral é fundamental, ao lado da reestatização da Petrobrás e das empresas privatizadas como EMBRAER, Vale do Rio Doce e outras. É bom lembrar que a estatização do sistema financeiro foi proposta a pouco tempo nos Estados Unidos por um economista burguês insuspeito, o keynesiano Paul Krugman, articulista do New York Times e prêmio Nobel.
4) No campo da cultura e da informação é preciso quebrar o monopólio capitalista sobre a indústria cultural, garantindo a liberdade de imprensa e de expressão para o conjunto da população, sobretudo na televisão e no rádio.
5) No terreno institucional, além do financiamento público exclusivo das campanhas, é preciso fazer uma faxina e avançar na democratização do poder, na participação dos cidadãos e na implementação da democracia direta.
6) A questão da reforma agrária é paradigmática. Hoje, o máximo que se pede é a expropriação das terras improdutivas. Mas, se atentarmos para o projeto de reforma agrária apresentado por Jango há 45 anos, no comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, fica claro o quanto a reivindicação foi rebaixada. O presidente de então propôs a desapropriação das terras com mais de 600 hectares às margens das rodovias federais, das ferrovias e dos açudes, bem como as grandes propriedades beneficiadas por obras públicas de saneamento. Ele dizia que as melhores terras deveriam ser destinadas à reforma agrária. E, veja bem, tratava-se de uma reforma agrária burguesa, vocacionada a criar uma classe de pequenos proprietários rurais.
Eis alguns tópicos a serem considerados na elaboração do programa mínimo. Há aí muita coisa que poderíamos "colar" da social democracia europeia e que, face ao nosso deficit programático, pode até soar "esquerdista".
O importante é que, de posse do programa mínimo, aí sim, poderíamos realizar todos os movimentos táticos que se fizessem necessários, flexibilizar as alianças com ousadia e, inclusive, por que não, negociar compromissos que nos propiciem acumular forças para avançar mais adiante. Mas, sem um programa mínimo, o que, por exemplo, poderíamos negociar com a Marina e o PV, ou com quem quer que seja? Em torno de que pontos faríamos concessões e estabeleceríamos acordos?
Não basta que um círculo restrito de dirigentes iluminados tenha clareza sobre os objetivos que persegue. É preciso que o conjunto da militância esteja ciente, seja ganha para a luta pelos objetivos comuns, esteja convencida da necessidade deles e se empenhe em conquistá-los. Para isso, é fundamental superar o deficit programático.
http://www.socialismo.org.br/portal/politica/47-artigo/1073-o-assanho-das-pitonisas
Sergio Granja é pesquisador da Fundação Lauro Campos
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