O cinismo do discurso econômico

O segundo grande acontecimento econômico, que acelerou a erupção (Ausbruch) da revolução, foi uma crise geral do comércio e da indústria da Inglaterra; já anunciada no outono de 1845 durante a derrota maciça dos especuladores em ações de caminhos de ferro, estendida durante o ano de 1846 através de uma série de pontos incidentes como a iminente abolição da alfândega de cereais (Kornzölle), eclodiu finalmente no outono de 1847 nas bancarrotas de grandes mercadores coloniais londrinos, as quais sucederam sobre os pés a falência de bancos do país (Landbanken) e o fechamento das fábricas em distritos industriais ingleses. Ainda não estava esgotada a conseqüência dessa crise sobre o continente quando a revolução de fevereiro eclodiu[1].

Começo com essa citação do texto de Marx, As lutas de classe na França de 1848 a 1850, não com o objetivo de fazer uma digressão histórica sobre o período de nascimento do movimento dos trabalhadores franceses e europeus, mas apenas com o objetivo de tecer algumas considerações, sem rigor sistemático e apenas com a intenção de contribuir para um debate, sobre a contemporânea “crise do subprime” que tem seu epicentro no mercado imobiliário norte-americano, mas abarca todo o sistema financeiro mundial. Meu objetivo não é, no entanto, fazer uma reflexão interna sobre os mecanismos de gestão da crise da chamada Ciência Econômica, mas sim, de um ponto de vista anticapitalista, refletir sobre os primeiros desdobramentos políticos da crise nessa “situação inédita”, como escreveu M. Nobre:

Pela primeira vez o capitalismo enfrenta uma crise global sem adversário. Não há movimento social e político de importância a confrontar o capital e a sua forma de distribuir a riqueza. E, nesse momento, a premissa de toda encenação desmorona: não há harmonia preestabelecida entre capitalismo e democracia[2].

Diferentemente do contexto histórico no qual Marx se referia, na “situação inédita” contemporânea da crise do subprime, o capitalismo não possui adversários, daí o cinismo dos economistas em afirmações como a de D. Netto: “O comunismo sempre salva o capitalismo”[3]. Para não mencionar a franqueza com que o secretário do Tesouro norte-americano Henry Paulson propôs, no dia 29 de setembro, uma efetiva “ditadura das finanças”[4]. Lembremos que com a entrada em cena dos trabalhadores no cenário político em julho de 1848 “soa o alarme de aviso”, marcando uma certa mudança no discurso econômico: no lugar do cinismo da Economia Política já apontado pelo jovem Marx nos Manuscritos de 1844, “tinha soado a hora da economia vulgar”[5]. Na crise do subprime, na ausência de adversário ao sistema capitalista, o discurso econômico cínico pode perdurar.
Mas afirmar que se trata só de uma ausência de adversário é pouco, pois, de fato, o que há é uma “acomodação” no sistema capitalista, mais avançada nos EUA. Resumindo: a acomodação de um projeto de emancipação da classe trabalhadora num projeto sócio-estatal[6] durante o que se chamou de “Estado de bem-estar social” deu lugar ao “regime de acumulação sob dominância financeira”, para escrever como F. Chesnais, transformando os direitos sociais em espaço de valorização do capital portador de juros. A acomodação a um projeto sócio-estatal, talvez, seja a realização completa da vocação biopolítica do Estado moderno, mas, se estiver correto, a segunda acomodação, à “dominância financeira”, põe um poder biopolítico direto do capital sobre vida nua dos indivíduos. Nos EUA, onde os “sistemas de proteção social” geridos pelo Estado nunca foram como na Europa, a “proteção social” está em poder do capital portador de juros. É por isso que economistas preocupados com os “inocentes” podem afirmar sobre a anterior rejeição, no dia 30 de setembro, pelos deputados norte-americanos ao pacote de estabilização financeira proposto pelo secretário do Tesouro H. Paulson:

Os devaneios ideológicos que negam sua aprovação podem levar a economia global não mais a recessão, já contratada, mas a beira de uma depressão, com funestas conseqüências para os que estão na base da pirâmide social.

Então, será tarde para descobrir que não se trata de punir os culpados, mas poupar inocentes[7].

Houvesse uma força social anticapitalista no mínimo moderada nos EUA, exigir-se-ia, talvez, a anulação das dívidas das parcelas de pagamento das casas próprias, a construção de um sistema de proteção social sob gerência do Estado e que as instituições financeiras arcassem com os seus prejuízos. Mas na ausência dela, os rumos da crise ficam totalmente à mercê da gestão capitalista, ou, sendo mais específico, nem mesmo há espaço para o arbítrio, como afirma outro economista: “Intervir em escala sistêmica deixou de ser escolha”[8]. Não se trata aqui de tomar posição a favor de “liberais” ou “keynesianos”, como superficialmente tem se polarizado o debate, mas de apontar que cada um deles exerce a sua força em determinado momento do ciclo econômico, transformando suas posições em medidas inevitáveis. E, na ausência de uma força social anticapitalista, o modo como cada um deles teoriza sobre a gestão econômica do sistema tem força imanentemente política.

Isto a ponto de um colunista do Financial Times poder reconstituir o passado à luz dessa imanência do político no econômico:

Faz pouco menos de 70 anos que a Grande Depressão começou. A julgar pela rejeição do plano do secretário do Tesouro Hank Paulson parece que o Congresso dos EUA crê que tenha chegado a hora de nova depressão. Aquela crise econômica talvez tenha sido a pior catástrofe do século 20; entre outras coisas, responde pelos eventos que conduziram à Segunda Guerra, com destaque para a ascensão de Hitler. E nós só podemos imaginar os horrores que uma depressão traria agora[9].

Tivesse a teoria econômica imanentemente força política em outras épocas, como sugere Wolf, talvez conviesse aos filósofos frankfurtianos, ao invés de teorizar sobre como evitar que se repita Auschwitz, tentar ocupar cargos no FED e no Departamento do Tesouro norte-americano. Ironias à parte, essa força imanentemente política que tem a teoria econômica confirma a tese de Francisco de Oliveira sobre a “irrelevância do político”, entendida como fim de uma política que permeava a oposição entre classes em outras épocas, daí a “miragem” da qual fala o sociólogo referindo-se à esquerda brasileira[10], mas que diz respeito na verdade a um problema da humanidade. Torcendo um pouco, essa “miragem” foi, talvez, bem teorizada por um filósofo, ex-marxista dialético uspiano, para escrever como P. Arantes, ao mostrar que o sistema capitalista, apresentado do ponto de vista dos indivíduos atuantes, é uma espécie análoga de Ideal transcendental e que a teoria neoclássica é um dever ser prático[11]. Numa sociedade de indivíduos completamente atomizados é tal interpretação que se confirma quando a teoria econômica tem imanentemente a força política de se realizar.
Se estiver correto, isto significa então que a contemporaneidade finalmente reduziu a lei ao ponto zero de seu significado, escrevendo como G. Agamben, perdendo o seu próprio significado de dominação e confundindo-se com a própria vida dos indivíduos. Perguntar pela “emergência de uma nova era”[12], por isso, parece ser um discurso totalmente vazio, num contexto em que a dominação não significa e a esperança de todos é a reanimação rápida do ciclo econômico. Por isso, no lugar da tagarelice militante pós-desenvolvimentista hoje em voga, prefiro, na condição indivíduo economista “não-praticante” e mero espectador, sem movimento social no qual me apoiar, torcer para que esse troço imploda. Afinal, evocando, o contexto histórico catastrófico lembrado por M. Wolf, mas invertendo a sua perspectiva, parece-me que esta hipertrofia financeira permanente, como direitos absolutos sobre a vida dos indivíduos, está formando uma catástrofe biopolítica sem precedentes, para terminar como G. Agamben em seu livro Homo Sacer. Talvez, nunca tenha parecido tão civilizador as seguintes palavras de Marx, por outro lado nunca elas nos foram tão estranhas:

O levantamento do proletariado é a abolição (Abschaffung) do crédito burguês, pois é a abolição da produção burguesa e de sua ordem. O crédito público e o crédito privado são o termômetro econômico no qual se pode medir a intensidade de uma revolução. No mesmo grau no qual eles caem aumentam o ardor (Glut) e a força de criação (Zeugungskraft) da revolução[13].


Campinas-SP, 3 de outubro de 2008.

Notas:
[1] MARX, K. Die Klassenkämpfe in Frankreich 1848 bis 1850. In: MARX, K.; ENGELS, F. Ausgewählte Werke. Digitale Bibliothek Band 11. Berlin: Directmedia, 1998. CD-ROM. p. 10.
[2] NOBRE, M. E agora, liberais? Folha de São Paulo, 30 set. 2008, A2.
[3] Cf. BARROS, G. Mercado Aberto, Folha de São Paulo, 21 set. 2008, B2.
[4] Como exprimiu o jornal Folha de São Paulo. Afirmava o primeiro projeto de socorro do Tesouro norte-americano, seção 8. Revisão: “Decisões da secretaria de acordo com o poder deste ato são não-revisáveis e da alçada discricionária da agência e não podem ser revisadas por nenhuma corte de Justiça ou agência administrativa”. Cf. FOLHA DE SÃO PAULO, 22 set. 2008, B1 e B5.
[5] MARX, K. Das Kapital: Kritik der politischen Ökonomie. Erster Band. Buch I: Der Produktionsprozess des Kapitals. In: MARX, K.; ENGELS, F. Ausgewählte Werke. Digitale Bibliothek Band 11. Berlin: Directmedia, 1998. CD-ROM. p. 887.
[6] Cf. HABERMAS, J. A nova intransparência: a crise do Estado de bem-estar e o esgotamento das energias utópicas. Trad.: C. A. M. Novaes. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 18, p. 103-114, Set. 1987. Disponível em: <http://novosestudos.uol.com.br>. Acesso em: 4 jan. 2008.
[7] BELLUZZO, L. G. Agora, risco maior é de depressão global, Folha de São Paulo, 30 set. 2008, B9.
[8] CARDIM, F. Não intervir não é opção, Folha de São Paulo, 1 out. 2008, B8.
[9] WOLF, M. Decisão do Congresso foi tão compreensível quanto errada, Folha de São Paulo, 1 out. 2008, B8.
[10] Cf. Entrevista com Francisco de Oliveira “A política interna se tornou irrelevante, diz sociólogo”. In: FOLHA DE SÃO PAULO, 24 jul. 2006. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc2407200614.htm>. Acesso em 3 out. 2008.
[11] GIANNOTTI, J. A. Certa herança marxista. São Paulo: Companhia das Letras, 2000
[12] CARNEIRO. R. O fim de uma era? Folha de São Paulo, 2 out. 2008, B11.
[13] MARX, K. Die Klassenkämpfe in Frankreich 1848 bis 1850. op. cit., p. 24-5.

Emmanuel Z. C. Nakamura é filiado ao PSOL, graduado em Economia pela PUC-SP e atualmente mestrando em Filosofia pelo IFCH da Unicamp.

Economia e Infra-Estrutura

Emmanuel Z. C. Nakamura

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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