O legado de Ieltsin

O primeiro presidente eleito da Rússia, Boris Nikolayevitch Ieltsin, morreu na madrugada da terça-feira 23, em Moscou. Sua saúde era débil já há vários anos, quando ele ainda estava no seu segundo mandato, o que levou a sua renúncia pouco meses antes de conclui-lo.

Ieltsin tinha já uma longa carreira no Partido Comunista Soviético, quando em junho de 1991 foi eleito presidente da República Federativa Soviética da Rússia, ainda subordinada à União Soviética. Em agosto de 1991, um grupo de comunistas linha-dura tentou um golpe de estado contra o então presidente soviético, Mikhail Gorbatchov, que se encontrava de férias. Foi quando Ieltsin teve seu melhor momento, liderando a manifestação popular pedindo o retorno de Gorbatchov e a continuidade das reformas políticas e econômicas iniciadas por ele. Foi neste episódio que ele construiu sua imagem de grande defensor da democracia.

Porém, a relação entre Ieltsin e Gorbatchov sempre foi tensa, já que este o acusava de querer desmembrar a URSS para assumir o poder total. Foi o que realmente aconteceu: depois de reunir-se com os líderes da Ucrânia e da Bielorússia, Ieltsin declarou a independência da Rússia em relação à URSS (algo permitido pela constituição soviética) em dezembro de 1991. A partir de então, ele teve o poder total sobre seu país, sem estar mais subordinado a Gorbatchov.

Cabe notar que a decisão de separar-se da URSS foi contrária à decisão popular, já que um referendo de setembro de 1991 mostrou que mais de 70% da população era favorável à manutenção da união.

A presidência de Ieltsin, entre 1991 e 1999, foi marcada pela pior crise econômica que um país já enfrentou: em toda a história, não há registro de que um país tenha empobrecido tanto, em tão pouco tempo, sem passar por uma guerra ou grande desastre natural. A economia soviética já estava debilitada há muitos anos, marcada pela ineficiência, falta de investimentos na agricultura e no setor de bens de consumos, excesso de gastos militares e as inevitáveis distorsões de uma economia totalmente estatizada. Mas a causa principal da queda assustadora da atividade econômica foram as precipitadas reformas promovidas por Ieltsin.

Na verdade, Ieltsin não estava errado quando notou que a Rússia necessitava com urgência de reformas capitalistas. Errou, sim, na maneira de implementá-las: deveria ter aplicado um programa lento e gradual, semelhante ao seguido pela China desde a década de 80, que permitiria uma transição sem choques e sem o altíssimo custo social que teve. Segundo a ONU, a crise econômica da Rússia causou a morte de 10 milhões de pessoas por miséria, falta de atendimento médico, acidentes, crimes, abuso de drogas, alcoolismo, e atentados terroristas - um número aproximadamente igual ao de vítimas da repressão stalinista. Foi somente no começo do presente ano que a Rússia conseguiu retornar ao nível de atividade economica de 1991, antes das reformas de Ieltsin. 16 anos perdidos.

Por outro lado, a corrupção (que já era altíssima na URSS) atingiu níveis absurdos, levando ao estabelecimento de uma verdadeira cleptocracia, que pilhou sistematicamente as riquezas do país. Ieltsin e sua família acumularam uma fortuna imensa. Também surgiram os oligarcas, com riquezas inacreditáveis, que rapidamente entraram para os primeiros postos das listas das maiores fortunas mundiais. E a total conivência do estado com os oligarcas, que se permitiam todo tipo de atividades ilegais, não pagando impostos e nem mesmo os salários de seus empregados, sem temor à lei. O que querem os oligarcas “pró-democracia” (como Khordokovski, preso, e Berezovski, exilado na Grã-Bretanha) é o retorno a essa época, já que hoje existe um estado que atua contra atividades ilegais.

Ieltsin foi, segundo muitos, o pioneiro da democracia na Rússia. Esquecem-se de Gorbatchov, que também tinha o mesmo programa e começou as reformas democráticas na União Soviética 6 anos antes de Ieltsin assumir. Sem dúvida, algumas das aberturas democráticas surgiram com Ieltsin, como o pluripartidarismo. Por outro lado, ele também foi o líder que fechou o maior partido (o Comunista, que foi reaberto em 1996) e o principal jornal da Rússia, o Pravda. E em 1993, para impor sua constituição, dissolveu o parlamento e, diante da resistência pacífica dos deputados, mandou que o exército disparasse com tanques.

Mas o pior dos erros de Ieltsin foi em relação à Tchetchênia. As guerras nessa região poderiam ter sido evitadas, se Ieltsin tivesse dedicado suficiente atenção a ela. Em dezembro de 1991, a república da Tchetchênia declarou a independência. Seu governo, na época, ainda não estava infestado por radicais islâmicos e terroristas, sendo liderado por um ex-general da Força Aérea Soviética. Tudo o que Ieltsin precisava fazer era um uso adequado de demonstração de força e negociação: mandar tropas para a fronteira da Tchetchênia e, ao mesmo tempo, negociadores oferecendo maior autonomia política e econômica à região, afirmando que só não aceitariam a independência. É bem provável que o governo tchetcheno de então concordaria com a proposta, e milhares de pessoas não teriam morrido nas duas guerras na região.

Ieltsin, porém, não fez absolutamente nada durante 3 anos: não fez nenhuma proposta séria de negociação e, embora não tenha reconhecido a independência da Tchetchênia, permitiu que a região estivesse de fato independente, e nesse longo tempo pudesse se preparar para uma possível intervenção militar federal, receber ajuda externa e até mesmo grupos de radicais islâmicos. Em dezembro de 1994, o presidente mandou tropas despreparadas (jovens de 18 anos que prestavam serviço militar, em sua maioria), sem apoio da aviação e de reconhecimento, e sem nem sequer uma estratégia bem-definida, para intervir na Tchetchênia. Em 1996, grande parte da república estava arrasada, milhares de civis e de soldados morreram, e ainda assim os rebeldes resistiam, o que forçou a Rússia a retirar suas tropas e, uma vez mais, permitir à Tchetchênia ser independente de fato, desta vez nas mãos de radicais e terroristas (Basayev e Maskhadov, entre outros).

Em relação a política exterior, Ieltsin tentou manter o status da Rússia como superpotência, algo impossível por conta da enorme crise econômica e social do país. Porém, conseguiu que a Rússia entrasse como membro em grupos importantes de decisões globais, como o G-8 (G-7, antes da entrada da Rússia) e o Clube de Paris, e a participação como observador na OTAN. Houve desentendimentos com os Estados Unidos e seus aliados europeus em relação à campanha de Kosovo e a expansão da OTAN (que persistem até hoje), mas as relações com os EUA mantiveram-se boas. O deterioramento recente, porém, não se deve ao “recuo democrático” da Rússia de Putin, como dizem muitos, mas simplesmente ao fato de que o país se recupera e os EUA parecem não querê-lo.

O legado que Ieltsin deixou à Rússia foi contraditório: esforçou-se por democratizar o país, mas não hesitou em desrespeitar decisões populares e atacar o parlamento; quis que a Rússia fosse uma grande potência capitalista, realizou reformas que eram necessárias (porém de uma maneira totalmente equivocada), e o resultado foi que a economia se reduziu à metade. O melhor legado que ele deixou a seu país foi a escolha do sucessor: Vladimir Putin era um completo desconhecido quando foi escolhido para primeiro-ministro, em agosto de 1999.

Nessa mesma época, Ieltsin declarou que queria que ele fosse seu sucessor. E assim foi: no dia 31 de dezembro de 1999, alguns meses antes de terminar seu mandato, Ieltsin renunciou, assumindo (conforme a constituição) seu primeiro-ministro. Começou então a era Putin, de recuperação econômica, melhora no nível de vida, fortalecimento das instituições democráticas, resolução do problema tchetcheno e retorno da Rússia ao seu status natural de potência global. Os russos têm que agradecer Ieltsin pelo menos por ter escolhido tão bem seu sucessor.

Carlo MOIANA

Pravda.ru

Buenos Aires

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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