Estado de exceção: Enquanto o papa Francisco incentiva as lutas sociais, o Brasil as reprime

O Vaticano recebeu no início do mês 5 mil representantes de movimentos populares de mais de 60 países, o III Encontro Mundial do gênero. Idealizador das assembleias, o papa Francisco encerrou o encontro no sábado 5 com um discurso em espanhol para 200 pessoas. Suave na fala, duro na mensagem.

por André Barrocal - Carta Capital

Francisco recebe Mujica e lideranças de movimentos sociais, e clama contra a prepotência do dinheiro Osservatore Romano/AFP)

Vestido de branco, condenou a força do dinheiro, responsável por um sistema "terrorista" que descarta "a maravilha da Criação, o homem e a mulher", uma espécie de "ditadura", como diziam seus antecessores Pio XI e Paulo VI.

E exortou os fiéis: "Vocês talvez sejam os que mais motivos têm para queixar-se, ficar presos nos conflitos, cair na tentação do negativo. Mas, apesar disso, olham adiante, pensam, discutem, propõem e atuam. Eu os felicito, os acompanho e lhes peço que sigam abrindo caminhos e lutando".

Enquanto as lutas populares são exaltadas pelo pontífice, o Brasil recua 90 anos e trata delas como gostava o último presidente da República Velha, Washington Luís (1926-1930), um crente de que a questão social era caso de polícia. Sobra repressão por esses dias.

Os sem-terra que pedem reforma agráriasão caçados pela polícia e a Justiça. Os estudantes inconformados com medidas impopulares do governo são alvo de decisões judiciais medievais, spray de pimenta no Congresso e deboches do presidente Michel Temer.

 

Os universitários da UnB decidem ocupar a reitoria (Foto: Luis Nova/D A. Press)

Uma sequência preocupante de fatos em um país campeão de assassinatos e desigualdade, resumida pelo presidente da Associação Juízes para a Democracia (AJD), André Augusto Salvador Bezerra, como "de crescente Estado policial".

Um capítulo desse enredo foi escrito na véspera do discurso papal. Na sexta-feira 4, a polícia civil do Paraná desencadeou uma perseguição aos sem-terra a desembocar na entrada, por policiais de São Paulo armados e fardados, em uma escola do MST em Guararema, cidade de 28 mil habitantes a 77 quilômetros da capital paulista. Vídeos gravados por câmeras de segurança da escola mostram os agentes com metralhadores à mão enquanto pulam uma janela e, já dentro, disparam para o alto.

"Era realmente assustador, porque estavam fortemente armados e o procedimento não estava dentro das normas jurídicas", relatou pelo Facebook a professora Silvia Beatriz Adoue, segundo quem os policiais não tinham mandado, só um documento no celular.

Um professor de 64 anos, Ronaldo Valença, portador do mal de Parkinson, terminou com a clavícula quebrada. Em um vídeo na internet, vê-se um policial fora da escola ameaçar pelo portão uma mulher que estava dentro: "Eu acho que vocês vão perder. Eu acho que vai sair alguém morto daqui. Pode ser nós, pode ser vocês".

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo disse que os policiais ficaram "encurralados" por 200 pessoas na escola e atiraram para o céu como advertência. Quatro teriam sido agredidos.

Enquanto isso, a polícia do estado de exceção em vigor no Brasil age violentamente em escola de Guararema

Batizada de Florestan Fernandes, importante pensador do século passado (professor de Fernando Henrique Cardoso, que esqueceu suas lições), a escola foi inaugurada em 2005 pelo MST, após três anos de obras, com dinheiro arrecadado com a venda de um kit a reunir um livro de fotos de Sebastião Salgado, texto do escritor português José Saramago e músicas de Chico Buarque.

O trio topou abrir mão dos direitos autorais em favor dos sem-terra. O local abriga três salas de aula com capacidade para 200 pessoas, uma biblioteca com 40 mil títulos e cursos que vão da alfabetização à graduação universitária.

A ação policial por ali despertou reações de gente famosa aqui e no exterior. Para o ator Wagner Moura, o Capitão Nascimento do filme Tropa de Elite, "se alguém tinha dúvida de que o Brasil vive um estado de exceção, um estado policialesco, essa invasão é uma demonstração covarde de truculência típica de regime de exceção".

O porta-voz da prefeitura de Barcelona, Gerardo Pisarello, escreveu no Twitter: "Condenamos a violência e exigimos respeito aos direitos humanos". O fundador do partido espanhol Podemos, Juan Carlos Monedero, comentou que "esse comportamento da polícia de São Paulo é típico de ditadura e de governos autoritários".

A encrenca em Guararema surgiu a 900 quilômetros dali, em Quedas do Iguaçu, cidade de 33 mil habitantes no oeste no Paraná. Trata-se de uma disputa fundiária antiga, de quase 20 anos, a opor o MST e a Araupel, exportadora de madeira.

Segundo o movimento, a empresa grilou terras e estas deveriam assentar camponeses. O Incra, órgão federal de reforma agrária, possui ações judiciais para anular títulos de propriedade da Araupel. Em 2014, 3 mil famílias de sem-terra ocuparam uma fazenda da empresa, a Rio das Cobras.

Em março deste ano, outras 700 ocuparam nas cercanias as fazendas Dona Hylda e Santa Rita, também da Araupel. O ambiente ficou tenso. Em abril, dois trabalhadores rurais foram mortos, ao que consta devido a uma ação conjunta de policiais e capangas da empresa.

Quando das ocupações de março, a Polícia Civil do Paraná começou a investigar os sem-terra, por causa de denúncias de crimes nos acampamentos do MST. O avanço da apuração resultou na recente operação policial, nomeada "Castra" e destinada a prender 14 camponeses acusados de roubo, invasão de propriedade, cárcere privado e porte ilegal de armas, entre outras.

Acusados ainda de organização criminosa, uma novidade no País desde a vigência da Lei Antiterrorismo, a partir de março, usada contra movimentos sociais, como em um caso emblemático em Goiás. Dentre as 14 pessoas na mira da Castra, duas estariam em Guararema, razão para a polícia do Paraná ter pedido auxílio à paulista. A dupla não estava no local, no entanto.

A caça ao MST desencadeada desde o Paraná une polícia, governo do estado e empresa. Uma foto divulgada na internet mostra um quarteto sorridente: o delegado civil Adriano Chohfi, um dos dois condutores da Operação Castra, Tarso Giacomet, diretor da Araupel, o chefe da Casa Civil do governo paranaense, Valdir Rossoni, deputado federal pelo PSDB, e um deputado estadual tucano, Adriano Litro.

"A ação sobre o MST insere-se em uma tendência de crescimento contínuo do Estado policial no Brasil, bem simbolizada pelo alcance da posição de quarta maior população carcerária do mundo", afirma André Bezerra, dos Juízes pela Democracia. "Esse crescimento nos últimos meses tem alcançado os movimentos sociais, havendo, aos olhos de todos, o que já ocorria com frequência nas periferias: ações policiais repressivas contra aqueles que lutam por seus direitos."

Os estudantes também têm sofrido com a repressão, escancarada em um despacho judicial sobre a desocupação do Centro de Ensino Ave Branca, uma escola em Taguatinga, na periferia de Brasília. Em 30 de outubro, o juiz Alex Costa de Oliveira, da Vara da Infância e Juventude, liberou a Polícia Militar para tirar os secundaristas com os seguintes métodos: corte de luz e água, proibição da entrada de pais e comida no local e uso de som alto para impedir os alunos de dormir.

Fonte

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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