Não te esqueças do Sahara Ocidental!

Não te esqueças do Sahara Ocidental!

Francirosy Campos Barbosa[1]

Mesmo que você esteja em uma minoria, a verdade ainda é a verdade.

Mahatma Gandhi

Há alguns anos venho acompanhando a situação do Sahara Ocidental, que tem seu povo e seu território dividido pelo maior muro minado do mundo (estima-se que foram enterradas no deserto entre 7 a 10 milhões de minas diversas) com extensão de 2.720 km. O muro de areia, conhecido como The Berm foi construído pelo governo do Marrocos que se apoderou da região em 1975 durante a Marcha Verde que foi uma ocupação militar camuflada que obrigou parte da população a se exilar no território argelino, onde vive em condições climáticas completamente adversas e em uma situação de enorme crise humanitária. Os acampamentos de refugiados saharauis são conhecidos como os únicos nos quais a temperatura pode superar a 50 graus, com ventos constantes.

Os territórios ocupados do Sahara Ocidental foram transformados numa prisão a céu aberto com o controle do Marrocos. Até o presente momento não houve nenhum referendo de autodeterminação que foi base do acordo de cessar-fogo de 1991 intermediadas pela ONU, estabeleceu-se neste período a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Sahara Ocidental (MINURSO), que tinha como objetivo encaminhar um referendo para a questão política do território, entretanto, o cronograma irreal estabelecido acabou por não concretizar o objetivo estabelecido, que seria a escolha pela população pela autodeterminação. Estranhamente a MINURSO é a única Missão da ONU que não tem nenhuma ação no que diz respeito à violação dos direitos humanos.

Nos acampamentos, a população segue em condições precárias, faltam alimentos, remédios, onde a ajuda humanitária é decisiva para a sobrevivência de uma população em torno de 300 mil saharauis. Entretanto, continuam resistindo à ocupação marroquina, tendo as mulheres um papel de extrema importância na organização interna e externa ao grupo, que se organizam em frentes de resistência e colaboração.

Mobilizada pela história de sofrimento deste povo, mas, sobretudo, pela sua resistência, organizei em 2015 uma mesa na USP com a presença do Embaixador do Sahara Ocidental no Brasil, na época, Mohamed Zrug, da presidente do Conselho Mundial da Paz, Socorro Gomes e da professora Denise Dias Barros diretora da Casa das Áfricas - Amanar a fim de que pudéssemos construir um debate na academia sobre a temática e assim mobilizar olhares interessados pela causa. Na mesa o documentário "Quem? - Entre muros e pontes"[2] dirigido por Cacau Rhoden foi um dos pontos para iniciarmos nossa falas e contribuir para uma discussão crítica sobre o tema.

De lá para cá, o que vem sendo realizado ainda é de pouca visibilidade no Brasil. Acompanho pelas redes sociais, principalmente pelo Twitter, vários grupos de apoio do exterior e escuto história de pessoas que por lá passaram. O que se evidencia ainda é a falta de conhecimento da causa tanto por acadêmicos, quanto por profissionais da imprensa e outros. Há um silêncio, um vazio, quando se trata deste tema. Este artigo não dá conta de explicar este silêncio, e nem tem esta pretensão, mas pretende ser um canal de comunicação para que leitores diversos conheçam um pouco desta história, pois cada vez mais os processos decoloniais estão em pauta e devem ser esmiuçados se quisermos realmente um mundo diferente para as futuras gerações.

Cabe destacar inicialmente para compreensão deste contexto que o povo saharaui são descendentes dos Sanhajas, grupo nômade de berberes que se adaptou ao clima desértico da região por volta do século V d.C. , sendo herdeiro das tribos beduínas Beni Hasan, que migraram através do Sahara desde o Yemen, por volta do século XIII, período provável para incorporação da religião islâmica tanto pelos povos berberes, quanto pelo Sanhajas, assim como, a adoção da língua árabe, entretanto, as fronteiras do Sahara Ocidental só foram definidas na Conferência de Berlim no final do século XIX colocando-o como um protetorado espanhol, abrindo caminho ao processo de colonização.

Este território situado ao norte da África é considerado pela ONU como sendo um non-self-governing territory, ou que entendemos como um território não autónomo, pendente de descolonização. Mesmo tendo um governo proclamado em 27 de fevereiro de 1976, este, ainda, não tem total autonomia sobre o seu território. O Sahara Ocidental foi colônia durante um século da Espanha, e atualmente é submetido ao poder político, econômico e militar do Marrocos.

Quais são os motivos para esta demora do reconhecimento do seu Estado? O que leva a repressão atual? E a construção de muro imenso e minado?

As questões são diversas e perpassam o processo de colonização deste território. A colonização espanhola está presente neste território desde 1884, quando nomeia um funcionário para supervisionar a área. Era comum, em processo de colonização, países europeus ocuparem com seus funcionários determinadas regiões, principalmente na África, América Latina. Apenas em 1970 houve o primeiro movimento nacionalista, sem êxito, coordenado por jovens saharauis, que haviam estudado em universidades marroquinas. Fica evidente que esses jovens em contato com outros grupos se deram conta da realidade que viviam e do estigma que seu grupo carregava sendo mais um grupo colonizado por um país europeu. A intenção era dar fim ao domínio espanhol, mas só com a constituição da Frente Polisário, movimento político-revolucionário em favor da autonomia do território do Sahara Ocidental e pela autodeterminação do povo saharaui, mediante a instituição da República Árabe Saharaui Democrática (RASD), em 1973, que a luta toma outra dimensão de enfrentamento contra o colonialismo. A Frente Polisário é reconhecida pela ONU como único e legítimo representante do povo saharaui.

Sabe-se que para compreender a dimensão dos responsáveis pela atual situação do Sahara Ocidental não se pode centralizar apenas no processo colonial promovido pelo governo espanhol, mas há de se considerar o papel exercido atualmente pelo governo do Marrocos levando também um destaque grande as entidades como a ONU e a União Africana, do qual a RASD é um dos fundadores.

Se nos depararmos com as fotos do território saharauí temos a impressão que se trata de um território pobre, desprovido de recursos, uma região desértica. Ledo engano. Trata-se de um território com uma grande riqueza natural a começar pela sua costa marítima no Atlântico, que favorece a atividade de pesca por ser o maior banco pesqueiro do norte da África, além de ser detentor de uma das maiores reservas de fosfato do mundo. O território, conforme é possível encontrar em algumas referências tem reservas de petróleo e gás natural.

Podemos confirmar que mais uma vez o que mobiliza esta ocupação cruel é, sobretudo, o interesse econômico sobre o território. Essas riquezas, por sua vez, não são acessadas pelas comunidades devido à construção deste imenso muro que os separam. Muro este extremamente militarizado, que mobiliza milhares de militares ao custo de um milhão de dólares por dia!

As imagens que nos chegam via documentários, fotografias, ou até mesmo matérias postadas em redes sociais destacam a situação de famílias e suas formas de combater esta dominação.  Há muitos ativistas presos - alguns condenados à prisão perpetua - torturados pelas forças de repressão marroquinas. É possível acompanhar relatos, e notícias sobre a situação dessas perseguições, prisões, assim como notícias diárias pelos siteshttps://porunsaharalibre.org/pt/ ;  https://noteolvidesdelsaharaoccidental.org/, este último mantido por um dos defensores da causa, o espanhol Carlos Cristóbal, que foi homenageado pelos Saharauís em 2018.

Outra fonte de grande importância para entender a causa dos saharauis e a luta para pôr fim a última colônia da África, é o documentário dirigido pelos brasileiros Rodrigo Duque Estrada e Renatho Costa, "Um fio de esperança - independência ou guerra no Saara Ocidental", que pode ser assistido através do linkhttps://www.projetonomos.com/umfiodeesperanca.

A Frente Polisário acusada de se militarizar para combater as violações do seu povo não encontrou outra forma de responder aos ataques sofridos cotidianamente, para reconhecimento de sua autonomia. A única forma de defender seu povo, neste momento, é buscar responder na mesma moeda, mas é perceptível que estamos falando de forças muito díspares. De todo modo, mesmo não sendo a violência, o enfrentamento militarizado o melhor caminho, e certamente, nunca será, fica a questão: por que não dar a este povo a liberdade de ser quem são? De exercerem sua autonomia? Por que continuar com este isolamento, dificultando a vida dessas comunidades?

A causa do Sahara Ocidental está nos registros de conflitos esquecidos, mas não se iludam, há muita resistência e luta por baixo das areias do deserto, que parecem encobrir a realidade, mas ao contrário, dá força e paciência a este povo que aprendeu que "... com a adversidade está a facilidade!" (Alcorão 94:6)  e que não se trata de agarrar o deserto com a mão, mas sim, compreender que este é extensão da sua vida, do seu corpo, da sua família e dos seus ancestrais. Torna-se urgente que organismos internacionais de direitos humanos, direito internacional e outros possam enxergar esta realidade para além das areias do deserto, que os impedem de ver a importância de um povo que clama por sua identidade e sua autonomia.

 

"Se quiseres agarrar o deserto com a mão fechada, a areia escorrerá entre os dedos. Mas se deixares a sua mão aberta, então terás todo deserto na palma de sua mão! " provérbio beduíno.


[1]Antropóloga, Livre Docente no Departamento de Psicologia, FFCLRP/USP, coordenadora do GRACIAS - Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes. Autora do livro: Performances Islâmicas em São Paulo: entre arabescos, luas e tâmaras. São Paulo, Edições Terceira Via, 2017; diretora do documentário: Allah, Oxalá na trilha Malê, 30min, LISA/USP,2015.

 

[2] https://www.youtube.com/watch?v=yhG-1ageQLw acesso em 12.01.18

Foto: By Gregor Rom - Own work, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=75312943

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey