Neste primeiro ciclo do tema arte&resistência, a fotografia e a Palestina são o pretexto para dar a conhecer cinco mulheres artistas, cuja obra é exemplo de uma conciliação emancipatória: a que reúne o poder da imagem e a experiência de um corpo que resiste num território ocupado.
Monique Jacques.
Foto de gulfphotoplus
Por Sofia Roque, no Esquerda.Net
Como sugere Susan Sontag, na sua obra Sobre a Fotografia (1977): "Ao ensinar-nos um novo código visual, as fotografias modificam e ampliam as nossas noções sobre o que vale a pena ser visto e sobre o que nós temos o direito de observar. São uma gramática e, sobretudo, uma ética do ver. Definitivamente, o mais grandioso empreendimento da fotografia é permitir-nos a sensação de que podemos ter o mundo inteiro na nossa cabeça - como uma antologia de imagens."
Neste sentido, o propósito deste tema e ciclo confunde-se propositadamente com o fim mais elementar das formas artísticas que privilegiam o dispositivo da imagem, seja a fotografia, o vídeo, o cinema, as pinturas, a ilustração, etc. Queremos dar a ver, mostrar, desvelar, escancarar ou ampliar o mundo, na sua possibilidade material e ficcional. Trata-se, na verdade, de divulgar um gesto artístico que se realiza de muitas formas e a quatro tempos: o da visibilidade, o da denúncia, o da resistência e o da vida.
E essa vida tem corpo, esperanças, formas, lágrimas, sangue, desejos, medos e contradições. Em alguns dos trabalhos fotográficos, é a própria arte a forma de resistência. Noutros, a arte, neste caso, a fotografia, é o meio que indica esses muitos caminhos de (auto) reconhecimento e insubmissão perante o real. Assim, neste primeiro ciclo do tema arte&resistência, a fotografia e a Palestina são o pretexto para dar a conhecer cinco mulheres artistas, cuja obra é exemplo de uma conciliação emancipatória: a que reúne o poder da imagem e a experiência de um corpo que resiste num território ocupado.
Nem todas as mulheres fotógrafas que aqui sugerimos são palestinianas. Sem ter a pretensão de esgotar exemplos ou evocar arquétipos, as identidades e o território deverão surgir como diversos, com muitos lados, num vislumbre de uma geometria finita, mas imensa.
Monique Jacques
É fotojornalista, nasceu nos EUA e agora vive em Istambul, na Turquia. Nos últimos quatro anos, a sua atenção focou-se na documentação de diversas realidades e temas do Médio Oriente, do Afeganistão e da Índia. O seu trabalho já foi publicado também pelo The New York Times, Wall Street Journal, National Geographic, TIME, The Economist, The Guardian, CNN, entre outros.
A fotógrafa viajou até Gaza e durante cinco anos reuniu imagens e histórias sobre a vida e o quotidiano de jovens adolescentes palestinianas que vivem num lugar muito particular. Este projeto fotográfico deu origem a um livro(link is external) que, depois de uma campanha de crowdfunding bem sucedida, sairá em janeiro de 2018.
"O livro Gaza Girls: Growing up in the Gaza Strip é sobre raparigas, em Gaza, cuja existência é limitada pelas suas fronteiras, literal e metaforicamente definidas pelas políticas culturais e regionais", lê-se no site da FotoEvidence(link is external), que reúne este e outros trabalhos de fotografia artísticos e documentais, centrados nas questões da injustiça social.
"Eu viajei até Gaza, pela primeira vez, para fazer a cobertura de oito dias de guerra entre as forças israelitas e o Hamas. Isso foi há cinco anos e, desde então, voltei uma e outra vez, levada a documentar a força, a criatividade e a vitalidade daquelas raparigas e jovens mulheres palestinianas. Sinto-me deslumbrada e assombrada com a sua tremenda resiliência, mesmo quando diante de adversidades inimagináveis. Mas, apesar das nossas diferentes circunstâncias, também vejo muita similaridade entre essas jovens adolescentes e a miúda adolescente que eu fui outrora", conta Monique.
Como muitas outras crianças e adolescentes, noutros pontos do planeta, também estas raparigas estão a descobrir o seu corpo e quem são, a partir e para lá da sua identidade de género, da sua nacionalidade, da sua cultura, do seu mundo. Apesar das circunstâncias que as rodeiam, todos os dias resgatam a sua infância e adolescência para explorar, questionar e conhecer.
Faixa de Gaza: crescer mulher num território cercado
Crescer na Faixa de Gaza pode ser, no mínimo, um grande desafio. Não podemos esquecer que "é uma terra conturbada; são 116 quilómetros quadrados isolados por um muro de betão e arame farpado que é guardado por soldados estrangeiros", explica a fotógrafa Monique Jacques, no artigo publicado em 2014, no The New York Times(link is external).
E continua: "São anos de bloqueios e de restrições à mobilidade; o território tem a porta fechada para o mundo. À noite, ouve-se o ruído dos drones que monitorizam o local enquanto dormes. Da praia vêem-se as luzes de Israel - um território que será sempre inacessível. Limites e vigilância definem a existência em Gaza, motivo por que crescer no local é difícil."
Segundo Monique, as famílias são muito próximas e unidas, e também muito vigilantes sobre as suas raparigas. "Privacidade e mobilidade escasseiam. Muitas mulheres dizem que num local tão pequeno como Gaza é impossível ser verdadeiramente livre", comenta, na apresentação do seu livro. Todos os olhos monitorizam todas as pessoas - irmãos, primos, vizinhos. Doaa Abu Abdo, de 27 anos, confessou à fotógrafa: "Quem me dera sair daqui, mesmo que fosse por um dia, para poder ir para um lugar onde ninguém me conhecesse."
Nas suas fotografias, vemos Hadeel Fawzy Abushar, que tem 25 anos e atua em concertos que promovem a paz na região. O seu sonho é cantar em Ramallah, na Cisjordânia. Já Sabah Abu Ghanem e a sua irmã, ambas adolescentes, acordam todos os dias cedo para surfar antes do horário escolar. As irmãs nunca saíram da Faixa de Gaza para competir, apesar da vasta experiência e troféus em competições internas. É difícil sair, porque é necessário um visto do país de destino e isso é, geralmente, difícil de obter, conta Monique.
"Apesar de todas as dificuldades, Gaza tem um dos melhores sistemas de saúde do Médio Oriente e apresenta níveis de literacia quase universais", refere ainda a fotógrafa. "Muitas jovens mulheres frequentam a universidade e, depois de se formarem, tornam-se escritoras, engenheiras, médicas. Muitas sonham abandonar a Faixa de Gaza e explorar o mundo, estarem por sua conta, mas falam sempre em regressar. 'É a minha casa', dizem. 'Eu amo a Faixa de Gaza'".
Para Monique Jacques, a publicação do fotolivro é importante para que se crie uma perceção mais "tridimensional" da região: "Histórias de momentos mais calmos como os que registei são normalmente ignorados, embora ofereçam um olhar poderoso sobre uma região que é desconhecida da maioria das pessoas".
O livro amplifica "esses momentos quotidianos de alegria e esperança", afirma a fotógrafa que aqui apresentamos, em forma de descoberta ou reencontro, não interessa. O gesto de dar a ver é sempre inusitado e permanece aberto.
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