As derrotas históricas das esquerdas no Brasil sempre tiveram um componente comum: a ilusão de que elas pudessem conduzir um grande movimento de reformas sociais ao qual se uniriam segmentos de um pretenso centro democrático.
O último grande revés foi a derrubada do Governo Dilma através de um golpe parlamentar, pondo fim a 12 anos de governos que tentaram e de certa forma conseguiram, melhorar as condições de vida da população mais pobre do País, mediante um acordo com os partidos de Centro (o PMDB) e mesmo de direita (o PP), que perdurou enquanto as condições econômicas se mantiveram estáveis e permitiram os ganhos dos grandes empresários.
Não foi a primeira vez na história recente do País que as esquerdas apostaram num projeto reformista que pretenderam viabilizar, senão com o apoio, pelo menos com a tolerância do grande empresariado internacional e nacional e se deram mal.
Um exemplo clássico disso foi o governo de João Goulart de 1961 a 1964. No final desse mês e início de setembro, vamos relembrar mais uma vez o movimento da Legalidade, que impediu o golpe de estado quetentava evitar a posse do vice-presidente João Goulart, depois da renúncia do presidente, Jânio Quadros.
O movimento foi o primeiro, depois da Revolução de 30, a contar com uma ampla participação popular, o que só viria a se repetir muitos anos depois com o Movimento pelas Diretas. Como este último, a vontade popular foi também fraudada na Legalidade, com o arranjo feito pelas elites políticas e econômicas do País para a instituição do parlamentarismo.
A Legalidade será sempre relembrada, principalmente no Rio Grande do Sul, pela ação do então Governador Leonel Brizola no episódio e pela ampla participação da população na resistência ao golpe, através dos sindicatos operários e dos estudantes.
Certamente será também mais uma oportunidade para alguns, tentar recuperar a imagem de João Goulart, cuja participação dúbia naquele evento permitiu o surgimento de um regime espúrio - um parlamentarismo consentido por um acordo com os militares - e pouco depois criou as condições para o golpe de estado de 1964.
Um dos que se esforçam para valorizar a atuação de Jango nesse episódio foi professor Jorge Ferreira, da Universidade Fluminense, como seu livro "João Goulart - uma Biografia".
O professor Ferreira, que já havia escrito um livro valorizando o papel do velho PTB e do trabalhismo na construção da democracia brasileira, tratou de criar um personagem distante daquelas qualificações com as quais Jango foi brindado durante tanto tempo, tais como "fraco", "despreparado", "demagogo" e "covarde".
Muitos desses adjetivos foram realmente criados pela direita para atingir Jango e ajudar a preparar o golpe de 64, mas objetivamente não há como esquecer que foram as vacilações de Jango que criaram as condições para o golpe e a longa ditadura que se seguiu.
Em 61, quando havia uma ampla mobilização nacional para derrotar os golpistas, ele preferiu ouvir os conselhos de Tancredo Neves, em Montevidéu, aceitando o acordo costurado pelas lideranças políticas conservadoras e os militares sublevados, abandonando os que haviam se mobilizado no Sul em defesa do seu mandato.
A desculpa era de evitar uma luta fratricida entre os brasileiros, a mesma que seria usada depois em 64 para não sufocar o golpe militar no seu nascedouro.
O primeiro sinal da fraqueza de Jango foi dado na noite em que finalmente retornou a Porto Alegre, no primeiro dia de setembro de 1961, vindo de Montevidéu.
A presença de João Goulart no Palácio Piratini foi anunciada de forma entusiástica pelo serviço de som voltado para a Praça da Matriz, logo depois da execução do Hino Nacional.
A qualquer momento, ele deveria falar para a multidão que se concentrava em frente ao Palácio Piratini. Quando ele surgiu na sacada do Piratini, a multidão pensou que este momento tinha chegado. Jango, porém, apenas acenou para o público e retornou para o interior do Palácio, decepcionando a todos.
Ele havia assumido em Montevidéu um compromisso com Tancredo Neves de não fazer manifestações públicas, atendendo uma exigência dos ministros militares.
Durante o seu curto período como Presidente, primeiro dentro do regime parlamentarista e depois quando se restaurou o presidencialismo, Jango se cercou de ministros conservadores e fez concessões enormes aos interesses norte-americanos, como no caso da encampação das concessionárias de energia elétrica.
Mesmo assim não mereceu a confiança das forças políticas da direita, que continuaram tramando o golpe em conluio com os mesmos militares que se sublevaram em 61, e perdeu o apoio das esquerdas que batalhavam por reformas sociais.
No início de 64, quando tentou retomar sua ligação com os sindicatos, os partidos de esquerda e os militares nacionalistas, no comício de 13 de março no Rio de Janeiro, suas bases de apoio já estavam fragilizadas.
Mesmo assim, teria sido possível resistir ao golpe se autorizasse medidas de força contra os insurgentes.
O golpe só se pôs em marcha pela ação de um general que não fazia parte do comando do esquema golpista - Mourão Filho, auto-intitulado de "A Vaca Fardada"- e surpreendeu o próprio General Castelo Branco, o líder do movimento, levando-o a avisar o governador da Guanabara, Carlos Lacerda, para que fugisse porque o movimento tinha fracassado.
Apesar desses sinais, Jango que estava no Rio, em vez de mandar prender Lacerda e os generais que comandavam realmente o golpe, decidiu viajar para Brasília, depois para Porto Alegre, onde não aceitou os conselhos de Brizola de organizar a resistência no Sul e finalmente para o Uruguai, de onde não mais retornaria vivo ao Brasil.
Se Jango preferiu renunciar para evitar "derramar o sangue de brasileiros", como dizem seus defensores, na esperança que o golpe fosse passageiro e que as eleições em 65 garantissem a retomada do processo formalmente democrático, ainda que com o domínio dos partidos do centro-direita, se enganou redondamente.
O regime militar se prolongou por 20 anos, com muito sangue de brasileiros derramado.
Relembrar esse episódio talvez possa servir para que as esquerdas não repitam os erros do passado fazendo as alianças que Jango fez na década de 60 do século passado e Lula e Dilma, há poucos anos.
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS
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