Mas... Que culpa teria o Irã pela agitação dos xiitas em todo o Oriente Médio?

Uns poucos minutos à frente das telas de TV com os noticiários das redes a cabo nos EUA bastam para convencer o telespectador de que o Irã não faz outra coisa que não seja trabalhar para cavar um império para si, no Oriente Médio. É ideia quase tão absurda quanto a ideia de que Vladimir Putin anseie por recriar o império dos czares. 

Os troncos falantes, hemicorpos formados de tronco e mesa, que se veem na telinha - e que nunca, em tempo algum, mencionam qualquer das muitas guerras de agressão feitas por Israel desde quando Israel foi concebida (e menos ainda falariam das bombas atômicas de Israel), ou do padrão da expansão da OTAN (que acompanha a expansão imperial dos EUA) -, estremecem de indignação cada vez que 'noticiam' mais um embarque de armas iranianas destinadas a xiitas em qualquer lugar do mundo, ou algum esforço russo para conter a expansão de uma aliança militar agressiva e hostil bem junto às suas fronteiras. 

Fato é que desde 1730 não se tem notícia de o Irã invadir ou tentar invadir país algum. Naqueles anos, Nader Shah fez guerra simultaneamente contra dois impérios, o Otomano e o Mughal; e estabeleceu um novo império efêmero que se estendia do Cáucaso ao Indus Valley. Em tempos modernos, o Irã foi vítima de repetidos ataques e violências contra sua soberania - pelos britânicos, pela Rússia czarista, pelo Império Otomano, pela União Soviética logo depois da 2ª Guerra Mundial, e pelo Iraque (com bênçãos e apoio dos EUA) de setembro de 1980 a agosto de 1988. Mas jamais atacou diretamente qualquer dos seus vizinhos.

Em 1953, os EUA planejaram e executaram um golpe contra o primeiro-ministro democraticamente eleito no Irã (para deter seus planos de nacionalizar a indústria do petróleo). E os EUA impuseram ao povo iraniano a ditadura tirânica, brutal do Xá, até 1979. Nesse ano, pela revolução mais genuinamente popular e de raízes populares da história do Islã, o Xá foi derrubado. Desde então, os EUA mantém o Irã em sua alça de mira, aplicando-lhe sanções econômicas, congelando depósitos nos EUA, até, nos anos 80, fornecendo ao Iraque a mais avançada inteligência militar e de satélites, que serviram a Saddam Hussein na guerra que fazia contra o Irã. Tudo isso, para punir o povo iraniano por ter tido a audácia de (pelo menos tentaram) livrar-se das algemas da hegemonia imperialista norte-americana.

Recentemente, como se lia na manchete de USA Today: "Liga Árabe acerta-se para usar força militar contra o Irã". Mas por que seria necessário que essa liga (são 22 estados, todos apoiados pelos EUA) combatesse país pacífico que não agredira ninguém? Porque, como disse Nabil Elaraby, o egípcio que é hoje secretário-geral, durante recente conferência de imprensa, o Irã interveio "em vários países". 

Como teria sido a intervenção? Por que contribuiu com dinheiro e armas, para as forças libanesas que lutavam no sul do Líbano contra a agressão e a ocupação israelense? E por que a Liga Árabe veria aí alguma coisa de errado? A Liga Árabe opor-se-ia talvez ao Hizbollah, talvez o mais poderoso partido libanês, que arregimentou todo o prestígio e a importância que tem hoje porque derrotou os invasores-ocupantes israelenses e os expulsou do Líbano em 2000?

O Irã interveio na Síria, porque apoia o governo internacionalmente reconhecido do presidente Al-Assad, que enfrenta guerra que lhe fazem uma oposição armada controlada por forças da Frente al-Nusra da al-Qaeda e o odioso Estado Islâmico? Se for assim, interveio mais que os EUA - que não se cansam de ladrar ordens para que Bashar Assad 'saia de lá', enquanto fornece armas à oposição, muitas das quais vão diretamente para as mãos do ISIL) e abertamente discute seus planos para criar na Jordânia um exército de mercenários para derrubar o governo sírio? 

Nem faz muito tempo, os EUA ameaçavam atacar a Síria com mísseis, sob o muito duvidoso pretexto de que o governo sírio teria usado armas químicas contra o próprio povo e assim se qualificava para receber castigo exemplar, que só lhe poderia ser aplicado pela nação "excepcional" e policiais do mundo.

Obama estava a um passo de puxar o gatilho, quando a competente diplomacia russa prendeu-lhe a mão. Teria o Irã algum dia agido com tal irresponsabilidade, como os EUA - no Iraque, no Afeganistão, na Síria, na Líbia, no Paquistão, no Iêmen, e onde quer que metam os pés? 

Foi talvez intervenção do Irã no Iraque - nação orgulhosa de seu passado, hoje miseravelmente destruída e humilhada pela invasão e ocupação sádicas, pervertidas dos EUA, e que agora enfrenta o pesadelo do Estado Islâmico, obviamente criado pela destruição estúpida do estado secular baathista -, a ajuda que deu ao governo que lá está (posto lá pelos EUA, não por Teerã) contra o avanço dos doidos do ISIL? E se foi, por que os EUA agradeceram tanto (secretamente) por aquela intervenção, depois que as tropas treinadas por instrutores norte-americanos mostraram-se impotentes contra degoladores de crianças?

E teria o Irã intervindo no Bahrain, país onde, durante a Primavera Árabe de 2011, houve gigantescas manifestações pacíficas, sistematicamente esmagadas pelo exército saudita? A oposição no Bahrain cresce entre os xiitas, que são 65% da população da ilha-nação, governada por um monarca sunita cujo regime oprime a religião da maioria. Mas não há nenhum sinal, ali, de envolvimento de iranianos. Nem seria necessário. O descontentamento e a oposição nasceram das circunstâncias locais. 

Teria talvez o Irã intervindo no Iêmen, país cuja história moderna foi modelada pelas rivalidades entre britânicos, sauditas e soviéticos, e cuja complexa configuração étnico-religiosa inclui população xiita acentuadamente minoritária (mal chegam a 35%) que, de algum modo é simpática ao Irã governado por xiitas? O Iêmen foi forçado pelos EUA, no final de 2001, a cooperar com a tal "guerra ao terror", que era rejeitada, segundo conhecida pesquisa, por 99% da população iemenita? 

Pode haver alguma substância na alegação de que Teerã está apoiando materialmente os houthis. Em 2013, o barco iraniano "Jihan 1" foi abordado na costa do Iêmen, e nove homens da tripulação a bordo foram presos acusados de contrabando. O cargueiro levava foguetes Katyusha, mísseis terra-ar sensíveis ao calor, granadas disparadas por foguetes, explosivos, munição e óculos para visão noturna fabricados no Irã. Mas oito dos nove presos foram logo libertados; soube-se que o navio viajava para a Somália; e o Irã negou qualquer responsabilidade. 

É claro que os Guardas Revolucionários do Irã estão ajudando materialmente os houthis, e surpresa seria se não os ajudassem. Quantos movimentos de oposição armada os EUA já apoiaram, desde a "Frente Revolucionária Cubana Democrática" derrotada vergonhosamente na Baía dos Porcos em 1961, ao Partido Democrático Curdo peshmerga no Iraque nos anos 1970s, aos "Contras" na Nicarágua e osMujahedeen no Afeganistão nos anos 1980s; e ao Conselho Nacional de Transição na Líbia em 2011 e o hoje já reduzido a quase nada e em desintegração "Exército Sírio Livre" que guerreava contra o presidente Assad?

Em setembro passado, quando os houthis tomaram a capital Sanaa (praticamente sem luta e com apoio visivelmente generalizado entre a população), o governo e a imprensa iranianos exultaram. Podem ter considerado que um governo dos houhtis seria uma volta ao status quo que havia entre 1918 e 1962, quando o norte do Iêmen era governado por imãs xiitas. Nada deviam ao distante Irã e desde os anos 50s recorriam ao Egito, em busca de apoio. 

Mas agora, a Arábia Saudita - a qual, em sua intolerância fanática contra a "heresia" xiita, e por causa do medo pânico que inspira à monarquia reinante os 25% de xiitas que há no país, até já sinalizou que está disposta a cooperar com Israel para derrubar o regime de Teerã - tenta mostrar os eventos na nação vizinha como se fossem uma conspiração de iranianos, mancomunados com os heréticos locais, dentro do reino saudita. 

A 'coalizão' liderada pelos sauditas que se formou para combater os houthis é uma coalizão de sunitas fanáticos, obcecados com a urgência de conter o crescente poder dos xiitas na região. Essa é a questão central aqui. O Irã é, de longe, o maior estado governado por xiitas em todo o mundo, e embora a política externa iraniana não seja modelada por nenhuma estratégia pan-xiita, o país é apresentado pelos intransigentes inimigos dos xiitas como quartel-general dos avanços xiitas em todo o mundo.

De fato, o xiismo pelo qual rezam os houthis (uma das três modalidades de xiismo praticada atualmente no Iêmen) difere substancialmente da religião prevalente no Irã. Muitos xiitas iemenitas são zaidistas; a maioria dos xiitas iranianos são "seguidores dos 12 imãs" [ing. "Twelvers"]. São grupos que têm ideias diferentes sobre as origens da autoridade religiosa, sobre o papel das figuras históricas e sobre o conceito de "ocultação" (ghaybah) do Mahdi (figura messiânica descendente do profeta que um dia voltará para estabelecer paz e justiça no mundo).

As diferenças religiosas entre eles são tão significativas como as que há entre luteranos e batistas, duas modalidades do protestantismo (igualmente opostos aos católicos romanos) mas que nem sempre foram aliados ao longo da história. Pretender que todos os xiitas, do Afeganistão ao Iêmen estariam mancomunados para estabelecer um novo império persa e rematada estupidez.

Com certeza há operante aqui um importante fator de medo grave. Talvez 25% dos 16 milhões da população da Arábia Saudita são crentes xiitas. Estão concentrados no leste do país (a parte rica em petróleo), numa fatia de território de frente para a ilha-nação do Bahrain, cuja população é majoritariamente xiita. Como os xiitas do Bahrain, os xiitas da Arábia Saudita também abraça a versão 'dos doze imãs' do xiismo que prevalece também no Irã. (As fés zaidista e ismailita do xiismo florescem ao longo da fronteira com o Iêmen.) Os wahhabistas que governam a Arábia Saudita são opressores, historicamente, dessas minorias, a ponto de destruírem seus locais sagrados. Clérigos influentes no estado teocrático saudita repetidamente os denunciam como apóstatas, traidores do Islã. 

Na 5ª-feira passada, uma manchete que li dizia: "Imã da grande mesquita em Meca conclama para guerra total contra os xiitas". Segundo essa matéria, um clérigo sunita saudita de nome Abdul Rahman al-Sudais disse, num vídeo, que "Nossa guerra contra o Irã, proclamem em alta voz, é guerra entre sunitas e xiitas. Nossa guerra contra o Irã (...) é realmente guerra sectária. E se não é sectária, nós a converteremos em guerra sectária (...). Juro por Alá que judeus e  cruzes [cristãos] estão com os dias contados. O profeta disse que Roma seria conquistada (...). Nosso desacordo com os Rafidha["os que rejeitam Alá", termo depreciativo para "xiitas"] não será removido, nem nosso suicídio na luta contra eles (...) enquanto houver um deles sobre a face da Terra (...)." 

Eu diria que é mensagem que perfeitamente clara. 

Alguém dirá que os EUA nada têm a ver com essa luta. E nem deveriam ter. Mas o caso é que os EUA têm tudo a ver com essa luta! CNN e MSNBC não se cansam de repetir que "acredita-se que o Irã esteja apoiando os rebeldes houthis no Iêmen". Como assim "acredita-se"? O que significa "acredita-se"? As mesmas pessoas também nunca se cansam de repetir que "acredita-se" que o Irã tem armas atômicas, embora toda a comunidade de inteligência dos EUA não se canse de repetir que ninguém que seja bem informado acredita na existência dessas armas. Esse "acredita-se" da CNN e MSNBC deve ser traduzido como "queremos que você acredite". É simples. 

Fica-se com vontade de perguntar QUEM 'acredita-se' que o Irã esteja apoiando os houthis? Citei acima algumas provas não conclusivas. Mas aqui quem fala é a voz da verdadeira convicção, é o eco dos 'pontos para divulgação' do press-release do Departamento de Estado. Quantos norte-americanos acreditariam em tal coisa se a coisa não fosse repetida e repetida e repetida, sem descanso e sem qualquer tipo de comprovação? 

Em telegrama vazado por WikiLeaks, datado de 9/12/2009, o embaixador dos EUA no Iêmen Stephen Seche relatava, como tema corriqueiro: "Ao contrário do que diz o governo do Iêmen, que o Irã estaria armando os houthis, a maior parte dos analistas relatam que os houthis recebem as armas que têm do mercado negro iemenita e, até, do próprio governo do Iêmen". ISSO, precisamente, é o que realmente se sabe. Quem ganha com fazer-crer em outras versões que discrepam dos fatos?

Minha opinião é que os que vêem as coisas em termos religiosos (como os governantes sauditas), e temem a possibilidade de qualquer pluralismo religioso dentro do mundo islâmico, e o razoável empoderamento dos xiitas ao longo do litoral da Península Arábica, beneficiam-se de massiva campanha de propaganda que pintam todos os xiitas como se, todos eles, tivessem associações com o Irã. Mais uma vez, como na Guerra Fria, trata-se de desqualificar todos os tipos de gente e de movimentos, acusando-os de receberem apoio dos soviéticos ou dos chineses. E os que nesse país querem atacar o Irã, e vivem a procurar pretextos para esse ataque, embarcam logo em qualquer acusação que os sunitas façam sobre "agressões" iranianas (xiitas), para ter o que dizer (e repetir, repetir, repetir) a favor de os EUA também se envolverem nos ataques contra a República Islâmica.

Claro que os xiitas do Irã sentem-se indignados ante a opressão de seus irmãos de fé em muitos outros países do Oriente Médio. Mas a resposta deles são ameaças tonitruantes a favor de um novo império, ou são simples gestos de solidariedade e simpatia?

Não se trata de os capitalistas em Teerã e Masshad sonharem com os lucros que possam advir da ajuda que dão a aliados na Síria, no Líbano ou onde for. 

O acordo anunciado dia 2 de abril entre as 5+1 potências e o Irã é obstáculo importante aos planos dos EUA de irem à guerra contra o Irã encorajados por aqueles estranhíssimos neoaliados, israelenses e sauditas. É sinal de que os neocons que dominaram toda a política externa dos EUA mesmo com a era Obama já bem adiantada, sempre em aliança com políticos que tem bases na direita cristã-sionista norte-americana, estão encontrando menos facilidade para demonizar e distribuir informação falsificada, no esforço para alcançar o objetivo que mal conseguem esconder: a total destruição do mundo muçulmano, e a rendição mais abjeta ao Império dos EUA. 

Mesmo assim, com o odioso Netanyahu a empurrá-los, eles tentam. E isso, por estranho que seja, implica os sauditas pintarem, como se fossem revelações as mais espantosas e sensacionalistas, o que não passa de contatos regulares e simples entre o Irã e várias comunidades xiitas por toda a região. 

O sionista sarcástico dá a mão ao salafista e à sua cultura de antissemitismo, e põem-se contra um país que, por força de sua Constituição assegura pleno direito de exercer a própria religião e dá, às minorias religiosas, espaço de representação no Parlamento.

O Irã tem de ser apresentado como país totalmente entregue ao esforço de expansão, mesmo que não haja nem uma mínima prova disso. E mesmo que os EUA desistam da histeria nuclear, superando nesse ponto os medos de Galinho Chicken Little ["O fim do mundo está próximo!"] do seu aliado (contra o Irã), mesmo assim os EUA continuam a colaborar para vilificar o Irã, apresentando-o como país com aspirações imperiais.

A juventude iraniana bem educada troca tuítos sobre o que dizem os EUA, e riem da manifesta ignorância sobre o país deles. Eles sabem que os aiatolás deles nada têm a ver com os baathistas na Síria, com o Hizbollah no Líbano, com os ativistas bahraini ou com militantes houthis no Iêmen. 

Mas eles sabem como os maniqueus em Washington, cujos neurônios são atados entre si para só pensarem em termos de "o Bem (eles) versus o Mal (o resto do mundo)", estão felizes por pegar o mote dos sunitas sauditas seus amigos, que querem esmagar a presença xiita onde ela apareça com destaque. Os sauditas, em troca, confiscaram a imprensa-empresa norte-americana e a puseram a repetir sem parar que "acredita-se" que o Irã "é" fonte de todo o mal no Oriente Médio.

E nunca, em tempo algum, aquela imprensa-empresa e aquele reino saudita ou os maniqueus de Washington dão sinal de terem algum conhecimento ou alguma intuição aproveitável sobre um conflito histórico significativo entre comunidades religiosas no Oriente Médio. *****

 [1] GARY LEUPP é professor de história na Universidade Tufts, e dá aulas também no Departamento de Religião. É autor de Servants, Shophands and Laborers in in the Cities of Tokugawa Japan; Male Colors: The Construction of Homosexuality in Tokugawa Japan; e Interracial Intimacy in Japan: Western Men and Japanese Women, 1543-1900. É autor de um dos ensaios recolhidos em Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion (AK Press). Recebe e-mails em [email protected]

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey