Poucas vezes se terá visto na história do cinema uma estreia de um simples filme tão repleta de espectativas e acontecimentos inesperados como este terceiro e último capítulo da saga de Batman sob a direção de Christopher Nolan, "O Cavaleiro das Trevas Renasce" - que estreia dia 2 de Agosto em Lisboa. Antes de estar envolto em polémicas e da tragédia nos Estados Unidos, o filme era um dos mais aguardados do verão pelo grande público. Após os primeiros visionamentos ainda antes de seu lançamento nos Estados Unidos (o que ocorreu 26 de Julho), a obra já estava imersa em polémicas - tinha sido atacado por políticos (de esquerda e de direita) e críticos do filme tinham sido ameaçados de morte por fãs.
Depois do triste episódio do tiroteio em Aurora, no Colorado, parece haver uma nuvem negra sobre a produção e a quantidade de desgraças parece não ter fim. Na antestreia do filme em Guadalajara, México, um incêndio obrigou a evacuação do cinema; um dia depois, em Maryland, nos Estados Unidos, um sujeito que se auto intitulava "Joker" é preso com um verdadeiro arsenal dentro de casa - e fortes evidências indicavam que se preparava para repetir o ataque feito dias antes em Aurora. Um clima tenso que começa a afetar a carreira do filme - cuja arrecadação caiu 76% numa semana nos Estados Unidos.
Mas, afinal, o que há de especial neste filme?
O FILME E O TIROTEIO EM AURORA
Em primeiro lugar, não faz sentido relacionar diretamente a obra com o que se passou em Aurora, Colorado, quando um homem sem qualquer razão aparente invadiu uma sessão do filme armado até os dentes e disparou aleatoriamente contra a plateia. Embora não isento de violência, a deste filme é até bastante moderada em relação a muitos dos seus congéneres.
Mas a Warner já recebeu pelo menos um processo, o de um espetador que alega ter sofrido um trauma por ter visto o amigo morrer - indicando que a companhia tem culpa ao expor os espetadores à violência. Num país que produz dezenas de filmes violentos todos os anos, para não falar de algumas séries de TV, pôr a culpa a um único filme mais parece uma tentativa de ganhar dinheiro com a tragédia do que com atribuir uma séria responsabilização - de resto impossível, a estas alturas - a alguém mais do que o autor dos disparos. Um bom exemplo é que a mesma companhia cancelou imediatamente o lançamento de outro filme "Gangster Squad" que, por falar em violência de rotina, inclui um tiroteio dentro de um cinema.
Pode-se, como certamente já se terá feito em teses universitárias, fazer uma avaliação da violência a Hollywood em geral - ou então, como fez Michael Moore no seu aclamado "Fahrenheit 9/11", atribuir a responsabilidade a toda uma sociedade naturalmente imersa num espírito de violência. Moore, aliás, ficou mundialmente famoso com um filme sobre uma tragédia semelhante ("Bowling for Columbine"), ocorrida em 1999 a apenas 35 km de Aurora. E não havia filme nenhum para estimular os atiradores.
AMEAÇAS DE MORTE E QUERELAS POLÍTICAS
Mas antes desta tragédia, a obra já vinha a passar por polémicas diversas. Uma delas está de certa forma relacionada a todo o contexto de violência que envolve alguns segmentos da sociedade norte-americana. Quando surgiram as primeiras análises dos críticos cinematográficos que tiveram acesso às sessões para imprensa do filme, alguns receberam ameaças de morte por não gostarem de partes do que tinham visto. As ameaças foram levadas a sério, o que levou o conhecido site Rotten Tomatoes, que une as críticas dos principais especialistas do país, a suspender todo o material relacionado a "Cavaleiro das Trevas Renasce".
Outras duas controvérsias tinham conteúdo político e as farpas vinham de todos os lados. Dos progressistas, o radialista e político David Sirota afirmou que o novo Batman insere-se dentro uma onda conservadora semelhante ao que se passou na cultura de entretenimento do país na era de Ronald Reagan. Um dos exemplos alegados por ele refere-se a uma cena do filme em que os "maus" invadem a sede da bolsa para fazer "justiça". Sirota entende a sequência como uma crítica à organização Occupy Wall Street (OWS), movimento que em setembro de 2011 promoveu diversas ações de protesto contra o mundo globalizado - particularmente contra o sistema financeiro. O movimento culminou com uma invasão da sede da bolsa, em Nova Iorque. Uma jornalista do The Guardian também classificou o filme como radicalmente conservador, entre outros adjetivos do género.
Já um político de direita disse que o filme era um ataque à campanha presidencial de Mitt Rooney, uma vez que o vilão Bane era um trocadilho com "Bain Capital", empresa financiadora da campanha.
Nos Estados Unidos, onde associar entretenimento para massas com política é quase um crime previsto por lei, Nolan apressou-se em desvincular o seu filme de interpretações políticas. Se no que toca à referência a Rooney é fácil concordar com Nolan e Morgan Freeman, que classificaram os comentários de "bizarro" e "ridículo", respetivamente, a coisa é mais complicada quando se tenta perceber até onde vai (ou não) o seu grau de conservadorismo.
"O Cavaleiro das Trevas Renasce" associa um bando de malfeitores arruaceiros a uma retórica revolucionária - principalmente quando Bane conclama que ele e seus comparsas estão a retirar o poder da elite corrupta para entregar ao seu legítimo proprietário, o povo. Esse discurso, que parece ter saído de um panfleto dos sans-culottes da Revolução Francesa, fica apenas à espera de que a polícia e um justiceiro venha a pôr "ordem" nas coisas. Nolan, como afirmou, pode não estar a atacar o OWS ou outro grupo específico - mas a ideologia subliminar é bem percetível.
POR DETRÁS DO FUMO... O FILME
Apesar disto tudo pode-se dizer que o filme sobrevive - particularmente para os apreciadores de cinema de ação e de super-heróis. Christopher Nolan, assim como Tim Burton, prova que é possível fazer filmes caros, barulhentos e direcionados ao grande público sem serem necessariamente vazios ou mero caça-níqueis. O encerramento da trilogia tem um vilão particularmente interessante (vivido por Tom Hardy) - na medida que representa a encarnação do mal absoluto, ao mesmo tempo um sobrevivente surgido dos esgotos, daquilo que a sociedade elimina. O super-herói Batman (Christian Bale) é um eremita, solitário, desiludido e não isento de verdadeiras fragilidades. Ambiguidade da qual não escapa Catwoman (Anne Hathaway), outra pária social que odeia os ricos e se movimenta entre o egoísmo e a indiferença de uma ladra ao mesmo tempo que percorre uma busca quase poética de redenção.
Roni Nunes
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