Machado de Assis em Mato Grosso

Adelto Gonçalves (*)

I

Que a fama de Machado de Assis (1839-1908), ao seu tempo, não se limitou à rede de amigos literatos da Rua do Ouvidor já se sabia, ainda que não tenham sido muitos os seus leitores, levando-se em conta a precariedade dos meios gráficos e difusão do Brasil do final do século XIX e início do XX, como mostrou Hélio de Seixas Guimarães em Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19 (São Paulo: Nankin Editorial/Edusp, 2004). Mas que essa fama alcançou rincões longínquos do Brasil da primeira metade do século XX é que, de certo modo, surpreende.

É o que se pode constatar, por exemplo, em Machado de Assis em Mato Grosso: textos da primeira metade do século XX (Rio de Janeiro: Lidador, 2006), pesquisa que a professora Yasmin Jamil Nadaf empreendeu em periódicos e obras literárias do Estado de Mato Grosso, extraindo textos que mostram a dimensão da presença do escritor carioca na literatura da região. “São escritos e acontecimentos que norteiam a admiração do público-leitor e dos intelectuais da época que dele receberam grande influência estética”, diz Yasmin, que é doutora em Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com pós-doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Dos nove textos reunidos, dois são de autoria de José de Mesquita (1892-1961), advogado formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, de São Paulo, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito de Cuiabá e desembargador do Tribunal de Justiça de Mato Grosso de 1930 a 1940, que exerceu grande atividade intelectual no Estado, tendo fundado e presidido a Academia Mato-grossense de Letras de 1921 a 1961, com extensa obra de poesia, contos e romances, além de livros na área jurídica.

II

Em “De Lívia a dona Carmo. As mulheres em Machado de Assis”, tese apresentada ao 2º Congresso das Academias e dos Intelectuais do Brasil, no Rio de Janeiro, e publicada na Revista da Academia Mato-grossense de Letras (Cuiabá: Escolas Profissionais Salesianas, nº XIII-XIV, 1939), Mesquita contesta a afirmação do crítico literário Alfredo Pujol (1865-1930) segundo o qual as criações femininas do escritor seriam todas “criaturas sem ternura, mulheres hesitantes e pérfidas”. Para Mesquita, pelo contrário, as heroínas machadianas seriam “tímidas, discretas e, no mais das vezes, até virtuosas”.

Como argumento, o ensaísta cita as figuras de dona Carmo, “em que o autor de Memorial de Aires retratou a própria esposa”, Flora de Esaú e Jacó, Maria Regina de “Trio em lá menor” e Conceição de “Missa do galo”, que seriam “criações suaves, doces, quase vaporosas". Mesmo as pecadoras, como Virgília e Capitu, diz Mesquita, são envolvidas por Machado de Assis “dum halo de discrição”, velando de suavidades seus deslizes, como se preparasse, “em torno delas, um ambiente de indulgência”.

Já na crônica extraída de sua coluna “Livros de minha estante”, que era publicada na revista A Cruz, órgão da Liga Social Católica Brasileira de Mato Grosso (Cuiabá, nº 1.407, de 1 out.1939, p.2), Mesquita tece rasgados elogios ao livro O pensamento e a expressão em Machado de Assis, de Cândido Jucá, filho (1900-1982), da Academia Carioca de Letras, ensaio de quase 200 páginas, ao mesmo tempo em que faz uma profecia que os anos se encarregariam de confirmar, ao vaticinar que os críticos jamais esgotariam os temas que a obra machadiana pode suscitar.

III

Outro ensaio exumado pela professora Yasmin é “Na pista do Rocinante (resposta ao Sr.Luís Murat)”, de Cesário Neto (1902-1979), publicado na Revista do Centro Mato-grossense de Letras (Cuiabá: Escolas Profissionais Salesianas, nº XIV, jul-dez.1928, p.69-102). Professor de Latim, Português, Francês, Espanhol e Alemão, com passagens pela Faculdade de Ciências de Campinas e pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), de São Paulo, o cuiabano Antônio Cesário de Figueiredo Neto teve uma vida dedicada ao magistério: foi ainda professor de Psicologia Educacional na Escola Normal Pedro Celestino e professor de Português do Liceu Cuiabano, em Cuiabá.

Em seu extenso ensaio, Cesário Neto revolta-se com as considerações do acadêmico Luís Murat (1861-1920) expostas em dois artigos publicados pela Revista da Academia Brasileira de Letras em junho e outubro de 1926 sob o título “Machado de Assis e Joaquim Nabuco”, acusando-o de exercitar uma “crítica odiosa, feita de exclusivismo, de caprichos e rancores pessoais, de jacobinismo enfim”.

Segundo Cesário Neto, a mais forte das possíveis razões arroladas por Murat para insultar Machado de Assis era a de que o escritor não teria participado da campanha pela abolição da escravatura, embora fosse neto de escravos. “Que culpa iria ao grande Machado de Assis de não possuir aquele temperamento de fogo que o Sr. Murat exalta nos campeadores da libertação e reconhece em si próprio?”, questiona Cesário Neto.

Para o ensaísta, Machado de Assis, que deixou páginas modelares em contos, como “O caso da vara”, “O vergalho” e “Pai contra mãe” , em que se percebe um vivo sentimento de piedade e de contida revolta contra a eterna injustiça dos homens, não poderia ser acusado de indiferente e insensível à sorte dos escravos africanos. Por isso, ainda lembrou que, no dia 13 de maio de 1888, o escritor teve a oportunidade de dar expansão ao seu entusiasmo e ao seu alvoroço ingênuo, como testemunhou Graça Aranha (1868-1931), ao sair em companhia de abolicionistas exaltados em um carro que o levou até as portas da Câmara, onde romperam em aclamações a Joaquim Nabuco (1849-1910) e outros batalhadores da grande cruzada.

Cesário Neto fez ainda questão de reproduzir um trecho de uma crônica publicada na Gazeta de Notícias em que Machado de Assis, naquele seu ar característico de nonchalence montaigniana, recordou aquele dia: “Sim, também eu saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio, verdadeiramente foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto”.

IV

Autora de outros livros que fazem o resgate da vida literária em Mato Grosso, como Sob o signo de uma flor. Estudo de A Violeta, publicação do Grêmio Literário Júlia Lopes, de 1916 a 1950 (Rio de Janeiro: Sete Letras, 1993), Rodapé das miscelâneas. O folhetim nos jornais de Mato Grosso: séculos XIX e XX (Rio de Janeiro: Sete Letras, 2002), Diálogo da escrita. Alagoanos na imprensa de Mato Grosso; primeira metade do século XX (Rio de Janeiro: Editora Lidador, 2003) e Presença de mulher: ensaios (Rio de Janeiro: Editora Lidador, 2004), a professora Yasmin lembra que nos textos críticos que reuniu em Machado de Assis em Mato Grosso “emana a certeza de que o escritor carioca não foi somente lido e apreciado, como também descrito esteticamente, por vezes de modo minucioso, através de análises alentadas de sua vida e obra”.

Seria muito auspicioso para a memória literária do Brasil que pesquisadores de outros Estados se inspirassem na iniciativa da professora Yasmin, procurando demarcar a influência e a presença de Machado de Assis na atividade literária de outras regiões brasileiras, especialmente na primeira metade do século XX. Eis aqui um bom tema de pesquisa à espera do trabalho de nossos futuros historiadores literários.

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MACHADO DE ASSIS EM MATO GROSSO: TEXTOS CRÍTICOS DA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XX , de Yasmin Jamil Nadaf, pesquisa, organização e introdução. Rio de Janeiro: Editora Lidador, 127 págs. 2006. E-mail: [email protected]

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey