O mundo (poético) da viscondessa de Balsemão

Adelto Gonçalves (*)

I

D.Catarina de Lencastre (1749-1824), quem há de saber quem foi? Só mesmo essa pequena confraria em que os historiadores literários do século XVIII nos tornamos. E, mesmo assim, bem poucos entre nós haveriam de se lembrar que foi a primeira viscondessa de Balsemão, mulher de Luís Pinto de Sousa (1735-1804), governador e capitão-general de Cuiabá e Mato Grosso de 1769 a 1772 e secretário de Estado (vale dizer, primeiro-ministro) no reinado de D.Maria I de 1788 a 1801 e de agosto a dezembro de 1803. E que foi poetisa das mais notáveis ao seu tempo, ainda que não tenha tido a fama que cerca Leonor de Almeida Lorena e Lencastre, a marquesa de Alorna (1750-1839), uma das principais vozes do Pré-Romantismo.

Isso, porém, não foi obstáculo para que a professora Maria Luísa Malato Borralho, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, viesse a dedicar grande parte de seu tempo a escrever a sua biografia, ainda que nas atuais Histórias da Literatura pouca ou nenhuma referência haja a Catarina de Lencastre. Até porque a professora é autora de uma irretocável biografia do teatrólogo Manuel de Figueiredo (1725-1801), seu trabalho de mestrado, Manuel de Figueiredo: uma perspectiva do neoclassicismo português (1745-1777), publicado pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda (IN-CM), de Lisboa, em 1995, e da edição crítica da Obra Literária (poesia) de José Anastácio da Cunha (1744-1787), em co-autoria com a professora Cristina Alexandra de Marinho, que saiu em dois volumes (com inéditos do autor) pela editora Campo das Letras, do Porto ( v.1, 2001; v. 2, 2006).

O resultado de anos de estudo está agora no livro “Por acazo hum viajante…” A vida e a obra de Catarina de Lencastre, 1ª viscondessa de Balsemão (1749-1824), publicado neste começo de 2008 na coleção Temas Portugueses da IN-CM, trabalho orientado pelo professor doutor José Adriano Carvalho, que foi quem teve a idéia de lembrar à investigadora que na Biblioteca Pública Municipal do Porto existiam uns poemas, praticamente, esquecidos de Catarina de Lencastre.

Os poemas não chegavam a uma centena, mas foram a semente de um trabalho que levou a estudiosa a arquivos de Coimbra, Santarém, Funchal, Nantes, Londres e Lisboa e a publicar em 1999 uma primeira impressão. Desse trabalho inicial, resultam agora dois livros autônomos: este, sobre a vida de Catarina de Lencastre, e outro, com a edição crítica de sua obra literária e dramática, a sair na mesma coleção da IN-CM.

II

Muito tempo antes de o escritor italiano Italo Calvino (1923-1985) imaginar e escrever o romance-labirinto Se um viajante numa noite de inverno (1979), Catarina de Lencastre escreveu o verso “Por acazo hum viajante…”, que consta de Apólogo, 4ª Colecção, f.267, manuscrito que pertenceu supostamente a um familiar da poetisa e que foi adquirido pela professora Maria Luísa na Livraria Histórica e Ultramarina de Lisboa, em 1992. Ainda que pouco um título tenha a ver com o outro, parece que a autora se deixou levar pela semelhança que os aproximam para escolhê-lo.

Mas, acima de tudo, é preciso levar em conta que Catarina de Lencastre, por força do trabalho desempenhado pelo marido, foi também uma grande viajante. Talvez apenas não tenha acompanhado Luís de Pinto de Sousa aos cafundós do Brasil, até porque, àquela época, foram raros os governadores que trouxeram família para a América portuguesa. E chegar a Cuiabá por barco, enfrentando corredeiras, cachoeiras, sezões e indígenas hostis, certamente, não seria tarefa que se desse a uma mulher da primeira nobreza.

Um dos raros governadores de que me lembro -- por ver registro em documento da época no Arquivo Histórico Ultramarino -- que trouxe família para o Brasil foi Antônio da Silva Caldeira Pimentel, que governou a capitania de São Paulo de 1727 a 1732, mas não se pode comparar as dificuldades -- que já não seriam poucas -- de subir a íngreme e fechada Serra do Mar do porto de Santos para São Paulo com os obstáculos de uma viagem por rios de Araritaguaba, hoje Porto Feliz, às margens do Tietê, até Cuiabá.

Os passos de viajante de Catarina de Lencastre por Lisboa, Porto, Londres e Funchal foram revisitados por Maria Luísa mais de dois séculos depois (e não apenas através de seus poemas) bem como os seus primeiros passos em Guimarães, onde ela nasceu, décima filha, ou décima primeira, dos senhores de Vila Pouca, família de muita influência e de conhecida veia literária, que seria descendente de João e Vasco de Lobeira, cujos nomes aparecem ligados ao Amadis de Gaula, de Luís de Camões (c.1524-1580) e até de soror Mariana Alcoforado (1640-1723), embora se saiba que nem sempre essas ligações atribuídas podem ser documentalmente comprovadas.

De qualquer modo, diz a pesquisadora, é improvável que a pequena fidalga tenha crescido sem saber o que eram tertúlias, música e poesia. A verdade, porém, é que documentos, praticamente, não há que possam reconstituir a infância de Catarina, até o seu casamento com Luís Pinto de Sousa, que então já estava com 37 anos de idade, 14 a mais que a noiva com quem teria se casado antes de partir para o Brasil. A essa época, o marido já havia cursado Matemáticas em Coimbra, viajado por Itália, Alemanha e França e até participado da Arcádia, embora a informação também seja duvidosa.

III

Depois do governo de uma capitania na América portuguesa, Luís de Sousa Pinto seria destacado para um cargo mais alto, a embaixada em Londres, com a missão de cumprir uma política do marquês de Pombal que procurava diminuir a dependência de Portugal em relação a Inglaterra. Em Londres, diz a biógrafa, Catarina de Lencastre fez uma opção um tanto diversa das mulheres de sua classe social e de seu tempo: estudou inglês, francês e italiano, instruindo-se, durante o tempo que lhe sobrava das tarefas domésticas. Por lá, teve quatro filhos.

Entre setembro de 1783 e setembro de 1785, Luís Pinto de Sousa é chamado à corte para que, com suas qualidades de diplomata, negocie o acordo nupcial do infante d.João (1767-1826) com a infanta espanhola D.Carlota Joaquina (1775-1830). Entre idas e vindas, nem sempre Catarina de Lencastre acompanhava o esposo, como indica uma carta do diplomata recolhida pela pesquisadora.

Com o retorno à corte, segundo a autora, Catarina de Lencastre fez de sua mansão na Junqueira, na parte ocidental de Lisboa, onde morou de 1789 a 1794, uma das mais concorridas da capital. Desenhada pelo arquiteto húngaro Carlos Mardel (1696-1763), a morada não ficava muito distante do palácio real, localizada num dos bairros mais procurados pelos estrangeiros endinheirados, especialmente ingleses, por causa dos arvoredos e da proximidade com o Tejo.

Depois, Catarina e o marido foram para a Luz, bairro mais lisboeta. Por versos, vê-se que entre os freqüentadores da casa estariam Nicolau Tolentino (1740-1811), Caldas Barbosa (c.1739-1800), Paulino Antônio Cabral, o abade de Jazente (1719-1789), José Agostinho de Macedo (1761-1831) e até Bocage (1765-1805), que chegou a glosar motes lançados por Catarina. Do abade de Jazente, há, inclusive, um poema dedicado a louvar D. Catarina de Lencastre.

IV

E a poesia de Catarina de Lencastre? Não se pode dizer que seja muito diferente do que o cânone do seu tempo mandava num século nada romântico. Mas também não fica abaixo de poemas da marquesa de Alorna, com quem manteve convívio de salão e a quem dedicou um poema em que diz:

Fecunda Natureza, em vão procura

Comtigo competir arte engenhosa…

Aliás, este poema, diz a professora Maria Luísa, foi atribuído à marquesa de Alorna e até editado, por engano, porque consta de coleção manuscrita de 1788 dos poemas de Catarina de Lencastre.

Como se vê, esta é ainda uma época de muito formalismo, de jogo de palavras. É um mundo em que vale mais o que se responde do que o que se pensa. Portanto, um jogo de máscaras. Veja-se o que o diz a poetisa a Bocage, a quem teria veneração pela obra, para se perceber que o retrato que pinta não difere em nada de outros que se conhece do vate:

Sofri teu gênio caprichoso e duro,

Conheci teu caracter inconstante,

Calculei qual seria no futuro.

Custou-me mas venci, felis instante!

Vê se podes achar, não to seguro,

Quem sofra em paz teu genio extravagante.

V

É da obra (ainda desconhecida) de Catarina de Lencastre que a professora Maria Luísa se ocupa na segunda parte de seu livro. Para ela, “a obra de Catarina de Lencastre é, talvez, antes de tudo o mais, uma reflexão sobre a Memória”, reunindo frequentemente recordações culturais, alusões míticas, “com memórias autobiográficas ou, pelo menos, centradas num eu poético”.

Diz ainda que a poetisa elege como “modelos do seu cânone literário o “venezino” Horácio, evoca Safo e Anacreonte, como poetas do sofrimento amoroso, até porque se apropria das designações genéricas de ode sáfica ou anacreôntica”. Lembra-se, acrescenta, do exílio de Ovídio ao contar a saudade ou evoca jocosamente Homero.

É, portanto, esta uma literatura de corte, com sua simpatia pela grandiosidade da hipérbole ou ornamento. “Uma literatura domesticada, feita por quem depende de um protetor para sobreviver”, diz a autora. E Catarina de Lencastre, embora nobre, não podia fugir à regra, até porque seu marido era homem do sistema, extremamente hábil em passar ao largo e preservar-se das picuinhas entre os membros da família real.

Nem por isso deixa a sua obra de ter importância para quem quiser conhecer por dentro como era aquele mundo às vésperas de sua ruína, que viria em 1807 com a chegada das tropas napoleônicas do general Junot e a saída abrupta da família real rumo ao Rio de Janeiro. Até porque, como mostra Maria Luísa, Catarina de Lencastre constitui uma autora exemplar para se perceber a continuidade e a ruptura na história literária referente à época em que se situa a sua obra (de 1780 a 1824).

Classificada como “pré-romântica” pelos escassos historiadores literários que a mencionam, Catarina de Lencastre emerge do limbo à que estava atirada como uma autora à frente de seu tempo, já com um pé no Romantismo, adepta que se mostra da estética do fragmento, da consciência histórica. O que mais atrai na obra de Catarina de Lencastre, “romântica” e “conservadora”, diz a autora, é precisamente reconhecer nela os paradoxos tópicos que poderiam caracterizar quer o Neoclassicismo, quer depois o Romantismo. Ou seja, estamos diante de uma poetisa de transição.

Com este trabalho, a professora Maria Luísa Malato Borralho mostra que ainda há muito o que se pesquisar entre os poetas do século XVIII português. E que a cada autor que é investigado (e redescoberto) pode-se descobrir um mundo esquecido, mas que revive a cada página deteriorada que é manuseada num arquivo.

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“POR ACAZO HUM VIAJANTE…” A VIDA E A OBRA DE CATARINA DE LENCASTRE, 1ª VISCONDESSA DE BALSEMÃO (1749-1824), de Maria Luísa Malato

Borralho. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 500 págs., 25 euros, 2008. E-mail em Portugal: [email protected]

No Brasil: [email protected]

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: [email protected]

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey