A euro-esquerda é chauvinista?
Rui Tavares assina por estes dias um artigo no jornal Público no qual pergunta se um progressista pode ou não apoiar Vladimir Putin. A sua conclusão é que tal não é possível, elencando um conjunto de argumentos que, a falar com rigor, são inacreditáveis. Procuraremos explicar porquê, e indicar o motivo pelo qual as opiniões de Rui Tavares decorrem de uma pretensão de superioridade ocidental que é pura e simplesmente xenófoba.
Por João Vilela
Tavares afirma que «Putin tem sido o principal desestabilizador do sistema internacional que ainda nos ia dando alguma paz e previsibilidade nas últimas décadas». Tavares foi eurodeputado durante cinco anos e toma a palavra para se pronunciar em matéria internacional regularmente. Se não soubesse o que o tal «sistema internacional» fez pela «paz e a estabilidade» quando desmembrou a Jugoslávia, invadiu o Afeganistão e o Iraque (com pretextos nunca inteiramente esclarecidos no caso afegão e ostensivamente falsos no iraquiano), desestabilizou a Ucrânia com apoio de neonazis, bombardeou a Líbia (com o seu voto), e patrocinou largamente o Daesh na Síria, Rui Tavares devia abster-se de falar sobre assuntos que ignora flagrantemente. Mas sabe: e só se pronuncia nestes termos porque faz parte de uma casta de progressistas muito particular, para quem o progresso é inerentemente ocidental, primeiro-mundista, abrigado sob o guarda-chuva da NATO e dentro de uma UE estatuída em dogma sagrado.
A NATO pode bombardear populações civis, e os dirigentes dos seu países sentar-se à mesa com criminosos como Netanyahu e o príncipe Saud. Isso é «irritante», nos termos de Tavares, mas não é, como faz a Rússia, «violar descaradamente» o direito internacional. A UE pode arrogar-se instituir políticas de austeridade perpétua por via do Tratado Orçamental e sugerir, com mais ou menos rudeza na voz, que não se tomem decisões políticas que gerem nervosismo nos mercados. Nada disso é «liberticida» nem «interferência na política interna de outros países». Isso quem faz são os russos. Os europeus e os estadunidenses, quando muito, seguem políticas neoliberais que podem ser revertidas pela mobilização cidadã.
Há cem anos atrás, aquando da eclosão da I Guerra Mundial, os social-democratas alemães, que acabaram a assassinar Rosa Luxemburgo (um ícone de esquerda que, pelo que consta, Rui Tavares ainda não considerou uma «liberticida»), tomaram a singular decisão de apoiar o esforço da Alemanha na guerra porque, pese discordarem da sociedade capitalista alemã, apesar de tudo, preferiam-na a serem governados por russos. A sua decisão foi movida por estrito chauvinismo nacional, como se a língua que o patrão fala fizesse a menor diferença na exploração que o trabalhador sofre. Rui Tavares é um legítimo herdeiro desta tradição política, que não pretende propriamente criar uma sociedade sem exploradores nem explorados, o objectivo histórico de qualquer progressista que se preze, mas assegurar que esses exploradores são europeus, branquinhos mas não eslavos, falantes de línguas que ele aprendeu a admirar, oriundos de países que a cinematografia de Hollywood lhe ensinou que eram «os bons». Depois tenta, de forma frustre, justificar o seu lip service em defesa do imperialismo (conceito que ele refere entre aspas, lá saberá porquê) acusando os outros, eles sim, de no fundo serem defensores acríticos da Rússia. Quando passar na sede do Livre prometo deixar lá um espelho.
João Vilela
Historiador e colunista
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