Na última Sexta-feira Santa foi notícia um motim na prisão de Coimbra. Como é hábito, as informações das autoridades escassearam e foram contraditórias. Motim que se acalme espontaneamente é coisa rara, senão inédita. Motim sem consequências disciplinares como a determinada altura se deu a entender seria milagre. Quem desconfiou que, afinal, não teria havido nenhum motim? Quem poderia imaginar que se tratou de uma invenção dos serviços prisionais? E para quê, pergunta-se?
Em carta de autor devidamente identificado, cuja cópia se anexa, recebemos, com pedido de divulgação, a versão de um recluso sobre o que efectivamente terá acontecido. Em resumo: para encobrir práticas de tortura e maus tratos sistemáticos face ao que um recluso terá cedido emocionalmente quando brincaram com ele a respeito da sua precária de Páscoa as autoridades terão encenado um motim.
Interpretando: não fosse dar-se o caso de um acidente que implicasse uma investigação e eventuais culpados em particular o Chefe que terá sido o autor da troca de informação sobre a precária (que trouxe de longe a Coimbra a família do recluso José Magalhães, para o levar) porque não inventar um motim, no meio do qual tudo se pode justificar? Felizmente acabou por não ser precisa a encenação. Mas dos castigos não se livraram a meia dúzia de bodes expiatórios encontrados a jeito.
A ACED pode testemunhar as queixas de a tortura (física, psicológica e maus tratos) ser usada em doses mais ou menos descontroladas contra os presos (ver http://iscte.pt/~apad/ACED/ficheiros/observatorio.html ). Por exemplo, ainda recentemente o Estado português foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pelo facto de castigar dois presos estrangeiros em celas ditas de segurança sem que nenhuma autoridade governamental ou judicial neste país tenha dado a possibilidade de reclamação ou sequer de apreciação da situação, a requerimento das vítimas, cf. http://iscte.pt/~apad/ACED/ODH/seccoes%20seguranca.doc . Este caso é apenas a ponta de um iceberg monstruoso.
De que há notícias esparsas, por exemplo, a respeito do tratamento praticado na prisão de alta segurança em Monsanto, que alguém apelidou de Guantanamo português, entretanto melhorado paulatinamente, mas longe do escrutínio público. Espancamentos, suicídios e mortes são também eles pontas do iceberg de brutalidade e amesquinhamento dos presos e dos guardas e outros funcionários. Quem admite e quem manda que tais práticas se executem?
A experiência de redacção de queixas que a ACED tem vindo a acumular mostra como há fortes resistências à investigação e clarificação deste tipo de situações. Para além de tais resistências serem prática recorrente em geral não é sem consequências que a justiça funciona mal em Portugal quando se chega às prisões podem observar-se barreiras de evidente indiferença institucional de facto situação de impunidade estrutural explicadas oficialmente como segredo prisional (leia-se, medo das consequências de testemunhar denúncias contra os poderes fácticos, tanto por parte de presos como de guardas e funcionários prisionais) e como obra da sub-cultura dos prisioneiros (actualmente, a subserviência aos lucros do imparável tráfico de drogas nas prisões).
Por isso a ACED, ela própria, sofre directamente ataques das instituições, umas vezes sob a forma de alegada falta de credibilidade, outras vezes sob a forma de processos judiciais, na tentativa vã de calar o pequeno incómodo que a divulgação de informação que fazemos provoca.
O seguimento das nossas denúncias revela como há queixas que lemos na carta anexa a autoridade pela brutalidade da responsabilidade da chefia, contra a qual há guardas descontentes mas calados, nomeadamente que se assemelham a outras que temos recebido de outras prisões, nos últimos meses. Haverá alguma política de colocação de chefias com perfil de dureza à prova de Direitos Humanos em prisões especiais? Haverá em curso alguma experiência para descobrir qual o melhor perfil de chefia?
Precisamente uma das primeiras experiências da ACED (de facto, um das causas directas da sua própria existência) foi a construção, por parte das autoridades prisionais ao mais alto nível, que envolveu a presença no local do Ministro da Justiça de então, de um motim na prisão de Caxias, em 1996. As dezenas de acusados foram julgados 13 anos depois e, por isso, já temos a sentença, cf. http://www.presosemluta.tk . Da qual só se pode concluir que o motim foi uma inventona. Portanto, uma táctica das autoridades prisionais para abafar problemas da sua própria responsabilidade e acalmar os presos à pancada, sem que houvesse o risco de acusações de abusos e torturas. Funcionou.
A ACED divulga a carta que para o efeito nos foi passada sobre o alegado motim de Coimbra, na Páscoa de 2010, porque é esse o primeiro e mais importante dos nossos objectivos, enquanto associação: favorecer a liberdade de expressão dos presos, que é um direito declarado mas inibido pelas práticas instituídas.
A ACED reclama às autoridades competentes por processos de investigação que sejam capazes de romper com a impunidade e a arbitrariedade tradicionais, agora que o legislador entendeu actualizar a lei de execução de penas. Pois, precisamente, melhorar as condições de denúncia de situações de vitimação contra os presos e contra os funcionários e guardas é um dos objectivos intentados pela nova legislação. A sua prossecução exige novas práticas institucionais, sob pena de a lei continuar a ser incumprida como aconteceu com a lei de 1979 em alguns dos seus aspectos fundamentais.
A ACED tem consciência de que também os titulares de poderes institucionais estão condicionados pelas piores tradições, benevolentes com as práticas de tortura. É preciso coragem para sair do ciclo vicioso. Foi essa coragem que o autor identificado desta carta manifestou, embora a ACED mantenha a sua identidade fora do âmbito público por saber haver altos riscos de represálias. Essa coragem deve ser secundada por aqueles/as que dentro das instituições possam estar em condições de ajudar a cumprir os objectivos desta nova lei.
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