Complexo de vira-lata

Vez por outra, o fantasma de Nelson Rodrigues invade os muitos palcos do teatro Brasilis. Em seus alforjes, a volta de uma frase famosa: O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima.

Neste domingo, um dos editoriais da Folha de S. Paulo acusa a União de Nações Sul-Americanas, recém criada em Brasília, de ter um sentido puramente retórico. Neste aspecto, o jornal contraria os participantes, 12 presidentes das nações vizinhas e dezenas de correspondentes estrangeiros, que viram no resultados do encontro um importante passo para uma sonhada integração regional.


O editorial reduz o fato de o novo fórum nascer independente em relação aos EUA a um simples “certo nacionalismo”. Embora saiba que, por causa desse estorvo, e de alguns de seus países títeres, as decisões da Organização dos Estados Americanos (OEA), por exemplo, sempre prioriza os interesses de Washington. Ora, os assuntos internos sul-americanos serão resolvidos melhor por uma representação soberana tão somente dos povos desta região. A Folha confunde xenofobia, a que reduz o nacionalismo brasileiro, com soberania. Soberania é uma boa iniciação ao tratamento digno do nosso histórico complexo de vira-lata que costuma exibir, sem nenhum pudor, o jornal paulista. [1]


Dificuldades há. A maior, a que resulta da forte submissão da Colômbia aos interesses econômicos, militares e políticos dos EUA. Mas, como na União Européia, que levou mais de uma dezena de anos para acertar seu passo, uma posição divergente, aqui ou acolá, terá seu tratamento adequado. “Uma institucionalidade está sendo criada", disse o ministro Celso Amorim, o que foi interpretado pela Folha como “nebuloso otimismo diplomático”. Será que nossa imprensa trafega por aquilo que Mino Carta chama de incompetência raivosa dos medíocres, como a oposição demo-tucana? Parece haver uma incômoda ausência de pauta política que possa colocar o governo contra a parede.


Para não fugir do complexo rodriguiano, o segundo editorial da Folha, no mesmo dia, ataca o acordo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa que tornou realidade a isonomia ortográfica da língua portuguesa, finalmente ratificado pelo parlamento luso. O jornal brasileiro acusa o acordo de trazer modificações “cosméticas”, “ociosas” e não justificáveis para a descomunal energia a ser gasta para assimilação das novas regras. Novamente se revela a mediocridade da nossa imprensa em não compreender o alcance da medida que, antes do número de alterações lingüísticas a serem processadas, reforça-se uma importante unidade de integração de nove países mediada pela mesma língua.


Tanto a criação de um organismo sul-americano soberano quanto um acordo para disciplinar o uso comum da língua de Camões integram e aproximam povos, além de coroar um grande esforço institucional brasileiro. Seria motivo de júbilo para nossa mídia dividir com seus leitores brasileiros. Mas, não é. Daí, o susto de quem chega ao Brasil. As informações que aqui lê ou ouve contradizem o que lê ou ouve lá fora. No New York Time de 24/05, por exemplo, lê-se: “Os consumidores nos Estados Unidos estão apertando o cinto; os brasileiros estão gastando como se não existisse palavra em português para recessão”. Constatação elogiosa que soa esquisito por aqui. [2]


O jornal dos EUA ainda faz referência a um novo patamar brasileiro de prosperidade econômica, com aumento do emprego e da renda e uma vitalidade “cada vez menos acorrentada à sorte dos Estados Unidos”. Outras mídias, como a revista alemã Der Spiegel, os jornais El País, espanhol, Le Monde, francês, Financial Times, de Londres, vez por outra fazem referências positivas sobre um novo desenho distributivo da riqueza em nosso país. E uma santa previsão de tempos ainda melhores. Mas, a mídia brasileira segundo a máxima rodriguiana, cospe na própria imagem, como um narciso às avessas. E não consegue encontrar nenhum pretexto para a auto-estima. [3] [4]

Sidnei Liberal

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