O pagamento de mensalidades pelo ensino universitário público no Brasil sempre vem à tona quando as universidades enfrentam problemas financeiros. A pergunta retórica que se ouve amiúde é : por que não cobrar de quem pode pagar? Pois bem, aqui vão algumas razões.
Por Roberto Kraenkel/GGN
O que está em jogo quando se fala da cobrança pelo ensino público é muito mais do que uma questão financeira, que - de toda forma - é sempre momentânea. Trata-se, antes de mais nada, de aumentar o campo de influência dos valores (neo)liberais. Explico-me: ao tornar as universidades pagas, faz-se com que nelas se introduza uma nova escala de valores, uma escala monetária. Assim, com o passar do tempo certamente as melhores universidades quererão cobrar mais caro que outras - pois na ética neoliberal isto é absolutamente natural. Haverá diferença de preço entre cursos. E, internamente, haverá valorização de atividades que atraiam mais dinheiro para a universidade. Docentes mais populares ou que atraiam mais verbas tornam-se mais prestigiados. Estudantes transformam-se em clientes. Valores passam, portanto, a ser monetizados. O conteúdo ideológico é óbvio, levando a uma naturalização do conceito de que o valor em dinheiro é um fundamento ético adequado para todo tipo de decisões, não só universitárias.
Está, portanto, explícito o caráter ideológico do embate ao redor da questão do pagamento do ensino. Mas a discussão sobre o tema não para aí.
Para um liberal, a situação acima parecerá normal, desejável até. Trata-se aí de questão de fé, ou de definição de valores morais. Pouco há, portanto, a debater. A quem não concorda com esta visão, caberá combate-la dentro do jogo de forças na sociedade.
Mais importante, parece ser a questão que se origina da constatação de que, em países como os Estados Unidos e o Reino Unido, o ensino universitário é pago. É verdade que algumas das melhores universidades do mundo são pagas - mas não todas(há universidades de ponta na Europa continental que são totalmente gratuitas). E antes que surja alguém argumentando que as universidades no topo dos rankings mundiais são pagas, cabe notar que tais rankings foram desenhados para elas e não são instrumentos sérios de avaliação. Mas, de todo modo, sim, há boas universidades pagas. Não há portanto como se dizer que o pagamento acabará com as universidades, mas sim que as tornará mais elitistas e organizadas ao redor de princípios de mercado. As exceções de praxe são universidade de longa tradição. Mas, cabe mesmo comparar nossas universidades com estas exceções?
É muito mais cabível comparar nossas melhores universidades com universidades médias do mundo desenvolvido. E o que se constata nelas? Constata-se que as universidades que adotam o modelo mercantil são extremamente problemáticas. Abrem-se e fecham-se cursos por demanda, interferindo assim na própria autonomia intelectual que o corpo docente delas deveria gozar. Traçam-se planos estratégicos que inibem a criatividade que está na raiz do saber científico e intelectual. Criam-se metas de captação de verbas pelos docentes. E criam-se estudantes devedores vida afora.
No contexto brasileiro, os problemas apontados acima são mais agudos. É impossível não se espantar com o enorme grau de desigualdade social no Brasil. O ensino público gratuito para camadas de mais baixa renda é uma das bases de combate a estes desiquilíbrios históricos. É dar a estas camadas o acesso a um instrumental intelectual que as grande maioria das universidades privadas baratas está muito longe de oferecer. É dar-lhes o grão do saber.
E desenha-se aqui o confronto de classes impresso na questão do pagamento do ensino universitário. Os pobres brasileiros não tem como paga-las. Em silêncio, certa classe média regozija-se de não ter que conviver com eles em pé de igualdade. A ideia de que tal situação poderia ser evitada com um programa de bolsas é ingênua. Tomada de novos valores, a universidade funcionará com os valores de eficiência financeira. Algumas poucas bolsas serão dadas para fins de gerenciamento de imagem.
Não é de se estranhar que, no desastroso cenário político brasileiro, esta questão volte a ser debatida. Quem a levanta, e quem defende o pagamento do ensino público universitário, são setores da sociedade que obviamente poderiam pagar por ele. Defendem apenas sua posição social.
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