O Colóquio Da Luta Clandestina à proclamação da Independência Nacional: memórias de um passado que se faz presente» realizado, em Maio, no Palácio dos Congressos, sede do Parlamento Angolano, em Luanda, evidenciou claramente que é chegada a hora de se assumir sem tabús as várias facetas da História recente dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP).
Com essa atitude, poder-se-á proporcionar às futuras gerações um conhecimento tão real quanto possível da História dos seus povos e países. O fórum, em que tive o privilégio de participar, concluiu ser necessário empreender contactos com entidades dos países que apoiaram os movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas com vista a realização de missões de pesquisa e recolha de documentos e recomendou que se deve acelerar e aprofundar o intercâmbio de informações e experiências que conduzam a criação do Arquivo dos PALOP, cujo objectivo é preservar as diferentes fontes que constituem memórias das lutas pela libertação.
A propósito das lutas pela libertação dos PALOP, decidi intervir no colóquio, exactamente no painel «O Exterior e a Luta de Libertação Nacional».
Fi-lo para recordar o apoio prestado à luta pela libertação dos PALOP pelas forças progressistas e o papel desenvolvido pela antiga União Soviética para que a ONU adoptasse, na década de 60 do Século XX, a declaração Sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Colonizados.
Com efeito, várias foram as referências que fiz a uma comunicação do prestigiado historiador russo Vladimir Guennadievitch Shubin, apresentada na conferência científico-prática alusiva ao Dia da Paz e da Reconciliação Nacional, organizada em Abril último, em Moscovo, pela Embaixada da República de Angola na Federação da Rússia.
Vladimir Shubin que é o Director Adjunto do Instituto África da Academia de Ciências da Rússia revelou episódios pouco conhecidos da História das relações entre Angola e a ex-URSS e enalteceu a forma como os angolanos, senhores do seu próprio destino, tomaram decisões históricas, apontando como exemplos o início da luta armada de libertação nacional, em 4 de Fevereiro de 1961, e a conquista da Paz, em 4 de Abril de 2002.
Após a acção heróica de 4 de Fevereiro de 1961, a ex-URSS e outros países, assim como várias forças políticas do mundo tiveram que assumir uma atitude para com as guerras anti-coloniais que surgiram em África.
As memórias de Piotr Nikitovitch Evsiukov ilustram bem a forma como a ex-URSS materializava a sua política em relação a Angola e outras colónias portuguesas.
E isso decorre do trabalho desenvolvido por Evsiukov na qualidade de responsável do Departamento Internacional do Comité Central (CC) do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), no âmbito do qual lidou, durante quase 15 anos, com as questões atinentes a ajuda de Moscovo aos movimentos de libertação das colónias portuguesas (sobretudo se tivermos em conta o facto de os investigadores não terem, até ao momento acesso aos documentos mais importantes daquela época).
No seio dos dirigentes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, Evsiukov era conhecido como Camarada Pedro.
Em 1961 -revela Evsiukov- o Departamento Internacional do CC do PCUS sabia da existência do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) com base nas informações provenientes de várias fontes, principalmente da imprensa, muito embora Portugal tentasse, a todo o custo, esconder a informação acerca dos acontecimentos em Luanda.
Mário Pinto de Andrade que na altura desempenhava as funções de Presidente do MPLA e Viriato da Cruz, Secretário-Geral daquela organização, foram os primeiros a solicitar convite para se deslocarem a Moscovo no segundo semestre de 1961.
A visita efectuou-se já após o início da luta armada em Angola, tendo sido tomada uma decisão importante que visava prestar ajuda multilateral à aquela organização.
Passados alguns meses, António Agostinho Neto que na altura estava sob prisão domiciliária em Portugal, conseguiu sair daquele país e logo a seguir deslocou-se a Moscovo.
As conversações, que travámos com ele, foram um êxito pontualiza o Camarada Pedro nas suas memórias.
Foi assim que começou a história das relações entre Moscovo e o MPLA e o envolvimento da URSS, inicialmente de modo indirecto e, em seguida, de forma directa nos assuntos de Angola, inclusive na área militar.
Simultaneamente, outros países socialistas e vários Estados africanos, quer directamente, quer através do Comité de Libertação da Organização da Unidade Africana (OUA), os partidos de esquerda e as organizações não-governamentais dos países Ocidentais começaram a apoiar a luta anti-colonail em Angola.
Na segunda metade dos anos 60, paralelamente aos Comités de Solidariedade que existiam nos países do Leste europeu, em alguns países da Europa Ocidental começam a ser criados Comités de Apoio à Luta de Libertação em Angola e noutros Países Africanos.
Assim, na Grã-Bretanha existia um comité muito activo, o Comité para a Libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau encabeçado por Basil Davidson, ilustre africanista britânico e pelo Lorde Anthony Gifford, que na época era ainda muito jovem e que era tratado pelos soviéticos, meio a brincar, Camarada Lorde ou Lorde Camarada. Aqueles comités ocidentais passaram a realizar conferências, por vezes durante as férias de Páscoa, dado que muitos dos seus membros eram estudantes.
A partir de certa altura, os representantes dos comités dos países do Leste também passaram a ser convidados para aquelas reuniões.
O evento que teve maior impacto para o desenrolar do forte movimento de solidariedade para com a luta anti-colonial foi a Conferência Internacional de Apoio aos Povos das Colónias Portuguesas que decorreu em Roma, de 27 a 29 de Junho de 1970.
Aliás, no seu discurso na Conferência de Solidariedade em Roma, Agostinho Neto disse claramente: Estamos certos de que Roma raiará uma etapa nova na conquista de apoio moral, político e material do qual o nosso povo tem necessidade.
Importa sublinhar que o Camarada Pedro, o renomado jurista Igor Pavlinovitch Blichenko e o próprio Vladmir Guennadievitch Shubin integraram a delegação soviética chefiada pelo então Director do Instituto África da Academia de Ciências da URSS e vice-presidente do Comité Soviético da Organização de Solidariedade Afro-Asiática, Vassili Grigorievitch Solodovnikov.
Evsiukov qualificou a Conferência de Roma como um golpe demolidor ao colonialismo português, tecendo os seguintes argumentos:
- Em primeiro, a política de Portugal, país membro da OTAN, foi severamente criticada.
- Em segundo, participaram na conferência Agostinho Neto, do MPLA, Amílcar Cabral, do PAIGC e Marcelino dos Santos, da FRELIMO, que foram recebidos em audiência, no Vaticano, pelo Papa Paulo VI.
Foi um choque para o ditador de Portugal, Salazar, e para a ala portuguesa da Igreja Católica que apoiava a guerra dos colonizadores nas colónias, escreve P.N. Evsiukov.
As autoridades portuguesas, a Igreja Católica e a imprensa portuguesa criticaram severamente o Papa por este passo que, na realidade, significava o reconhecimento da legitimidade da luta dos povos colonizados pela independência.
E Neto sentenciava no seu discurso em Roma: Escorraçado por toda a parte, cada vez mais isolado na arena internacional, o Portugal colonialista irá ter dificuldades em evitar a catástrofe se continuar a recusar ouvir a voz da razão.
Entretanto, o impacto da conferência de Roma em que participaram representantes de 177 organizações nacionais e internacionais e, em especial, da audiência no Vaticano fez-se sentir não só nos países católicos.
Assim, logo depois do grande evento de Roma, Agostinho Neto foi convidado a visitar, pela primeira vez, a Suécia.
O convite foi endereçado pelo Partido Social Democrático (PSDS) no poder que fez-se representar na Conferência de Roma por Pierre Chauris, responsável pelas Relações Internacionais.
Além das conversações políticas com a direcção do PSDS e com responsáveis do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Suécia, Agostinho Neto teve uma entrevista na Agência para o Desenvolvimento Internacional da Suécia (ASDI).
Com base nas conversações, a ASDI, submeteu, pela primeira vez, ao governo sueco uma proposta no sentido de se conceder apoio material ao MPLA, destinado aos sectores da educação e da saúde.
Em Março de 1971, a ASDI garantiu ao MPLA financiamento no montante de 500 mil coroas suecas destinado aos referidos sectores e para a aquisição de meios de transporte.
Ficou, assim, marcado o início do apoio dos países escandinavos a luta pela Independência de Angola.
Voltemos a Conferência de Roma. A mesma teve ainda outra consequência. Antes da sua realização, praticamente todas as informações relativas à ajuda soviética aos combatentes pela liberdade de Angola e de outros países de África, mesmo a meramente humanitária eram ocultadas à opinião pública, tanto na URSS como no ocidente.
Somente depois do regresso de Roma, Vassili G. Solodovnikov recebeu a bênção do director adjunto do Departamento Internacional do CC do PCUS, Rostilav Aleksandrovitch Ulianovski, para revelar numa entrevista ao Pravda, o principal jornal soviético, que Moscovo estava a fornecer armas, transportes, meios de comunicação, equipamentos, fardamentos e outros materiais indispensáveis para o êxito da luta dos combatentes pela liberdade contra os colonizadores.
Na entrevista anunciou, também, que a URSS estava a formar especialistas militares e civis dos Movimentos de Libertação.
Não constitui exagero afirmar que Solodvnikov tinha todo o direito moral para fazer tal revelação dado que a 31 de Julho de 1963, na reunião do Conselho de Segurança da ONU, foi ele que, na qualidade de representante da União Soviética, votou pela adopção da Resolução que exigia a Portugal a concessão imediata da independência às suas colónias, ao contrário de muitos delegados ocidentais que se abstiveram na votação.
A ajuda de Moscovo foi muito variada. O Camarada Pedro recorda um caso curioso. Em situações de emergência, os dirigentes dos movimentos de libertação que o conheciam sob o pseudónimo de Pedro Dias e sabiam o número da sua Caixa Postal, enviavam-lhe cartas por correio internacional normal.
Certo dia, recebeu uma missiva do Presidente do MPLA em que ele queixava-se da carência de munições para a pistola TT, pedindo um envio urgente das mesmas. A delicadeza da situação consistiu no facto de que o líder do MPLA em jeito de confirmação e autenticidade do pedido e para evitar eventual erro colocou no envelope um cartucho. Talvez, este tenha sido o único caso em toda a história do serviço postal.
Além de outras formas de apoio, aos movimentos de libertação era, também, prestada ajuda puramente financeira.
Por exemplo, conforme os dados de arquivo, em 1963, ao MPLA foram concedidos 50 mil dólares.
Até 1973, isto é, numa década, o financiamento cifrou-se em 220 mil dólares (contra 150 mil dólares para o movimento de Libertação da Guiné-Bissau e das Ilhas de Cabo Verde e 85 mil dólares para a Frente de Libertação de Moçambique).
O financiamento era concedido através do Fundo Sindical Internacional de Apoio as Organizações Operárias de Esquerda.
Aquele fundo que formalmente funcionava junto do Conselho dos Sindicatos da Roménia, foi criado em Julho de 1950 por iniciativa da Comissão Política Externa do VKP(b), antecessora do Departamento Internacional do CC do PCUS, com o objectivo de prestar ajuda material aos partidos de esquerda estrangeiros, organizações operárias e cívicas, sujeitas a perseguições e repressões.
Quanto ao ouro do Kremlin, existiram muitos boatos. Porém, mesmo que Moscovo tivesse liderado, inicialmente, a distribuição dos recursos do Fundo Sindical, apenas metade das quotas era de origem soviética, sendo a restante formada por recursos provenientes da China, Checoslováquia, Roménia, Polónia, Hungria e da República Democrática Alemã (RDA).
Mais tarde, em 1958, a Bulgária aderiu ao Fundo. Por outro lado, em 1962, na época da Cisão sino-soviética, os chineses deixaram de conceder o seu apoio ao Fundo.
Embora a orientação marxista de certos movimentos de libertação fosse saudada por Moscovo, a adesão ao marxismo não era considerada uma condição preliminar para a prestação da ajuda.
Vladimir Shubin cita uma recomendação de Rostilav A. Ulianovski à delegação soviética que participou na famosa Conferência de Roma: Não devemos insistir em lealdade ideológica dos movimentos de libertação.
E do lado dos movimentos de libertação a posição era de inteira independência tal como fez questão de sublinhar Agostinho Neto na Conferência de Roma: Na nossa luta sem desfalecimentos através de numerosas dificuldades de toda espécie, nós mantivemos sempre uma atitude de independência que nos é imposta pelos interesses supremos do nosso povo. Esta atitude queremo-la compreendida por todos os nossos amigos sinceros.
À guisa de conclusão, tal como fiz no colóquio, rendo especial homenagem ao destacado dirigente nacionalista, invicto combatente pelas independências dos PALOP, Marcelino dos Santos, grande companheiro de luta de Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane e Samora Machel.
Marcelino dos Santos participou no colóquio onde prestou um depoimento historicamente interessante, tendo terminado com a seguinte afirmação: «enquanto houver uma revolução por refazer, não há tempo para morrer». Bem Haja!
Referências Bibliográficas
- Colóquio Da Luta Clandestina à Proclamação da Independência Nacional: Memórias de um Passado que se Faz Presente. Conclusões Finais. Luanda, 10 de Maio de 2005. - Neto, Agostinho. Conferência de Solidariedade em Roma, 1970. Textos Políticos Escolhidos. Edições DIP 1987. - Shubin, Vladimir Guennadievitch. O Papel Decisivo das Forças Progressistas na Luta de Libertação de Angola e a Influência da URSS na Defesa das Conquistas do Povo Angolano na Arena Internacional. Moscovo, 6/4/2005. - Dos Santos, Marcelino. Depoimento no Colóquio Da Luta Clandestina à Proclamação da Independência Nacional: Memórias de um Passado que se Faz Presente. Luanda, 09/05/05. - Embaixada da República de Angola na Federação da Rússia. Nota de Imprensa. Moscovo Acolhe Conferência Científico-Prática Alusiva ao Dia da Paz. Moscovo, Abril de 2005.
* TÓ BRAGANÇA é o Adido de Imprensa e Cultura da Embaixada da República de Angola na Federação da Rússia. Bacharel em Jornalismo pela Faculdade de Jornalismo da Escola Superior Político-Militar de Lvov (República da Ucrânia), Graduado em Ciências Políticas pela Faculdade de Relações Internacionais da Universidade Marxista-Leninista de Lvov (Ucrânia) e Licenciado em Direito, com distinção, pela Universidade Estatal Aberta de Moscovo.
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