Tudo errado.
O jornal O Globo usou estas palavras para identificar os credores internacionais. Isso mesmo, os credores internacionais. A matéria "Credores rejeitam proposta para dívida argentina", de Janaína Figueiredo em 03/06/2004, utiliza tal vocabulário.
No caso de "desesperados", o jornal dá voz à presidente da associação de credores, Angélica Bergonzi, que diz: "Como vamos aceitar prazos de 30 a 42 anos e juros de 1%? Muitos credores argentinos estão desesperados, precisam de uma resposta imediata".
No caso de "vítimas", a idéia é da jornalista mesmo: "A proposta de reestruturação da dívida pública apresentada anteontem pelo governo argentino está sendo rechaçada pelas vítimas da moratória de dezembro de 2001".
Ela completa, fazendo uma espécie de assessoria de imprensa para o capital internacional, em conjunto com a elite local: "Dentro e fora do país, credores da Argentina consideraram inadmissível a oferta divulgada pelo ministro da Economia, Roberto Lavagna, que prevê redução de US$ 60,9 bilhões no valor total da dívida a ser reestruturada. Trata-se do maior calote da História econômica mundial".
Para lembrar
A dívida da Argentina não é dívida, pois sua origem está na entrega do patrimônio nacional por líderes que hoje estão sendo perseguidos pela Justiça, como o ex-presidente Carlos Menem e alguns ex-ministros da Economia.
Mais: eles estão sendo perseguidos pelos próprios argentinos, porque o povo local é um pouco mais ativo que o brasileiro. Talvez porque a ditadura deles tenha sido muito mais agressiva, nunca se sabe. Estes ex-dirigentes estão sendo julgados e já foram condenados pelo povo, mas a dívida não.
Sem dívida, não há calote. Nestor Kirchner, presidente do país, apenas disse: nosso povo precisa comer. Se eles estiverem comendo e morando, nós pagamos. Primeiro as pessoas, primeiros os seres humanos. Depois, o capital. Ele diz isso sempre. Foi a sua proposta. A repórter contemplou isso?
Não é uma crítica pessoal, pois não conheço a repórter, portanto não é justo falar sobre qualquer coisa além desta notícia. Porém, nesta notícia, ela reproduziu informação sem ouvir minimamente "o outro lado", que nesse caso é dois terços de toda a população argentina, que elegeu democraticamente seu representante, incluindo os mais de 10 milhões de miseráveis. Quem elegeu o mercado? O dinheiro, ou seja, a ditadura do capital, que não foi eleita mas pode comprar quanta democracia for necessário.
Pegue o caso do Brasil. O economista Marcos Arruda sentencia: Quanto mais pagamos, mais devemos. O pesquisador do PACS Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul lembra que a dívida externa do Brasil em 1985 era de 105 bilhões de dólares. Entre 1985 e 1998 o Brasil pagou 282 bilhões de juros e amortizações. Só de juros a conta foi de 126 bilhões. Mesmo assim, em 1998 tal dívida cresceu para 230 bilhões de dólares". Teremos que pagar, usando apenas os dados até 1998, cinco vezes a mesma dívida. E ainda aumentando, como em 2004, quando atingiu mais de R$ 900 bilhões (boa parte atrelada ao dólar).
Isso, portanto, não é dívida. Não é racional falar em calote. Mas quem disse que o jornalismo atual lida com a razão? Quanto colonialismo podemos suportar?
Gustavo Barreto editor da revista Consciência.Net (www.consciencia.net) colaborador do Núcleo Piratininga de Comunicação (www.piratininga.org.br) estudante de Comunicação Social da UFRJ bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Inciação Científica (PIBIC) pela ECO/UFRJ
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