João Teixeira Lopes 25 de Setembro de 2003
Propinas
Há dois dias, numa entrevista, o Director Geral do Ensino Superior sintetizou de forma cristalina o olhar que este governo tem sobre os agentes do Ensino Superior. Ficou claro que se existem problemas de administração e gestão nas universidades, a culpa é dos reitores, que, e passo a citar, se comportam como a Rainha de Inglaterra. Se há insucesso escolar, a culpa é dos estudantes que não estudam e não pagam o suficiente para estarem motivados. Se há falta de dinheiro, a culpa é dos professores que não estão a dar aulas e que a receberem.
Podemos ficar descansados que, para o governo, a culpa não morre solteira. Tem mesmo muitos maridos. Alunos, professores, reitores, ninguém se salva. Para este governo, todos os agentes educativos são medíocres, preguiçosos e desonestos. Para o Ministério da Ciência e Ensino Superior, neste mar de incompetência, só mesmo o próprio ministro se salva.
A brilhante prestação do ministro Pedro Lynce, nestes 17 meses que já leva no cargo, depois dos 17 anos em que o Ministério esteve nas mãos do PSD, resume-se a isto: a culpa é sempre dos outros.
Como é possível que algum responsável do Ministério venha falar de professores que não dão aulas e que continuam a ser pagos, quando uma das primeiras medidas deste governo foi precisamente aprovar um Estatuto Jurídico do Ensino Superior que instituiu os turbo-professores como a regra de colocação docente?
Um vergonhoso regime de acumulação de cargos de direcção pedagógica ou científica entre instituições públicas e privadas foi outra das consequências de uma lei cesarista e que confere poderes discricionários ao responsável pela pasta como se viu nos cortes de vagas decretados este ano.
O Professor Machado dos Santos, co-autor de um estudo encomendado pela tutela sobre o ensino superior, foi peremptório ao afirmar: Qualquer medida que seja tomada não pode significar uma desresponsabilização do Estado em relação ao financiamento e será difícil debater a questão das propinas num cenário em que o investimento do Estado esteja a decrescer. Foi este, contudo, o caminho escolhido pelo governo. Em nome de um Pacto de Estabilidade e Crescimento que aponta um crescimento zero para a educação durante esta legislatura, as verbas para o ensino superior desceram seis por cento em 2003, e, para este ano, prevê-se mais um corte nominal de dois por cento, ou seja, uma diminuição real à volta dos sete por cento.
A década de 1990 assistiu à introdução de propinas num conjunto de países que, confrontados com a massificação do acesso ao ensino superior, não conseguiram, ou não quiseram, aumentar a dotação orçamental com este nível de ensino. Foi assim em Portugal que, mesmo durante os anos em que o esforço financeiro do Estado mais se fez notar, nunca se aproximou dos valores médios gastos pelos restantes países da OCDE: 4766 dólares no nosso país, menos de metade da média, 11.109 dólares.
Enquanto que, nesta mesma câmara, garantiam à geração rasca que as propinas iriam responsabilizar os estudantes e melhorar a qualidade de ensino, as faculdades e institutos recebiam o mesmo dinheiro para muito mais alunos. Hoje, a maioria das instituições afecta mais de 90% do seu orçamento às despesas de funcionamento, desrespeitando as recomendações da OCDE e da fórmula padrão prevista na anterior Lei de Financiamento. Têm razão os estudantes, as suas propinas, que lhes disseram servir para melhores condições de trabalho, servem, na prática, para pagar o papel higiénico, a luz e água.
É esta a originalidade absoluta deste governo. Nunca, em nenhum país, se introduziu ou alterou o valor das propinas ao mesmo tempo que o Estado diminuía as verbas para o ensino superior. Que isso seja feito num país que gasta menos de metade, por aluno, do que os seus parceiros, isso sim, é absolutamente extraordinário.
Dizer que se assume esta medida em nome da justiça fiscal e do combate às assimetrias sociais é a maior das hipocrisias. E constitui o reconhecimento, implícito, de que o governo não consegue fazer nenhuma reforma fiscal. Em 7 países da União Europeia, como a Áustria, Finlândia ou Alemanha, não se paga propinas. Serão sistemas mais injustos que o nosso?
As propinas são injustas porque representam uma dupla tributação para aqueles que todos os anos cumprem o dever de pagar os seus impostos. Ou seja, os trabalhadores por conta de outrem. Enquanto o sistema fiscal não for transparente e democrático qualquer taxa suplementar reproduzirá as deficiências do próprio sistema. Aqueles que vão pagar as propinas são os mesmos que já pagam impostos. Os que conseguem fugir à tributação fugirão sempre a qualquer taxa.
Só a forma como o governo chegou ao valor das propinas já é, em si, todo um programa. Preocupado com a norma constitucional que estipula a progressiva gratuitidade do ensino, solicitou um estudo ao Instituto Nacional de Estatística para descobrir qual seria hoje, contabilizada a inflação, o valor equivalente às propinas estabelecidas nos anos 40 de século passado: 850 euros.
Que, 30 anos passados sobre o 25 de Abril, um governo estabeleça como critério de justiça social a comparação com um regime ditatorial que encarava o ensino como uma mera questão de reprodução social das elites dirigentes e nunca, ou pouco, se preocupava com os 40% de analfabetos então existentes, diz muito da justiça social da decisão em si. Para o governo, a modernização do Ensino Superior não é mais do que a actualização da Universidade dos anos 40.
Quando as propinas foram criadas as promessas eram muitas: que as faculdades considuiriam ser auto-suficientes, que viriam laboratórios, bibliotecas. Passados 11 anos as faculdades continuam a contar os tostões para pagar ordenados. Estão pior e não melhor do que estavam. Ainda hoje, não falta no espectro partidário, quem acredite que, em teoria, tudo poderia ficar melhor com propinas. Perante essa fé, só se pode fazer uma pergunta: então porque é que não fica?
Porque o valor está longe de ser simbólico, compreende-se a relutância da maioria PSD/PP em estipular como regra o valor da propina máxima. Passar a batata quente para os reitores é sempre mais fácil. Falta ao governo a coragem para decidir e arcar com as consequências das suas decisões. Assim, definitivamente, é fácil governar.
Mas desengane-se o Ministro Pedro Lynce. Será ele, e não outros, por delegação, quem se terá de confrontar com a contestação.
Bloco de Esquerda
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