Durante muitos anos desconsiderados, os primeiros anos de escolaridade são hoje justamente reconhecidos como um elemento estruturante da capacidade cognitiva de cada indivíduo. Infelizmente, são inúmeros os factores que contribuem para a desvalorização social e política que afecta presentemente este importante nível de ensino, entre os quais podemos destacar a dispersão e atomização das suas escolas pela totalidade do território nacional afectando, assim, o debate público sobre o funcionamento do sistema , o reduzido número de alunos existentes na maioria dos estabelecimentos e o inexistente peso reivindicativo dos alunos que o frequentam.
Mais não seja pela quebra demográfica que se vem acentuando de ano para ano, o Bloco de Esquerda entende ser este o momento certo para se proceder a modificações significativas do regime de docência do 1.º ciclo, aproveitando os caminhos entreabertos pela Lei de Bases do Sistema para requalificar pedagogicamente aquele que, desde há muitos anos, tem sido tratado como o parente pobre do sistema educativo português.
O princípio da monodocência, pese embora algumas das limitações que lhe são reconhecidas desde a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, tem ainda virtualidades que se encontram longe de estar esgotadas, as quais permitem assegurar uma correcta e conveniente articulação entre as necessidades pedagógicas e educativas, possibilitando assim uma eficaz resposta às necessidades educativas das crianças.
O funcionamento da maioria das escolas deste nível de escolaridade em regime de professor único para todas as áreas curriculares encontra-se assim cada vez mais distante da resposta que tem que ser fornecida às necessidades educativas dos alunos, tornando-se irrealizável que um único professor assegure todas as vertentes.
O Bloco de Esquerda defende com este projecto-lei um novo modelo de funcionamento do regime de docência sem, no entanto, desvirtuar o princípio consagrado na Lei de Bases do Sistema Educativo , julgando conveniente realçar os benefícios educativos para as crianças desta idade da constituição de uma rede especializada de equipas educativas formadas em áreas curriculares distintas, permitindo desta forma associar os conteúdos destas áreas com as restantes componentes curriculares.
Hoje por hoje, ninguém contesta o desenvolvimento das competências metacognitivas que a aprendizagem, nesta idade, de uma língua estrangeira ou o domínio de competências de expressão artística ou física pode significar. Sobre este aspecto, o Livro Branco da Comissão Europeia dedicado à Educação e a Formação (1995) é bastante claro, nomeadamente quando se refere ao ensino de línguas estrangeiras nos primeiros anos de escolaridade: A aprendizagem das línguas tem outro alcance. A experiência mostra que, quando é organizado na mais tenra idade, é um factor não negligenciável de sucesso escolar. O contacto com uma outra língua não só é compatível com o domínio da língua materna, como ainda a favorece.
O presente diploma pretende estabelecer as bases para uma progressiva requalificação pedagógica do 1.º ciclo de escolaridade, aproveitando convenientemente os recursos docentes especializados existentes nas áreas abrangidas pela proposta: expressão artística, educação física e língua estrangeira.
Para além dos óbvios ganhos em termos de capacidade pedagógica de um corpo docente com uma especialização acrescida e que funciona em equipa, esta medida permite uma maior articulação com o modelo de formação inicial que se tem vindo a desenvolver nas escolas superiores de educação sendo conhecido que as mesmas têm vindo a desenvolver um modelo misto para professores do 1.º ciclo e uma área disciplinar do 2.º ciclo.
O projecto-lei agora apresentado vai no sentido da constituição de equipas educativas docentes multi-disciplinares, constituídas por um conjunto de professores com formações diferenciadas e que tenham, preferencialmente, profissionalização para o 1.º Ciclo do Ensino Básico. A figura do professor titular continuará salvaguardada, sendo este docente o responsável pelas áreas curriculares que lecciona e trabalhando em par pedagógico com os professores coadjuvantes as áreas abrangidas pelo presente projecto-lei.
Aproveitando os recursos docentes existentes nos agrupamentos verticais, competirá às Direcções Gerais de Educação determinar o número de professores necessários para a constituição das equipas educativas em cada agrupamento ou conjunto de escolas, sendo certo que nenhum profissional poderá estar envolvido na coadjuvação docente de mais do que 12 turmas. Esta limitação, a que se junta a diminuição do horário semanal destes professores, é uma condição absolutamente necessária para permitir a constituição de equipas educativas que desenvolvam um trabalho cooperativo e que participem activamente na definição dos projectos curriculares de turma e de escola.
Este ponto é tanto mais importante quando o que se pretende não é implementar meramente um regime de docência multidisciplinar, mas, isso sim, um sistema misto que permita aproveitar as potencialidades do sistema de monodocência, assegurando uma organização docente mais versátil e especializada.
Portugal, como é sabido, apresenta os piores indicadores europeus no que ao aproveitamento e abandono escolar precoce diz respeito. Como está implementado, o nosso sistema educativo fomenta a selectividade e a reprodução das assimetrias sociais. Não é agindo no fim da linha que se conseguirá pôr fim a este negro panorama. A coerência entre os objectivos repetidamente enunciados para o conjunto do sistema de ensino português e as respostas educativas actualmente existentes deve ser garantida, a começar logo no 1.º Ciclo do Ensino Básico. Este é um ponto essencial para acabar com o ciclo vicioso que permite que, quase 30 anos depois da implementação da democracia, o nosso país seja o 3.º país da OCDE com mais jovens sem qualificação escolar de nível médio.
Artigo 1.º (Objecto)
A presente lei define um sistema nacional de coadjuvação docente especializada nos estabelecimentos públicos do 1.º ciclo do ensino básico, dando corpo ao disposto na alínea a) do artigo 8.º da Lei n.º 46/86, de 14 de Outubro, Lei de Bases do Sistema Educativo, alterada pela Lei 115/97 de 19 de Setembro.
Artigo 2.º (Abrangência)
A coadjuvação docente especializada desenvolver-se-á nas áreas de expressão artística, educação física e língua estrangeira.
Artigo 3.º (Recrutamento de docentes especializados)
A selecção de docentes coadjuvantes especializados nas áreas disciplinares referidas no artigo anterior será efectuada por concurso público, de acordo com regulamentação a aprovar pelo Governo, sendo obrigatoriamente dada preferência aos docentes que preencham pelo menos um dos seguintes requisitos: a) docentes profissionalizados neste ciclo de ensino; b) docentes com especialização nas áreas de expressão artística, educação física e língua estrangeira.
Artigo 4.º (Língua estrangeira)
A coadjuvação docente especializada nas áreas de expressão artística e educação física decorrerá durante os quatro anos de escolaridade do 1.º ciclo do ensino básico, enquanto a área disciplinar de língua estrangeira terá lugar a partir do 3.º ano de escolaridade.
Artigo 5.º (Professor titular) Todas as turmas do 1.º ciclo do ensino básico têm, obrigatoriamente, um professor titular, sendo o mesmo o responsável pelas componentes do currículo não abrangidas pelo presente diploma e pela coordenação do trabalho com os docentes coadjuvantes das áreas disciplinares referidas no artigo 2.º.
Artigo 6.º (Definição de Equipas educativas)
1 - O professor titular da turma do 1.º ciclo e os professores coadjuvantes que intervêm na turma constituem uma equipa educativa. 2 Compete ao professor titular: a) programar, aplicar e avaliar todas as componentes curriculares não abrangidas pelo presente diploma; b) articular a prossecução do seu trabalho com os docentes coadjuvantes especializados. 3 Compete aos professores coadjuvantes: a) programar, aplicar e avaliar as componentes curriculares pelas quais são responsáveis; b) colaborar com o professor titular na construção dos projectos curriculares de turma e de escola.
Artigo 7.º (Número de turmas por professor coadjuvante)
Cada conjunto de, no máximo, 10 turmas do 1º ciclo do ensino básico será apoiado por um professor coadjuvante por cada área disciplinar referida no artigo 2.º.
Artigo 8.º (Constituição das equipas educativas)
Com base nas estimativas provisórias de alunos enviadas pelas escolas, competirá às Direcções Gerais de Educação determinar o número de professores necessários para a constituição das equipas educativas em cada agrupamento ou conjunto de escolas.
Artigo 9.º (Apoios à docência)
Os professores coadjuvantes especializados beneficiam de uma redução da componente lectiva do seu horário de 5 horas semanais, e, caso exerçam funções em 2 ou mais estabelecimentos públicos do 1.º ciclo do ensino básico, têm direito a um subsídio de deslocação equivalente a 10% do seu salário.
Artigo 10.º (Limite geográfico)
1 - A escola ou agrupamento de escolas constitui a unidade em que intervêm os docentes coadjuvantes a que este diploma se refere. 2 - No âmbito do seu trabalho de coadjuvação docente especializada, nenhum professor poderá ser obrigado a exercer funções em estabelecimentos de mais do que um concelho.
Artigo 11.º (Disposição transitória)
A criação e implementação das equipas educativas multidisciplinares previstas no presente diploma deverá ser feita de acordo com a seguinte calendarização: a) - No início do ano lectivo de 2003/04, num número não inferior a 30% das escolas públicas do 1.º ciclo; b) - No início do ano lectivo de 2004/05, num número não inferior a 50% das escolas públicas do 1.º ciclo; c) - No início do ano lectivo de 2006/07, em todas as escolas públicas do 1.º ciclo.
Artigo 12.º (Regulamentação) O presente diploma será regulamentado pelo governo no prazo de 60 dias.
Artigo 13.º (Entrada em vigor) A presente lei entra em vigor no início do ano lectivo de 2003/04.
Assembleia da República, 28 de Maio de 2003 Os deputados do Bloco de Esquerda
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