Obras completas de Rolão Preto

As Obras Completas de Rolão Preto, Ed. Colibri, são organizadas em 2 volumes por José Melo Alexandrino, Prof. na Fac. de Direito da Univ. de Lisboa, e têm lançamento, previsto para o próximo dia 14 de Junho, pelas 19h00, no Auditório da Feira do Livro.

Reúnem-se nestes livros as quinze principais obras publicadas em vida por Rolão Preto, (pensador, jornalista, líder político e ensaísta), entre 1915 e 1972. Entre as razões que estão na base da presente edição, a primeira é, sem dúvida, a do interesse histórico que reveste a disponibilização do acesso à obra publicada por Francisco de Barcelos Rolão Preto (1893-1977). E a segunda prende-se com o interesse histórico subjacente ao estudo do pensamento político português do séc. XX, nomeadamente o Integralismo Lusitano.

Rolão Preto: um intérprete do século XX

«Le malheur des temps a causé son erreur, mais la force de son âme l'en a fait sortir avec gloire.»

J. W. Goethe

Depois de notadas as suas origens integralistas (onde era o mais jovem dos primeiros líderes do movimento), foi recentemente sintetizado o percurso de Rolão Preto nos seguintes termos: «A sua evolução pessoal desde a década de 1920, passando por uma série de ligas e movimentos, espelha a evolução da extrema-direita em Portugal. Uma preocupação que distinguia Rolão Preto dos integralistas, e que permaneceu constante, era a necessidade de conquistar a classe trabalhadora e de a trazer para o palco da vida nacional como um actor consciente e educado» (cfr. Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar - Uma biografia política, 2.ª ed., Alfragide, 2009, p. 151).

Perante uma síntese como esta, como aliás perante qualquer outra, muitas seriam as interrogações possíveis: terá sido essa a evolução de Rolão Preto em geral? É possível comprovar objectivamente a referida preocupação distintiva? Ao lado dessa, que outras constantes ou linhas de força registam os seus livros? Ao invés, que ruturas ou incoerências significativas marcam o seu percurso? Houve mesmo rutura relativamente à matriz integralista ou à preferência monárquica, como também pretende Ribeiro de Meneses? Perante o fosso que divide os especialistas, como deve ser qualificado o nacional-sindicalismo português? Enfim, que dizer sobre Rolão Preto quando confrontado com outras figuras doutrinariamente marcantes, como António Sardinha, de quem foi considerado discípulo (cfr. Acción Española, tomo VII, n.º 39, 16 octubre 1933, p. 199), ou com os principais líderes políticos do seu tempo (Afonso Costa, Salazar ou Marcello Caetano)?

Apresentando para a generalidade do público o conjunto de uma obra escrita entre 1915 e 1972 (através da identificação das suas características, dos seus tempos e dos seus elementos fundamentais), este breve ensaio de história política pretende também iluminar, sob o ponto de vista dessa obra, a resposta a algumas daquelas interrogações.

I - Aspectos e características gerais da obra

Apesar de uma unidade imanente, desfilam pela obra publicada de Rolão Preto os mais variados géneros: o ensaio poético, textos de comentário ou de análise política ou sociológica, guiões político-partidários, textos de ensaio histórico ou filosófico, reportagem de guerra, discursos, palestras, crónica jornalística, cartas políticas. Por vezes, dentro da mesma obra é possível distinguir idêntica variedade de registos, desde o texto doutrinário, a alocução, a entrevista, o depoimento, o conto, etc.

Este carácter multifacetado dos escritos tem naturalmente correspondência nas vestes com que nos surge o seu autor: o jovem idealista, o ensaísta, o sociólogo, o líder político, o polemista, o lutador, o jornalista, o sábio do final da vida.

Nela conseguimos por isso quase vê-lo, em quadros sucessivos: no frémito de uma alma sensível (depois de certamente ter assistido, na Bélgica ou em Paris, à representação do Lohengrin e do Tristão e Isolda de Wagner); a receber a visita do grão-mestre Magalhães Lima, em 1916, no seu quarto de Toulouse; a analisar a Revolução Russa, nas páginas do «Diário de Notícias», em 1919; a polemizar com o padre "Santa Cruz", nas páginas do jornal «A Época», em 1922; a escrever folhetos, em sucessivas edições, para orientação dos trabalhadores; a comentar, quase em direto, as entrevistas de Salazar a António Ferro (lançando daí um repto ao «ditador das finanças» para que se candidatasse à eleição presidencial); a percorrer as frentes da guerra civil de Espanha, mas também a entrevistar Franco em Salamanca, a dialogar em Mérida com um centurião de Mussolini ou a proferir uma alocução na Rádio Sevilha, em 29 de março de 1937; a traçar os cenários da vitória na II Guerra Mundial, pondo os povos em diálogo, em pleno ano de 1942; a apelar ainda uma vez aos novos, clamando pela revolução e por claridade, em Castelo Branco; a tentar a grande retrospectiva do decepcionante esforço de 30 anos da sua geração, em 1945; a insurgir-se, no Rádio Clube Português, contra o estatismo e a fiscalidade excessiva (apelando agora a Salazar para que desistisse); a lavrar o seu «Depoimento», depois de meio século de aspirações, de imprudências, de trabalhos e de lutas; a reclamar junto da Câmara do Fundão («a Senhora Câmara») ou a responder à carta de uma rapariga de 18 anos que lhe perguntava como se devia escolher um homem, escrevendo com leveza sobre os pequenos problemas da vida; enfim, a dirigir as suas cartas políticas - de certo modo, o seu testamento - a um republicano, primeiro, e depois a Marcello Caetano, a quem fizera o apelo - ainda desta vez não seguido - para que «tomasse cuidado e fizesse uma obra nova» (cfr. «Entrevista com Rolão Preto», in João Medina, Salazar e os fascistas - salazarismo e nacional-sindicalismo a história de um conflito 1932/1935, Lisboa, 1978, p. 181).

Mas ao longo desses quinze textos desfilam igualmente - sem que nunca o autor deixasse de tomar posição - os grandes confrontos do século: (i) no plano geral, o conflito entre o liberalismo e o antiliberalismo, entre o comunismo e o nacionalismo, entre o respeito pelo Direito formal e a violência, entre o Estado e o homem; (ii) no plano nacional, o confronto entre a representação partidária e a representação orgânica, entre ordem e liberdade, entre conformismo e revolução, entre o capital e o trabalho, entre a república e a monarquia, entre a centralização e o regionalismo, entre partido único e liberdade de associação política; (iii) no plano da acção, a escolha entre a luta pela conquista do poder e a luta junto das consciências (a dita «revolução interna», como passou a dizer a partir de 1942), a escolha entre o dom inestimável da paz e o «doce dom de viver», o conflito entre a afirmação de verdades eternas e a correspondente necessidade de rectificação.

Mas o autor é também um retratista, que se debruça sobre homens e acontecimentos. Há por isso excelentes retratos da Revolução Russa (em 1920), do comunismo (em 1932), de Salazar (em 1933), da guerra civil de Espanha (em 1937), do povo português (em 1936 e 1945), de Mussolini (em 1945), da sua geração (em 1945 e 1963), do século (em 1963), de personagens como Vieira de Almeida, Paiva Couceiro, Norton de Matos (em 1963), da indecisão do marcelismo (em 1971 e 1972).

Expressa ou implicitamente, o destinatário dos seus textos é sempre o Povo Português. Como escreveu na abertura do livro «Justiça!» - que também dedicou à memória do seu bisavô, o médico António das Neves Carneiro, deputado às Constituintes de 1836, e à memória do filho deste, António Maria das Neves Carneiro, académico de Coimbra, enforcado em 9 de Julho de 1830 por cumplicidade no morticínio dos Lentes, e «ao seu alto sonho de liberdade e de justiça que, pelo seu sangue, em mim se continua e afervora na nova batalha pelo resgate da Personalidade Humana»: «Ao povo de Portugal, povo de rurais, de marujos e de soldados, povo de sonhadores, povo mártir; povo que conserva e traz de longe as cicatrizes dos golpes que sofreu no seu corpo e das desilusões que suportou na sua alma; povo que vem de longe, das aventuras do Oriente, da África e das Américas, e mantém na sua força a mesma força, no seu anseio o mesmo anseio, a ele ofereço este livro cheio, como o seu peito, de inquietação e ânsia de justiça.» Exceptuam-se de certo modo por isso «Redempção» (obra dedicada aos pais), «Para além do comunismo» (dedicada aos tenentes, à mocidade que soube fazer o milagre do 28 de maio) e «Inquietação» (dedicada aos filhos, mas também ainda ao povo português, «povo sofredor e forte, generoso, sonhador, povo bom» - «que espera sempre»).

Quanto aos recursos estilísticos, uma das primeiras notas é sem dúvida a de que, apesar do percurso de estrangeirado nos "anos de aprendizagem", Rolão Preto, além da palavra "fluente, viril e ousada" (Mário Saraiva) que o caracterizava, sobretudo na arrebatada e vibrante comunicação oral, nunca deixou de cultivar a sensibilidade e, por vezes até, o lirismo exaltado dos integralistas [cfr. Ana Isabel Sardinha Desvignes, António Sardinha (1887-1925) um intelectual no século, Lisboa, 2006, pp. 169, 175, 241] - um símile neste aspecto de um outro seu amigo (cfr. José Antonio Primo de Rivera, Escritos y Discursos. Obras Completas 1922-1936, obra organizada por Agustín del Río Cisneros, Madrid, 1976). Outras notas são o estilo aforístico, metafórico e alegórico, a divinização de palavras ou expressões (daí a frequência do uso das maiúsculas), a intuição proverbial, a utilização do sonho e da recordação, a vivacidade e o humor. Em contrapartida, não é caso para se falar num escritor puro (ainda que em certos textos se possa aproximar nesse plano a Luís de Almeida Braga), até por uma certa recorrência de questões formais significativas, também aqui comuns à generalidade dos seus companheiros das primeiras décadas.

Alguns outros traços significativos marcam ainda estes escritos.

Um deles é o facto de haver na generalidade destas obras uma visão de conjunto do problema social, económico e político português (uma incapacidade que nas páginas da Seara Nova Raul Proença diagnosticou em 1923 a Afonso Costa), revelando assim o perfil de alguém que pensou e preparou mais do que um programa de governo. O segundo, de algum modo reverso do anterior, é a completa ausência de referências, nessas centenas e centenas de páginas, à concreta situação existencial do escritor, a um único problema do seu foro estritamente privado, familiar ou social. Esse será talvez, ao lado de uma forte nota da personalidade, um elemento vindo ainda da generosidade e do estoicismo típicos pelo menos de uma parte dos integralistas, virtudes bem patentes nas palavras que utilizou em 1975 para se referir ao seu amigo Alberto de Monsaraz (que o acompanhou também no exílio de 1936): «Era uma pessoa de uma pureza, de uma lealdade absoluta» (cfr. «Entrevista...», p. 168). Um derradeiro traço é a inexistência de qualquer tipo de ódio ou ressentimento, numa única dessas páginas: mesmo em relação a Salazar - alguém que nunca foi «capaz de ser humano», que «não era português» (cfr. «Entrevista...», p. 184) -, Rolão Preto veio a confessar que lhe ofereceu o livro «Justiça!», em 1936, com a dedicatória «sans rancune» (cfr. «Entrevista...», p. 175); pelo contrário, mesmo após a confirmação do erro ou da derrota, mesmo aí (como fez com Mussolini - já depois de subida a "colina da deceção") ou sempre que teve de se pronunciar sobre companheiros ou amigos (como Paiva Couceiro ou Pequito Rebelo), procurou sempre entender historicamente a acção dos homens (cfr. «Entrevista...», p. 176, em nota).

II - Os tempos da obra: dois grandes ciclos e uma década de transição

Partindo de um critério que combina a evolução real do pensamento político com a perceção do recorte desses períodos feito pelo próprio autor (como há elementos para entender que sucedeu em 1945 e em 1963), podem objectivamente ser identificados na obra de Rolão Preto dois ciclos principais, separados por uma fase de transição.

Os elementos que conferem unidade ao primeiro ciclo (1915-1935) são essencialmente: o nacionalismo, o descrédito relativamente às instituições da democracia representativa, a inspiração soreliana da acção, o primado do social. Os primeiros três elementos têm uma relevante influência de Maurras (sobre essa influência junto do Integralismo Lusitano, na linha de Raul Proença, cfr. Carlos Ferrão, O Integralismo e a República. Autópsia de um mito, vol. I, Lisboa, 1964, pp. 114 ss.).

O segundo ciclo (1946-1972) define-se de certo modo por oposição: a afirmação do primado do homem e da liberdade; a recuperação das instituições da democracia representativa (defesa dos partidos políticos, do sufrágio, do debate e do papel da oposição); o abandono de uma ilimitada confiança nos princípios, pois, como dizia Alan, «os princípios cedem» (cfr.  «Inquietação»); a rutura definitiva com o estatismo de inspiração maurrassiana e com os métodos inspirados em Sorel (ou porventura em Mussolini e Valois).

Ora, sem prejuízo dos elementos de continuidade que atravessam os dois ciclos, há uma fase de transição (1936-1945) de extraordinário interesse político e histórico. Em termos gerais, admite-se mesmo que essa fase de transição possa ter tido início logo em 1934, perante o que é possível intuir na representação enviada a Salazar, em 10 de Julho de 1934, a protestar contra a violência de ter sido preso por querer comunicar o seu pensamento, ou a partir da intensidade do relacionamento com António Sérgio (cfr. «Entrevista...», p. 165). Outros autores recuam ainda mais: «Em 1933-1934, em Portugal, havia, assim, dois grupos no Estado Novo: um, sob a égide de Salazar, de estrutura contra-revolucionária e que repelia o totalitarismo; outro, sob a chefia de Rolão Preto, com uma imagem ilusória fascizante, mas na realidade personalista e humanista» (cfr. António José de Brito, «Um pseudofascismo: o nacional-sindicalismo português», in Ensaios de Filosofia do Direito e outros estudos, Lisboa, 1997, p. 218).

Quais são então as notas desta fase de transição?

O elemento-chave pode ser definido numa palavra (aliás bem conhecida dos integralistas): rectificação! As demonstrações podem ser facilmente encontradas em qualquer das seis obras publicadas nesses dez anos.

No mais marcante de todos os seus livros, «Justiça!», datado significativamente de 1 de Maio de 1936, afirma-se: não pode haver Direito para servir apenas a vontade incerta de um homem! Outras bases se exigem: «as da personalidade humana» (cap. II); na equação entre a autoridade e a liberdade, uma vez que a autoridade não é infalível, a mesma «não poderá negar à liberdade as possibilidades que ela nos dá de procurarmos a verdade que a ela própria lhe falta» (cap. VI); a aspiração suprema do homem é libertar-se (cap. VI); «a única realidade humana é a pessoa» (cap. VII); daí o famoso lema: "Tudo pelo homem, nada contra o homem!" (cap. XI).

No livro «Revolução Espanhola», do ano seguinte, a rectificação é feita já de modo expresso: «[é] preciso queimar a obra de Sorel»; a violência e a queda aterradora dos direitos são um «desastre que atinge toda a grandeza da Personalidade Humana.» E replicando ao oficial romano que lhe respondera que a Personalidade Humana era sem interesse: «Ó Pietro Alba! Lenine também disse: "Para nós a vida humana não tem valor metafísico algum...". Para onde vai assim o mundo, à força de escutar tantas e tantas afirmações em que o Homem se nega a si próprio?»

Na nota introdutória do opúsculo «O Fascismo», Rolão Preto não só reconhece que em 1939 já era apelidado de bolchevique, mas que do fascismo apenas o método era correto, pois, quanto à substância, o critério é o dos «direitos da pessoa humana».

Em «Para além da guerra», de 1942, a transformação assume novos ângulos: a mudança do prisma da revolução, que passa agora a ser a dita "revolução interna" (deixando para segundo plano a finalidade da ocupação do poder), bem como a perceção de que a Guerra iria justamente produzir essa revolução interior. E estas são também as ideias fortes do discurso «Em Frente!», dirigido agora aos seus companheiros portugueses: em frente com a revolução, primeiro dentro do nosso ser; a personalidade do homem é a finalidade suprema, o Estado é meio.

Finalmente, no livro «A Traição Burguesa», qual é afinal o conteúdo do libelo acusatório dirigido contra "o mal burguês"? É o de que a burguesia sacrificou as liberdades públicas e o bem comum. É o de que a burguesia atraiçoou a bandeira da liberdade, da igualdade e da fraternidade, ou seja, atraiçoou os destinos da revolução. É o de que a primeira coisa que a traição burguesa apaga é a fé nas ideias, nos homens e nos destinos da Nação (cap. V). Mas além disso - e, de novo, a rectificação - o nacionalismo era uma ideia imprudente, carregada de elementos explosivos e perigosos. Para acrescentar: «Felizes os ingleses, que, pelas suas instituições políticas e tradição de costumes, puderam tentar a experiência revolucionária sem terem que usar da violência na conquista do poder e no seu livre exercício!» Mas tudo leva a crer que tenha chegado uma nova época da História, que venha aí o povo. «E o que é o povo?» - pergunta. É a possibilidade de abrir «um dia, entre todas as nações, a era de uma convergência geral de possibilidades humanas, capazes porventura de resolver os grandes problemas do destino do Homem no mundo» (cap. IX).

Em suma, há elementos suficientes para afirmar que, em meados da década de 1930, Rolão Preto tenha passado por um significativo processo de transformação que o conduziu definitivamente para o campo da liberdade, com o progressivo abandono de todos e de cada um dos elementos definidores daquilo a que acima foi designado de primeiro ciclo, abrindo assim as portas para uma visão do mundo que no plano político se distanciava substancialmente da que defendeu entre 1915 e 1935 (tanto nos livros ou na imprensa, como na própria acção política).

III - Elementos fundamentais da obra

a) No ciclo de 1915 a 1935 - «Redempção (ensaio psychologico)», datado de 1915, é um livro praticamente desconhecido e, além disso, difícil de classificar. Apresentado pelo autor como um «estudo» de carácter psicológico fundado no renascer da esperança, Redempção fala da inevitabilidade do sofrimento e da morte («Existir tem um sinónimo...sofrer»), mas, na verdade, é um tratado sobre a esperança e sobre o amor, corporizados no Eterno Feminino e na força que deste emana para a salvação de um espírito desesperado. Por outro lado, transparecem neste livro raros elementos autobiográficos: é esse o caso das referências à vida irrequieta e passional dos 18 anos, em que os sonhos do combate ardente na defesa de uma causa política enxovalhada (a monarquia) o levam ao exílio (cap. I); é o caso da autodescrição, por comparação com o Lohengrin, como o «eterno incompreendido» (cap. II); é o caso do reconhecimento de que a vida é «luta trágica, sem repouso, sem consolações, o combate sem cessar»; é mesmo porventura o caso da confissão de uma crise existencial extrema, abismo do qual ela, pousando-lhe a mão no ombro, o salvou. E tal como ela o salvou, também a mulher do Futuro (a nova Eva, «a mulher inteligente, grande e simples do nosso século») poderá salvar o homem. Eis a Redenção!

Publicada cinco anos mais tarde, a segunda obra deste ciclo («A monarquia é a restauração da inteligência») nada tem aparentemente a ver com a primeira, nem na origem, nem na natureza, nem no conteúdo, nem no objectivo: recuperando também alguns textos escritos desde 1917 sobretudo na imprensa integralista, estamos agora diante de um texto ideologicamente marcado que, ao lado do trabalho de combate político, tem em vista: (i) proceder a uma análise dos grandes movimentos políticos da época (os processos e o desfecho do confronto entre Marx e Proudhon, a posição de vários grupos políticos europeus face à I Guerra Mundial, a revolução russa de 1917, a ditadura do proletariado e em geral a comprovação da falência da democracia parlamentar); (ii) identificar o dilema entre o estatismo e a descentralização - reconhecendo simultaneamente a necessidade e o perigo do estatismo, cuja marcha já se fazia sentir na própria Inglaterra (cap. VIII, I); (iii) enunciar finalmente um quadro de propostas políticas em semelhante contexto, sintetizadas na ideia de Monarquia Social (assumindo-se expressamente o autor, nesta última parte, como sociólogo). Trata-se por tudo isso de uma obra heterogénea, escrita num tempo "de tragédia", onde o autor vislumbra o surgimento da verdade política, «no pó da mentira do comunismo e da democracia» (Introdução), e na qual alguém viu um livro presunçoso, mas que teve bastante êxito nos meios integralistas (cfr. Marcello Caetano, As minhas Memórias de Salazar, Lisboa, 1977, p. 70). Desdenhando a utopia maléfica da igualdade, pois «é necessária a diversidade, a desigualdade, a dificuldade, para que haja a harmonia» (cap. II), a obra denuncia também: o desprezo dos marxistas pela honra e pelo Direito internacional (cap. III); o crime da Alemanha contra as Nações latinas, bem como a feição germânica e colectivista do bolchevismo, vendo em Lenine um homem «das mais decididas e criminosas intenções» (cap. IV); a democracia como o regime de amadores políticos: «A facilidade com que o sistema parlamentar guinda aos mais altos cargos políticos e administrativos 'criaturas' que num regime inteligente de seleção fariam talvez um medíocre operário dentro do campo restrito de qualquer atividade industrial, é decerto o 'vício' que mais contribuiu para a falência da democracia» (cap. V); o sistema democrático é pois, além de absurdo, uma superstição (cap. IX). Por fim, contra as ilusões da razão (que não nos salva, pois a vida é luta) e do Direito (que constitui em democracia uma pura abstração), impõe-se a ideia de «contrato permanente com as realidades», à luz das grandes componentes da vida: necessidade, utilidade, interesse (cap. X).

«Balizas - Directrizes - Alma!» é um folheto datado muito seguramente de 1932 (com efeito, no n.º 20 do tomo IV, de 1 de Janeiro de 1933, da revista Acción Española, já se refere a publicação desse manual), que se declara de apelo ao leitor, «para impor deveres e reclamar direitos de todos os trabalhadores» (do prefácio à 1.ª edição) e «para orientar os trabalhadores» (prefácio à 4.ª edição, escrito em nome do Chefe do movimento nacional-sindicalista). Recuperando algumas das propostas já enunciadas em 1920, ainda do ponto de vista formal, há dois outros aspectos a reter: o facto de esta ser a única obra em que o autor aparece nas vestes de líder político e de educador e, precisamente, o carácter didático do folheto, que se encontra estruturado em termos de pergunta/resposta, terminando com um articulado de directrizes. Já do ponto de vista substantivo, a ordem pela qual são apresentadas as directrizes (Personalidade, primeiro, Trabalho, depois, Sociedade, Nação e Estado, no final) corresponde de facto ao que se declara ser a finalidade da revolução: «garantir à personalidade humana a posse de todos os seus direitos para cumprimento integral dos seus deveres sociais»; o Estado e a sociedade deverão por isso ser «postos ao serviço e engrandecimento do Homem»; mas «o homem não é o indivíduo, é a Pessoa, é uma realidade humana». Em segundo lugar, além da recuperação dessa ideia de matriz kantiana do "Estado como instrumento", dá entrada nesta obra uma expressão que vai ter algum eco, "Pão e Justiça": «todo o trabalhador tem na comunidade portuguesa o direito a pão e a justiça». Em terceiro lugar - e é significativo que esse duplo reconhecimento tenha sido feito no auge desse movimento político -, «o Estado nacional-sindicalista não terá preconceitos de raça e respeitará as crenças religiosas de cada um». Finalmente, uma nota sobre o sindicalismo: o sindicato ideal é o sindicato pequeno.

Ainda em 1932 é publicado o livro «Para além do Comunismo», estruturado em três partes: o comunismo perante os factos, a doutrina comunista e o "para além" do comunismo. Na primeira parte, a partir de textos da imprensa francófona a que tinha acesso - como veio a justificar dois anos mais tarde, em resposta a ataques provindos de dissidentes do movimento -, o autor descreve o universo absurdo e trágico das realidades da vida política, social e intelectual da União Soviética. Na segunda parte, reconhecendo embora, mais uma vez (como em fez em 1920), a "genial fantasia" de Marx, identifica os vários erros do marxismo e a sua ultrapassagem pelas realidades económicas. Na última parte, esboça os vetores de uma outra doutrina: o solidarismo, a representação dos interesses, o reforço do poder executivo, a realização da identificação da economia com a política e o apelo aos novos. Em todo o caso, sem incorrer nos mesmos erros e nos mesmos vícios: «homens livres que somos, livres de partidos, de clientelas, de absurdas fórmulas».

Como refere o subtítulo, «Salazar e a sua Época» é um comentário às entrevistas que Salazar concedeu em finais de 1932 a António Ferro. O comentário foi feito praticamente em direto nas páginas do jornal A Revolução, entre 2 e 11 de Janeiro de 1933 (cfr. João Medina, Salazar e os fascistas, p. 147, nota 32), e publicado em opúsculo ainda nesse mês de Janeiro. Rolão Preto captou de pronto a importância política dessas entrevistas, importância mais tarde comprovada pela série de edições estrangeiras que mereceram (cfr. Fernando Rosas, «Prefácio», in António Ferro, Entrevistas a Salazar, Lisboa, 2007, p. XXVIII) e não menos pelo facto de Rolão Preto e os seus "camisas azuis" serem aí «uma espécie de ausente subliminarmente muito presentes nas entrelinhas» (ibidem, p. XXXVIII), o que dá ao opúsculo o carácter de uma verdadeira resposta (é essa aliás a perspetiva de Fernando Rosas). O autor apresenta a sua obra, que tem na capa uma caricatura estilizada de Salazar da autoria de Almada Negreiros, como um folheto que pretende ser um contributo para o melhor esclarecimento da fisionomia política do chefe do Governo, dirigindo ainda a Salazar palavras «justas e desinteressadas» (como é sabido, no ano seguinte, Rolão Preto estava preso, devido a um exercício semelhante). Curiosamente, confessa também que, ao contrário de outros textos, este foi escrito com calma e reflexão, o que dá boa nota do frenesim do autor, para quem 10 ou 15 dias já eram um tempo longo, a permitir calma e reflexão. Quanto ao conteúdo, de facto, Rolão Preto não julga Salazar, ilumina-o, ora diretamente, ora por comparação: Salazar é frio e controlado, aguarda-se; sendo o único catedrático no governo da Europa, a diferença principal face aos demais líderes europeus reside em ter aceitado que os outros lhe conquistassem o poder; admira Mussolini, mas não o toma como modelo, tão-pouco podendo comparar-se a Sidónio; Salazar é um homem de Estado do centro, que não comunga das ideias fundamentais da revolução social, que não consegue apaixonar, nem considerar o coração do homem - não é um Chefe (cfr. Fernando Rosas, «Prefácio», p. XXXIX, nota). Pode pois afirmar-se, sem com isso conceder nas demais teses desse historiador francês, que a obra constitui «uma prova da amplitude das divergências» entre dois líderes, entre duas conceções, entre dois estilos de homens (cfr. Yves Léonard, Salazarismo e Fascismo, trad. de Catarina Horta Salgueiro, Mem-Martins, 1998, p. 125).

 

b) Na fase de transição - Tanto nas novas interrogações e inquietações, como no diagnóstico e na análise dos fenómenos, como ainda nas novas bases em que assentam as respostas às debilidades do liberalismo, «Justiça!» é, como já foi notado, a obra mais consistente de Rolão Preto. Dividida em três partes, na primeira delas analisa-se o estado de alma daqueles que, durante mais de um século, acreditaram nos valores do liberalismo: onde estão os direitos sagrados do proprietário? Como se vão garantir as liberdades, defender a igualdade? Até que ponto a derrocada não «atingirá as bases consideradas definitivas da civilização?» A verdade é que o liberalismo (cuja regra é o egoísmo) atraiçoou a liberdade (sendo esse o seu maior pecado) e o que se aproxima é «um trágico, um temeroso ajuste de contas»; o liberalismo, mas também o fascismo (e o Estado Novo) mentem: uns dizem propriedade, mas pensam capitalismo, dizem justiça, mas pensam privilégio; outros à liberdade opõem Nação, à verdade a ordem, à personalidade o Estado; uns e outros põem em marcha a tragédia de uma batalha comandada pelos mortos (evocando aí uma fórmula difícil, cara a António Sardinha, por exemplo) (cap. IV). Na segunda parte, apresentam-se as duas bases da Justiça, a personalidade humana e a dignidade do Homem (capítulos VI a VIII): perante as duas tendências, a que aumenta os deveres em proveito do grupo e a que procura a dignificação do Homem, «os totalitarismos atuais têm a sua origem na primeira»; ora, «Revolução tem um sinónimo: libertação. Libertação, quando o homem, escravo das dificuldades materiais que lhe vêm do seu isolamento e da sua fraqueza sobre o mundo, procura - associando-se - a possibilidade de um melhor desenvolvimento próprio; libertação quando, sob o jugo da sociedade tornada tirania, ele reivindica os direitos inerentes à sua personalidade. A liberdade aparece, portanto, como uma das condições máximas do homem» (cap. VII); mas a moral individualista criou o mito do homem-fantoche, do homem-indivíduo, banindo todo o espírito solidarista e humanista, quando o clamor continua a ser Pão e Justiça (cap. VIII). Além dessas duas bases, apresentam-se também os principais factores da dignidade humana, a saber: a família (cap. IX), o trabalho e a comunidade nacional (cap. X). Reconheça-se que Rolão Preto é aqui inteiramente consequente, não só nas críticas ao liberalismo, mas sobretudo por ter dado ouvidos ao conteúdo dessas críticas: não basta, de facto, proclamar a liberdade, é preciso também atentar nas condições da realização da dignidade humana, a começar pela funcionalidade da família na sua tarefa única de ser a forja da têmpera de cada um dos filhos (na medida em que o homem se define como «a diferenciação substancial da personalidade humana»), na condição digna do homem e da mulher no casamento e a passar pela mais justa organização social do trabalho (sem todavia lhe prestar culto), de modo a poder libertar o homem do sofrimento injusto. Uma comunidade assim tem naturalmente de recusar o eugenismo ou um papel aos laços de sangue. Na terceira parte, apresenta o seu programa de governo (que, em bom rigor, é um programa político alternativo ao do Estado Novo): (i) antes de mais, «o poder do Estado só é legítimo quando limitado pelos direitos de natureza humana» (cap. XI); (ii) num segundo plano, a censura é o mais condenável dos atentados à personalidade humana, porque atinge o espírito (cap. XII); (iii) na área económica, impõe-se não apenas uma ampla reforma económica e financeira, mas também a criação de um mínimo de base (com crédito ao trabalhador, salário mínimo e proteção à família) e o reforço dos sindicatos, não deixando de criticar as soluções fascistas neste domínio (cap. XIII); (iv) exige-se ainda uma política agrícola que tenha na devida conta o ruralismo português, que responda à miséria da vida rural - para não falar das casas miseráveis em que vivem os portugueses dos campos (cap. XIV); (v) nas relações internacionais, defende-se um mercado comum, sem desconsiderar a natureza política do problema ultramarino (cap. XV); (vi) enfim, quanto à questão do regime, o que interessa não é manter o fetichismo das fórmulas (liberalismo, democracia, etc.), «mas sim o sentido de justiça que inspirava os homens aos criá-las», terminando assim: «Portugueses: Revolução quer dizer Justiça!» (cap. XVI).

Concebida como um misto de depoimento e de notas rápidas de reportagem, «Revolução Espanhola: homens, factos, ideias» é um retrato vivo e surpreendente, executado num registo quase cinematográfico, do que foi a tragédia sem par da Guerra Civil de Espanha - «um Goya monstruoso que se desdobra por largos e intermináveis meses, sem cessar». Então no exílio em Espanha, Rolão Preto preferiu usar as armas do jornalista a tomar parte no conflito (e bem poderia, como fizeram António de Spínola ou Humberto Delgado, entre milhares de outros portugueses, ter combatido ao lado de Franco, que de facto o recebeu friamente em Salamanca), para nos apresentar o direto de instantes «desse conflito sangrento», captados e relatados no seu auge (a primavera de 1937), junto do lado nacionalista. Ora, é nessa atmosfera de desvario e violência que, para o político jornalista, se consuma o desastre maior: o da queda de todo o respeito pela dignidade do Homem, que já não cai em combate, que «conta menos do que uma pobre alimária desamparada». Nessas páginas há ainda espaço para o registo das impressões colhidas na entrevista a Franco e para a evocação de José Antonio Primo de Rivera, morto havia escassos meses, amigo ao qual não declina sentidas palavras de homenagem. Desenha-se ainda aí a alma de uma Nação em busca de si própria, sustendo-se na força das mulheres, no amor dos irmãos e maridos destacados para as trincheiras, na intensa fé que a leva às procissões da Semana Santa, sob o odor de sangue e pólvora do "Calvário da Espanha". Pelo meio, também se ouvem as "charlas" do general Queipo de Llano ou a alocução que, a convite deste, Rolão Preto profere na Rádio Sevilha. A obra tem ainda o extraordinário interesse de nela se fazer o primeiro ato de contrição pelo ambiente soreliano e pelo ataque consentido pela sua geração ao Direito formal, «o dique que protege a pessoa humana». Prossegue por isso a rectificação, agora na reconciliação com o Direito.

Em 1939, a pedido de camaradas e amigos, é editada a brochura «O Fascismo - Artigos ressuscitados de uma antiga polémica». Trata-se, como o título indica, de um conjunto de artigos publicados entre agosto e novembro de 1922, no Jornal A Época, acompanhados das respostas do padre Santa Cruz e antecedidos de uma nota introdutória desse ano de 1939. Há três pontos de interesse nesta obra: o primeiro reside no facto, já salientado, de Rolão Preto manter relativamente ao fascismo a relevância da distinção entre métodos e ideias; o segundo reside na revelação dos eventuais efeitos de uma subtileza do padre Santa Cruz, ao referir, na carta de 31 de agosto de 1922, a sua satisfação «por ter dado lugar a que o ilustre defensor do Fascismo revelasse a vastidão de conhecimentos que possui sobre a política italiana e a paixão com que acompanha acção de um grupo político»; em vão provavelmente, Rolão Preto lhe respondeu: «Eu não sou fascista, sou integralista» (resposta de 7 de outubro de 1922); o terceiro prende-se com o teor de duas afirmações feitas em 1922: uma de relativização do Direito, da Justiça e da Verdade e outra reconhecendo que o futuro para que trabalha, como nacionalista, é o do sindicalismo orgânico (ainda na mesma carta).

Em 1942, surge o ensaio de análise histórico-política «Para além da Guerra», um livro que causou despropositados equívocos de interpretação (v.g., João Medina, Salazar e os fascistas, p. 199, nota 19), entretanto já reparados (por António José de Brito, por exemplo). A obra situa-se numa linha de evolução natural do pensamento de Rolão Preto, dando embora ênfase a novos ângulos: (i) quanto a Portugal, são os tópicos da dor e da inquietação, da capacidade de amar e de sofrer, bem como da já referida revolução interna (no homem e no meio social), deixando expressamente para segundo plano o problema da ocupação do poder e da estrutura política (cap. II); (ii) quanto aos efeitos da Guerra, o primeiro e principal tópico é o da transformação das consciências, pela mais clara perceção das realidades inimigas da justiça, da solidariedade e do desenvolvimento espiritual e material do homem, apelando aí ao conceito de "realismo integral" e deixando a pergunta: «quem é que já rectificou?» (cap. IV); o segundo é o do ressurgimento do homem, ele que «parecia destronado em benefício da máquina, do grupo, da massa, da nação», «ei-lo que aparece como único vencedor!» (cap. V); (iii) já as lições da Guerra podem talvez resumir-se desta forma: o homem «compreendeu também como haverá de ser fiel a certas regras de um conceito justo de hierarquia de valores: grandeza moral, espiritualidade e renúncia. E, finalmente, como será vã toda a justiça que não assente no respeito da Pessoa Humana» (cap. VI).

No mesmo ano de 1942 é publicado o folheto «Em Frente! - Discurso pronunciado pelo Dr. Rolão Preto no banquete dos intelectuais nacionalistas». Trata-se de um grito aos seus velhos companheiros, pela tomada de consciência no interior de cada um, pela liberdade, pela claridade, pela vida, contra a ladainha do marasmo e contra a atitude de uma «Nação cansada de tanto olhar para trás»: pela revolta dos escravos modernos, somos a Revolução, «primeiro dentro do nosso ser»! «Queremos viver!»

Finalmente, a encerrar esta década de transição, é publicado em 1945 o livro mais difícil de todos, «A Traição Burguesa». Para o autor, trata-se de uma obra de Filosofia da História, que tem por objeto as várias feições da Traição Burguesa, fixando os seus pontos de referência essenciais, os seus vícios e virtudes; trata-se ainda de um livro ditado pelos imperativos da acção, visando um mal: «o mal burguês, que tudo tem corrompido» (cfr. Introdução). Pode, de facto, tratar-se de um exercício retrospetivo desse tipo, onde o autor talvez tenha ensaiado alcançar um plano como o de Proudhon - exercício declaradamente difícil, mais ainda naquele momento histórico e subjetivo. A descrição da traição burguesa no caminho da história, por exemplo (cap. I), apesar de alguns momentos de bela intuição (como a respeito do confronto entre a Grécia e Roma, da referência à burguesia sã na Idade Média ou do rápido triunfo, logo em 1793, da burguesia feroz na Revolução Francesa), não deixa de acusar superficialidade e ausência de método, como, para não ir mais além, na referência a Epicuro (um autor que já Goethe dizia ser sistematicamente mal lido). Mais interessantes se afiguram os três capítulos seguintes, dedicados às "linhas de força nacionais". Começando pelo ruralismo, o mesmo reside no facto de os portugueses terem escolhido a terra como aliado e de ter sido realmente a terra a dominar Portugal até à batalha de Alfarrobeira; com  o infante D. Henrique (figura a não merecer simpatia), começa no entanto o domínio de Lisboa e a aventura mercantilista, o que levou a um desvio total da Nação e à inevitável decadência (num claro paralelo com o percurso da Roma imperial); D. João II ainda teve intuição ruralista, «mas já era demasiado tarde» (cap. II). Uma segunda linha de força nacional é a da aventura, que brilhou na alta febre lusitana no Oriente, nos heróis da rotunda, na gente nova de Sidónio, no "pobre esquife" de Gago Coutinho, nos do 28 de Maio (cap. III). Outra linha ainda é a do espírito: povo avesso ao fanatismo, a sua personalidade característica «depressa deixou de ser europeia para se tornar totalmente universal»; o povo português vive entre o sofrimento de séculos e o otimismo generoso; tem os pés bem firmes na terra - por isso não há grandes místicos portugueses e «Kant não podia ser português»; porém, a transformação mercantil levou não só à perdição, mas também à ostentação, à ganância, à "traição do ouro"; mais ainda: «a traição burguesa tornara os portugueses maduros para todos os jugos» e, com D. João III, «entrámos na crise, que ainda dura». A geração de 70 ainda conseguiu medir «a miséria do destino da Nação», mas era preciso coragem revolucionária e eles não podiam demolir. Seja como for, o pensamento português é «claro, livre, humaníssimo!» (cap. IV). Os capítulos seguintes ocupam-se sucessivamente: das alianças da traição burguesa com o nazismo e com o fascismo (cap. V), da traição dos mitos (cap. VI), do retrato da obra da sua geração (cap. VIII), dos caminhos da esperança (cap. IX). Tanto o percurso do fascismo como o de Hitler provam o abandono e a falência da única ideia que os justificava: a obra de justiça social. Em vez disso, em clara aliança com a burguesia, eles destruíram a esquerda social e enveredaram pela guerra e pela aventura imperial; começaram Paladinos, e terminaram na tragédia dos tiranos e no Estado monólogo - «voz de um só». Ainda assim, de uma coisa não podem ser acusados: a de ao seu regime de força terem chamado "ordem cristã", a de à sua tirania terem dado o título de liberdade e a de ao seu desprezo pela pessoa humana terem emprestado aparência democrática. Mas justifica-se a pergunta: «Para a conquista da terra não haverá, com efeito, outra maneira além da violência das armas, ó revolucionários?» Então uma palavra foi dita: deceção (cap. V). No capítulo seguinte, onde se ouvem ecos de António Sardinha, alinham-se os diversos, idênticos e sucessivos mitos, da esquerda e da direita, uma «farândola trágica e grotesca de mistificação». Salvam-se alguns homens: D. Carlos (contra D. Luís - um instrumento da burguesia), os integralistas humanistas (contra os catedráticos que se tornaram totalitários) (cap. VI), enfim, os espíritos livres e rebeldes, que não aceitam lugares e que suportam a «execração da manada» (cap. VII). Quanto à obra da sua geração - uma «geração de loucos» -, é este o quadro: «Do alto da colina da decepção alonga-se e esbate-se até aos horizontes nebulosos da saudade o vasto e desolado panorama de trinta anos, que são a nossa vida de luta e de esforço duro ao serviço do ideal de Justiça. Trinta anos de batalhas perdidas, esperanças que se desfizeram em fumo amargo, ilusões que ao morrer nos deixaram na alma o eco de grandes dores; dúvidas que se tornaram esfinges monstruosas, entusiasmos que se apagaram e caíram em cinzas frias sobre o frio do nosso coração. Até onde os olhos do espírito penetram e alcançam, assim se desenrola, amargo e infinito, o mar gelado, o largo oceano onde se subverteram tantas vidas fortes que amámos ou combatemos e vimos desaparecer com espanto e angústia; o oceano temeroso ao longo do qual sopra a nostalgia do tempo morto, da alegria perdida, da inquietação inútil... Decepção!» «Desolado panorama de ruínas, massacres, desenganos, abandonos, tiranias, vexames e sepulturas. Eis a Europa-madre, abatida, exangue, alucinada; amarga extensão de cidades mortas, sepulcro monstruoso de milhares de inocentes que morderam o pó na mais assombrosa catástrofe da História. Eis a obra da nossa geração, ó democratas, ó nacionalistas, ó comunistas - responsáveis de todos os países, de todas as ideias, de todos os sistemas; condutores da Europa e do mundo e que a Europa e o mundo conduziram à desolação e ao martírio.» E a lição é esta: «as traições contra o Humanismo pagam-se sempre e por bem duro preço» (cap. VIII). Porém, a Guerra não pode ter sido uma lição inútil: o nacionalismo, apesar se ser uma ideia mãe de diferenciações proveitosas, era uma ideia imprudente; por outro lado, razão tinham «aqueles que, como nós, afirmavam entender o sentido do grande clamor do nosso tempo: a conquista integral dos direitos da Pessoa Humana. Direitos políticos, direitos sociais, direitos económicos»; felizes pois dos ingleses, que, além de tudo o mais, estão em vias de juntar à liberdade política «a necessária justiça económica» (cap. IX).

 

b) No ciclo de 1946 a 1972 - Tal como relativamente à acção, também relativamente à produção escrita o novo ciclo é de manifesta contenção, quase "de retiro" do autor. Além disso, os poucos escritos publicados ao longo destes trinta anos apresentam-se muito diversos dos anteriores, tanto na envergadura como na natureza e finalidade: textos de poucas dezenas de páginas, escritos por dever cívico (o primeiro e o terceiro), por dever de testemunho (o segundo) ou por dever pessoal (o último).

Publicado em 1953, «Tudo pelo Homem, Nada contra o Homem» corresponde ao teor de uma palestra proferida aos microfones do Rádio Clube Português. Percorrendo, através dos seus habituais tópicos, os problemas políticos, institucionais e económicos do país, quanto à substância, retomam-se aí por assim dizer as grandes linhas definidas a partir de 1936: a representação na Assembleia Nacional não faz mais do que reforçar os defeitos das instituições anteriores, uma vez que «os deputados dependem dos dirigentes da União Nacional e só deles»; ora, também as instituições têm de ser «a salvaguarda da pessoa»; contra a fiscalidade excessiva e a caridade, reclama Justiça; identifica três principais condições de garantia das liberdades: a fiscalização do poder, o municipalismo e o sindicalismo. E, antes do apelo a Salazar «para que desista» (esse tópico final tinha aí por título Alívio!), lembrou: «De uma coisa se não esqueçam mais os portugueses: só a liberdade é o signo da dignidade do Homem. E o Homem é a maior realidade que interessa salvar e manter. O Homem é o único fim de uma civilização. Grupo, Estado, Nação, são apenas os meios de que se serve o Homem para melhor a si próprio se poder realizar. Foi para isso que o Homem os criou, e não para ser esmagado por eles. Não é, pois, "Tudo pela Nação, nada contra a Nação" a fórmula justa e humana, mas sim: "Tudo pelo Homem, nada contra o Homem", fórmula de justiça e de resgate.»

Dez anos mais tarde, surge «Inquietação», um livro de compilação de artigos publicados (de 1961 em diante) no Jornal do Fundão, antecedidos de um importante «Depoimento». Tal como o livro, o Depoimento é oferecido por "dever de testemunho" aos que meditam sobre o papel das ideias e dos homens, aos que não se acomodam perante o desenrolar do dramático destino do homem. São aí revisitadas as aspirações e a acção dos homens da sua geração, o desfecho das experiências estatistas, a restauração dos direitos do homem, olhando ainda ao contexto português mais próximo e às inquietações da modernidade. No início do século XX, enquanto os adultos travavam a sua última batalha de mitos, nós, escreve o autor, «sentíamos o apelo forte da acção». Sobreveio entretanto a guerra. Tendo assumido com seriedade as responsabilidades dos adultos, aceitaram morrer pelas suas convicções: «ser novo era romper com os tempos, sacudindo os entraves». «E foi assim que feirámos e queimámos os mitos que os nossos Pais tinham adorado. Ai de nós! É que não os queimámos para ficarmos livres de todas as superstições. Queimámo-los para os substituir por outros... Arrebatados pelo anseio de uma acção que comandaria o futuro, condenámos, sem revisão, a lição, no entanto bem fecunda, do passado.» Por seu lado, «a guerra fez triunfar a sua moral estranha: a moral da eficiência, que era também a moral da violência» e foi então que «a mística da Liberdade pôde ser substituída pela mística da Ordem. O leninismo, o fascismo, o nazismo, tinham o seu caminho rasgado». Com efeito, já no final do século XIX tinha sido lançada na batalha essa palavra grave que abrira o caminho ao nacionalismo. Mas, à parte Barrès, que, na linha de Michelet, amava a Pátria como realidade viva e substancial, os principais mestres inspiradores, desde Sorel (socialista) a Maurras (nacionalista-integral), inspiravam-se afinal no estatismo de Hegel e foram eles os responsáveis pelo clima duro e anti-humano que havia de conduzir aos totalitarismos: justificando todas as violências do Estado, admitindo o sacrifício da pessoa à Nação, apontando o poder como o único salvador. As diversas famílias políticas - como os seus camisas azuis - passaram então a envergar camisas de combate, porque o seu propósito comum era o de ocupar o poder pela acção revolucionária e porque esses eram os métodos da guerra, de onde tinham saído. Eram sinceros, mas estavam em erro «na sua ilimitada confiança nos princípios». «Pensavam num Estado sem mácula, num Estado Novo, mas o Estado é sempre dirigido por homens.» Surge então uma segunda guerra, "a grande tragédia do homem": «viram-no vencido, vexado, subindo o seu calvário dos campos de concentração e das câmaras de gás; (...) viram-no despojado de todos os seus direitos tão duramente conquistados através dos tempos, e posto fora de toda a Lei; viram-no tornado simples abstracção ideológica ou simples número das estatísticas nas matemáticas do Poder. Viram, enfim, esse homem "feito à imagem de Deus" demitido de toda a sua grandeza de homem e reduzido à condição de pobre cúmplice de uma arbitrária "razão de Estado".» E foi aí que, a partir das possibilidades de erro, os homens de boa vontade reconheceram a necessidade de fiscalização do poder. Quanto a Portugal, um país que realizou primeiro a Nação do que o Estado e que conheceu desde cedo a tradição da consulta prévia ao povo, é fundamental que o debate se amplie, «que cada um amplie as próprias possibilidades», para que a Pátria seja então «como que uma amizade». Mas uma política de amizade nacional não é uma síntese imposta do exterior, «é convergência nos valores da liberdade». Em particular quanto ao problema da guerra do Ultramar, também aí, «contra o conselho do povo nada é possível»: «em problemas decisivos para os seus destinos, só a Nação é soberana nas suas opções»; «não basta fazer a guerra, o problema tem de ser resolvido de forma mais cabal e mais justa» (em equívoco, também quanto a este ponto, cfr. João Medina, Salazar e os fascistas, p. 201, nota 21). Finalmente, quanto à situação atual do homem, num contexto de aceleração da história e de formidável melhoria de condições, e não obstante a existência de dois tipos de sociedade (a livre e a negadora do valor metafísico do homem), a visão é ainda otimista, mas aberta e inquieta: aberta aos novos prismas que se dão a conhecer na Filosofia e na Arte, onde parece ressurgir o espírito do humanismo; inquieta, ao perguntar se estará a emergir um novo tipo de homem, mas também a assumir a responsabilidade do escritor, que deve «dar um testemunho verdadeiro» e procurar «no drama e na inquietação do quotidiano» o mistério dessa dignidade da pessoa humana, que é irrepresentável.

Em 1971, surge o opúsculo «Carta a um Republicano», suscitado por uma carta recebida de África e pela pergunta que lhe terá sido feita por um republicano sobre o porquê do apelo ao Rei. Começando pela relativização do problema da forma de governo - pois «o que interessa é o campo das possibilidades de cada sistema» -, Rolão Preto começa por uma subtil aproximação entre a I República e o marcelismo: como sempre sustentou, a I República baseara-se no desequilíbrio de uma ditadura de facto do partido dominante, daí o reiterado recurso à metáfora do homem que marcha só com uma perna; ora, Marcello Caetano persistiu no equívoco da negação da necessidade de oposição, continuando uma ditadura de facto, que retirava o seu poder da existência de um partido privilegiado, «um Partido que, além de ser o único consentido, toda a sua existência assenta nas engrenagens do Estado e delas tira toda a sua força política». A verdade é que o país queria uma coisa diferente, uma "coisa nova": «Uma coisa que, no plano da liberdade de pensamento, no da dignidade política dos cidadãos, no da economia liberta de monopólios, no do crédito para além da especulação e da usura, no da assistência, ensino e justiça social - em tudo isto - fosse uma Revolução, uma saída.» Para o escritor, «as circunstâncias presentes tornam mais fácil a saída pela Monarquia. A Monarquia não se reclama da "Esquerda" nem da "Direita", e a sua propaganda, por mais de vanguarda que ela se mostre, jamais pode ser alcunhada de comunista. Isto nos dá uma liberdade de acção iniludível.» Além disso, a monarquia deste tempo «será naturalmente uma Monarquia Social». A saída é pois a da reconciliação da Monarquia liberal e social (como é sabido, a solução veio a ser aplicada ainda nessa década, não em Portugal mas na vizinha Espanha).

No ano seguinte, surge a «Carta Aberta ao Doutor Marcello Caetano». Suscitada pela presença de Marcello Caetano em Castelo Branco, são três os elementos fundamentais deste belo opúsculo de despedida. O primeiro é o de um apelo feito, cara a cara, a um ex-companheiro de há meio século, agora governante do país, para que mudasse, para que encontrasse uma saída, para que aproveitasse a sua grande oportunidade. O segundo é o de executar o remate definitivo da rectificação iniciada quatro décadas antes: foi imprudente «substituir a mística da liberdade pela mística da ordem»; foi funesto negar «o valor do sacrifício de tantas gerações que pela liberdade se bateram»; todos os partidos «têm razão e o direito de existir»; «Toda a Política é permanente debate, incessante revisão pelos caminhos da Vida. Toda a Política é jogo da unidade na diversidade». O terceiro, enfim, aponta às soluções que recomenda a Marcello Caetano, inspiradas ainda «[no nosso belo] sonho da juventude»: tradição e inovação completando-se, «tradição como referência; inovação como ruptura, isto é, Revolução»: «entre a liberdade e a ordem não esquecia o Integralismo a sua maior preocupação: a segurança da Pessoa Humana e a necessidade que se impunha de dar por suprema garantia dos seus direitos o mais alto poder do Estado: o Rei»; o Rei é o «árbitro escolhido pela História»; ora, «é da natureza do Rei ser Rei de todos»; «os partidos políticos são para o Rei a expressão natural de uma competição de valores ideológicos, económicos, sociais, organizados na intenção de interpretar e defender os interesses espirituais e temporais do país»; «[a] presença de um árbitro é absolutamente fundamental para o útil jogo dos Partidos»; não podemos condenar "os ventos genésicos do futuro"; por fim, um apelo, implícito na grave denúncia de há mais de 40 anos o povo português estar a ser sujeito à temerosa garra da censura: «Quanta coisa fundamental se não terá partido nessa sensível, frágil flor que é o Espírito! Quantas gerações foram então sacrificadas às imagens que o Ditador tinha dentro de si e que ele considerava como a única e inalterável verdade a servir pelas intenções!» E talvez resida nesta glosa final a chave para entender o impressionante vaticínio formulado, três anos mais tarde, por Rolão Preto sobre Salazar: «O pior inimigo do futuro português foi aquele homem» (cfr. «Entrevista...», p. 184).

IV - Sentido da obra

Sintetizado e apresentado, nas suas linhas fundamentais, o conteúdo da obra publicada por Rolão Preto, é agora altura de regressar à síntese inicial de Ribeiro de Meneses, para tentar uma resposta às interrogações então enunciadas.

Sobre o sentido da evolução pessoal de Rolão Preto, apenas até 1934 se pode afirmar que a mesma espelha a evolução da extrema-direita em Portugal, conclusão que obtém comprovação em múltiplos outros elementos (desde a aproximação a António Sérgio, à falta de sintonia relativamente aos fenómenos e movimentos que posteriormente se poderiam qualificar desse espetro político). Por conseguinte, a partir daquela data, o mais que se pode afirmar é a presença de um percurso individual muito próprio, percurso seguramente desligado da extrema-direita.

Quanto ao sinal distintivo da preocupação com a necessidade de conquista da classe trabalhadora, comprova-se inteiramente essa constante, não fossem ainda aos 80 anos Marx e Proudhon os seus autores preferidos (cfr. «Entrevista...», p. 187). Numa primeira fase, essa era verdadeiramente a sua marca de água no seio do integralismo lusitano, preservada e acrescentada no breve período nacional-sindicalista [cfr. Cecília Barreira, «Sindicalismo e integralismo: o jornal "A Revolução" (1922-23)», in Análise Social, vol. XVII (67/68), 1981, pp. 837-838; foi também aliás para isso que Rolão Preto alertou José Antonio Primo de Rivera, ao verificar a condescendência do programa da falange com o capitalismo e a necessidade de uma "atitude à esquerda" (cfr. «Entrevista...», p. 171)]. Numa segunda fase, de 1934 em diante, essa marca vai ser mantida, ainda que enquadrada em novas linhas: justiça social, defesa dos direitos económicos e sociais, reclamação das condições de realização da dignidade humana, conciliação do liberalismo com o socialismo.

Mas há outras constantes e linhas de força visíveis na obra do escritor: quanto às grandes preocupações, elas são, além do problema social, a revolução (no final da vida, o seu lema preferido era ainda "Para além da revolução, a revolução!"), os problemas da forma da representação, o problema da terra, as condições da realização dos direitos, a atenção à sensibilidade e aos corações, a necessidade da figura arbitral do Rei; quanto aos grandes males a combater, eles sempre foram: o erro do comunismo, a traição da ganância, o conformismo e a indiferença, o amadorismo das elites, a censura, o carácter fictício das nossas instituições ("desvirtuadas pela aparência"), o sistema de partido único ou de partido dominante (fatal, no caso da I República), enfim, o desprezo pelos mais fracos (relativamente a este derradeiro tópico, no mesmo sentido, como explicação da história de Portugal como um todo, cfr. Douglas Wheeler, in Douglas Wheeler/René Pélissier, História de Angola, Lisboa, 2011, p. 40).

Entre as ruturas no percurso de Rolão Preto, há duas a merecer registo, por respeitarem a um momento de maior aproximação ao fascismo: a primeira diz respeito a uma afirmação feita em 1920 e reiterada em 1922 de descrença na razão, na justiça e no Direito; a segunda - apesar de ser voz corrente nessa altura - respeita a uma desconsideração da política e dos partidos, feita em 1932. Nestes dois pontos essenciais, houve verdadeira rutura. O erro de substância não podia ser aí escondido e, partir de 1936, o mesmo vai ser reiteradamente rectificado e, depois, totalmente corrigido. Em contrapartida, não se pode afirmar que tenha existido rutura relativamente à matriz integralista ou à preferência monárquica. Quanto à primeira, se dúvidas houvesse, bastaria reler os dois opúsculos finais. Na verdade, o magma integralista atravessa toda a obra: na persistente exaltação das grandes virtudes nacionais do amor à terra, do sacrifício e do espírito de aventura, na caracterização do povo português e no tipo de afetividade que dela se desprende, no apego ao municipalismo, na defesa das classes médias. Quanto à segunda, a ideia de "Monarquia Social" está declaradamente presente de 1920 a 1972.

Quanto ao problema mais glosado de todos, o da natureza do nacional-sindicalismo, a resposta oferecida pela obra de Rolão Preto é clara e inteiramente coerente com a tese de António José de Brito, segundo a qual o nacional-sindicalismo não passou de um pseudo-fascismo, que evoluiu para um «cada vez mais patente e declarado antifascismo» (cfr. «Um pseudofascismo...», p. 224). Com efeito, nunca nessa obra Rolão Preto se reconheceu ou assumiu como fascista. Em nenhum texto, salvo por aproximação naqueles dois pontos de rutura, se descobre uma linha de «afinidade ideológica substancial» com o fascismo (ibidem, p. 216) ou com qualquer variante do totalitarismo, seja entendido este a partir do paradigma de Platão ou Augusto Comte, como explicado por Hans Kelsen em 1949 (cfr. «A doutrina do Direito Natural perante o tribunal da ciência», in O que é a Justiça?, trad. de Luís Carlos Borges, 2.ª ed., São Paulo, 1998, pp. 161 ss.), seja a partir do conhecido modelo de Hannah Arendt (para um apontamento, cfr. José Melo Alexandrino, «Reflexões sobre a ideia de democracia totalitária», in Estudos em Memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, vol. I, Coimbra, 2011, pp. 417 ss.) ou segundo os critérios definidos pelo próprio António José de Brito (cfr. «Um pseudofascismo...», pp. 209 ss.). Nada há por conseguinte que o possa aproximar, quanto à influência fascista, de um Carl Schmitt, por exemplo (sobre este, e para um bom contraponto, cfr. Huges Rabault, «Carl Schmitt et l'influence fasciste. Relire la Théorie de la constitution», in Revue Française de Droit Constitutionnel, n.º 88, oct. 2011, pp. 709-732). Pelo contrário, a supremacia do Estado sobre a pessoa, a concentração do poder, a ideia imperial, a guerra, o racismo, antissemitismo, o eugenismo são, como vimos, objeto de declarada recusa em todos e em cada um dos ciclos em que a obra foi escrita. Todavia, não tendo defendido nem apoiado nenhuma tese essencial do fascismo, Rolão Preto sempre reconheceu ter-se interessado pelos métodos do fascismo. Apenas pelos métodos. Quanto à doutrina, muito antes de 1936, já ele se reclamava do "Estado como instrumento" e tinha cunhado uma divisa inteiramente oposta à do fascismo: "Tudo pelo Homem, nada contra o Homem". Por fim, ao contrário do que por vezes se pretextou, não há na obra de Rolão Preto um único elogio a Mussolini ou a Hitler, apesar de ter feito em 1945 uma tentativa de os compreender.

Em matéria de influências, a mais profunda e perene de todas parece ser a de Proudhon (sobre a importância deste filósofo na cultura portuguesa, merece leitura a obra colectiva, organizada por Manuel Gama, Proudhon: no bicentenário do seu nascimento, Braga, 2009). Se a justiça foi o eixo central do filósofo de Besançon (cfr. Édouard Jourdain, Proudhon: un socialisme libertaire, Paris, 2009), o mesmo se poderá dizer de Rolão Preto, não só pela fundamental adesão a esse legado filosófico, mas até pelo facto de ter recuperado justamente o título (Justiça) de uma obra que Proudhon escreveu em 1858. É na herança de Proudhon que se deve por isso contar o apego às ideias de justiça, de revolução, de descentralização, de sindicalismo, de pluralismo social, de anti-estatismo, de anti-imperialismo. Georges Sorel, também ele discípulo de Proudhon e crítico de Marx, teve uma influência relevante e amplamente reconhecida até 1934, o mesmo se podendo dizer de Charles Maurras. Entre os pensadores portugueses, há influências dos vultos da geração de 70 (igualmente leitores de Proudhon, a instâncias de Antero), há um visível impacto espiritual de António Sardinha e, a partir de 1935, não deixa de se fazer sentir a presença de António Sérgio, de quem se tornou amigo.

A respeito ainda de elementos extraídos da obra, importaria igualmente confrontar o autor com algumas figuras significativas. Começando por António Sardinha, apesar daquilo que os une (as origens, a cultura predominantemente francesa, o carácter transformativo e sensitivo, a inquietação, a incoerência, o amor a Portugal, a esperança, a referência a Deus, o desprezo pela centralização do poder, o institucionalismo, etc.), são todavia em maior número os traços distintivos entre as duas personalidades. Na verdade, ao contrário de Sardinha, Rolão Preto não teve mentores portugueses (nem, tão-pouco, sofreu idêntica influência de Taine ou Barrès), não teve nenhum percurso republicano (embora tenha sempre prezado o 5 de Outubro e se tenha tornado amigo dos republicanos), nunca foi tentado pela carreira académica, não era um místico nem um poeta, nunca sofreu de pessimismo antropológico (comuns tanto a Sardinha, como a Salazar e a Caetano), nunca foi um reacionário nem um defensor do racismo, do colonialismo ou do antissemitismo. Já quanto ao confronto com os líderes políticos do seu tempo, relativamente a Afonso Costa, se há aproximações (na vontade de mudança, na forte energia pessoal e na capacidade de liderança e de comunicação), diferenciam-se em quase tudo o resto, a começar pelo grau de sinceridade, pela atenção à história e às realidades nacionais, mas não menos pela consideração concedida ao papel da oposição, à liberdade ou ao funcionamento das instituições. Entre Rolão Preto e Salazar, o contraste não podia ser mais claro: ao contrário do segundo, Rolão Preto sempre foi um revolucionário (como confessou em 1975, acolheu o 25 de Abril «como um revolucionário que está à espera da Revolução há quarenta e cinco anos!»), um rebelde, um inconformista; espírito inquieto e desprendido (nenhum lugar ou cargo o fascinou), Rolão Preto era também pela vida, pelo homem, pelo povo, ao passo que Salazar, na sua perspetiva, além de frio e reacionário, «era mau», não era humano (cfr. «Entrevista...», pp. 184, 186). Por fim, entre Rolão Preto e Marcello Caetano há aproximações relevantes, designadamente na genuína preocupação com os humildes, na dupla influência de António Sardinha e de António Sérgio (cfr. Vasco Pulido Valente, Marcello Caetano - As desventuras da razão, Lisboa, 2002, p. 19), mas não menos no facto de terem sido ambos afastados, ainda que de formas diferentes, por Salazar (ibidem, pp. 28, 29 ss.). O que os distingue profundamente é, mais uma vez, a capacidade de mudança: ao passo que Rolão Preto (tal como sucedeu com António Sardinha, mas também com Alberto de Monsaraz ou António Pedro) foi alguém que experimentou a contradição, aceitou a mudança e passou pelas correspondentes transformações, Marcello Caetano (neste caso, tal como Salazar) continuará o mesmo até ao fim (cfr. Vasco Pulido Valente, Marcello Caetano..., pp. 8, 19 ss.; Luís Reis Torgal, «Marcello Caetano antes do marcelismo», in Espacio, Tiempo y Forma, V, Historia Contemporánea, t. 19, 2007, pp. 49 ss.).

Em síntese, além da experiência histórica efetiva de que foi ator e testemunha, pelo cunho peculiar da análise e pela abrangência da visão (a que não faltou dimensão prospetiva), Rolão Preto foi também um relevante intérprete do século XX, português e europeu.

 

 

Lisboa,Julho de 2012

 

José Melo Alexandrino

Professor da Faculdade de Direito de Lisboa

 

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