Estive recentemente em uma conhecida universidade carioca, integrando uma mesa de discussão sobre o Brasil e a nossa reconhecida desigualdade. Essa é na verdade apenas uma parte da realidade...
O tema está na ordem do dia. A partir dos dados divulgados anualmente pelo IBGE, de acordo com a PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, já há alguns anos ganham intenso destaque as informações que atestam que estamos em um acelerado processo de desconcentração de renda.
De fato, e de acordo com as informações captadas nessa pesquisa do IBGE - que sabidamente não incorpora a participação dos ganhos típicos do mundo do capital (juros, lucros e aluguéis) - desde os anos 1990 é identificado um processo lento, mas contínuo, de melhor distribuição dos rendimentos entre os que vivem do trabalho assalariado, autônomo ou informal.
Essa é na verdade apenas uma parte da realidade, conforme já lembrado em artigo anterior aqui publicado, no ano passado, por ocasião da divulgação dos resultados da PNAD/2007. Essa é uma questão importante de ser lembrada, pois a maior parte da renda nacional não fica com os trabalhadores. Os ganhos dos capitalistas têm uma participação maior no conjunto da renda, e é uma realidade que não deveria ser abstraída pelos analistas.
Contudo, a maior parte dos comentaristas parece esquecer desse fato - particularmente os jornalistas econômicos com notórias relações com o sistema financeiro. Os motivos são óbvios: no país dos juros altos, e onde o Estado vem transferindo anualmente cerca de R$ 150 bilhões aos credores da dívida pública, e onde sabidamente a estrutura tributária é regressiva, somente se considerarmos uma parte (os ganhos minoritários do mundo do trabalho) como se fosse o todo é que poderíamos chegar à conclusão de que haja, em curso, uma melhor distribuição da renda nacional.
Entre aqueles que vivem dos rendimentos do trabalho próprio ou assalariado, a redução dos índices de inflação, os programas de transferência de renda, e os reajustes reais do salário mínimo, com forte impacto também no piso dos benefícios pagos pela previdência pública, além da geração de empregos dos últimos anos - predominantemente até a faixa de três salários mínimos - têm produzido um efeito positivo, na base da pirâmide social. Mesmo assim, e depois de cinco anos de crescimento econômico superior à taxa de crescimento populacional (entre 2004 e 2008), o rendimento médio mensal de trabalho do brasileiro em 2008 (R$ 1.036,00) ainda se encontra um pouco abaixo do que foi registrado em 1998. Estamos, assim, apenas ainda recuperando aquilo que foi perdido, em termos de renda do trabalhador, entre os anos de 1999 e 2003.
Os resultados dessa PNAD de 2008 mostram também que o ritmo dessa recuperação da renda média do trabalhador vem desacelerando. De 2005 para 2006 houve uma elevação de 7,2%; de 2006 para 2007, o acréscimo foi de 3,1%; e agora, de 2007 para 2008, o aumento foi de apenas 1,7%, para uma elevação do PIB, no ano passado, de 5,1%. Essa diferença - entre a elevação do PIB em 2008 e o ganho observado na renda média dos que vivem do trabalho - mostra que foram os ganhos, principalmente, com lucros e juros que melhor se apropriaram da renda total gerada no país, no último ano.
Apesar desses detalhes, há um esforço imenso de se transmitir à opinião pública um quadro que procura ressaltar a "magnífica desconcentração de renda" que estaria ocorrendo no país.
No debate a que me referi no início desse artigo, lembrei da oportunidade do tema - até para o esclarecimento de pontos que acabam ficando obscurecidos ou deformados - e, particularmente, destaquei que não nos caracterizamos apenas por ser um país dos mais desiguais do mundo. O que mais deve nos chamar atenção é que essa realidade se dá em um dos países mais ricos do mundo, e com imensos fatores favoráveis ao crescimento econômico.
O que, portanto, nos falta?
Defendi que o que nos falta é a força e a vontade política para uma ruptura mais que necessária com o atual modelo econômico. Desde o início dos anos 1990, estamos (des)construindo o país com base na ampliação da abertura produtiva, financeira, comercial e tecnológica - na ilusão do capital estrangeiro como vetor fundamental para o desenvolvimento interno do país - e com políticas sociais que se focalizam nos setores pobres e miseráveis.
Abandonamos a idéia de um projeto próprio de desenvolvimento - baseado nas nossas próprias necessidades, carências e potencialidades - e abrimos mão do objetivo de universalizar serviços públicos de alta qualidade para todo o nosso povo.
Cada vez mais, temos um parque produtivo desnacionalizado, transnacionalizado, onde as decisões de investimento sobre o quê, quanto e como investir pertencem a corporações inteiramente desvinculadas do interesse das maiorias. E onde o Estado se encontra amarrado à armadilha da abertura financeira e ao endividamento que garante lucros astronômicos, através do pagamento de juros, a essas mesmas corporações.
Enquanto isso, a população carece de escolas de qualidade, atendimento médico digno, transportes públicos eficientes, formação cultural emancipatória, segurança social mínima e dignidade, em meio a uma violência que faz com que nosso povo vá se brutalizando no seu dia-a-dia.
"Somos o país da delicadeza perdida", conforme as palavras de Chico Buarque, mas somos também um país que perde a sua dimensão histórica e as oportunidades que poderiam estar em construção.
Acima de tudo, perdemos a capacidade de nos indignar e pensar com ousadia.
A generalização - através de um custo financeiro altíssimo - de mecanismos de crédito que possibilitam o acesso de amplas camadas da nossa carente população a bens de consumo, parece ser o ponto mais avançado de uma pobre e medíocre percepção do que é de fato necessário para a melhoria das condições de vida da população.
A ruptura com esse modelo econômico, e com os esquemas de pensamento que amesquinham as nossas perspectivas históricas, é mais do que urgente.
O acomodamento intelectual, o adesismo oportunista ou cômodo ao status quo, e o conservadorismo político são os principais obstáculos para a mudança nas condições de luta política que se fazem necessárias, para que venhamos a recuperar a capacidade de pensar com ousadia, e de acordo com gravidade que a crise brasileira exige.
01/10/2009
Paulo Passarinho é economista e presidente do CORECON-RJ
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