Marcílio Marques Moreira
O tsunami financeiro em curso engendrou a mais séria recessão global desde a 2ª Guerra Mundial. Ela chegou ao Brasil em outubro de 2008 e, além de sua gravidade, apresenta três características - alta complexidade, ampla incerteza e forte volatilidade - que dificultam o esforço de interpretá-la e, ainda mais, o de prever sua trajetória futura.
Na elaboração de estratégia para superar a crise e preparar nossa economia para o mundo repaginado que lhe sucederá, é essencial, portanto, avaliar corretamente os fatores que convergiram para gerá-la. São inúteis explicações simplistas e conclusões precipitadas. Elas mais atrapalham do que ajudam a apreciação equilibrada dos elementos em jogo.
Tanto Estado quanto mercado haviam contribuído para propiciar o quinquênio inédito de prosperidade global, de 2003 a 2007, e foram incapazes de perceber e coibir a tempo a série de abusos e iniciativas de alto risco que, surgidas em momento de euforia, acabaram precipitando a crise. Esta emitiu o primeiro alerta em agosto de 2007 e chegou a um quase desmanche sistêmico em setembro de 2008. Tanto a retórica da salvação pelo Estado onipotente quanto pelo mercado autocorretor não resistem a uma análise mais consistente, que leve em conta os pressupostos teóricos e a experiência prática da longa história de crises financeiras.
Não se pode esquecer que foram iniciativas legislativas, ordenando que o financiamento de habitações aos grupos de baixa renda fosse privilegiado, minimizando até a sua capacidade de pagamento, combinadas com legislação que permite o abatimento tributário dos juros de quaisquer financiamentos imobiliários, que contribuíram para inflar a bolha imobiliária norte-americana. Nem, tampouco, que foram decisões de política macroeconômica, empurrando os juros básicos nos Estados Unidos para 1%, aliadas às da China, manipulando para baixo sua taxa de câmbio, que levaram à simbiose espúria pela qual a China passou a exportar produtos a custo cadente para o desregrado consumo norte-americano, ao mesmo tempo que o financiava pela compra maciça de títulos de dívida.
Estava criada a poderosa máquina de transformar em liquidez internacional os enormes déficits americanos em conta corrente, que beiraram US$ 1 trilhão por ano. O fenômeno se repetiu em outros países emergentes cujas exportações permitiram o acúmulo de superávits, que passaram a financiar o consumo dos países centrais, inundando o mundo com crédito barato e abundante. Poupança excessiva na periferia, consumo desmedido no centro e sistema financeiro intermediário eficaz, embora imprudente, geraram desequilíbrio mundial insustentável, terreno fértil para que a desmedida, a ganância e a fraude, sem regulação e fiscalização do Estado, criassem riscos exorbitantes, que, ao estourar, corroeram a confiança, pedra angular do sistema econômico.
No Brasil, o governo tem procurado mitigar o quadro que se revelou de maneira mais drástica na queda do PIB do último trimestre de 2008. Infelizmente, o alto nível de compromissos fiscais que assumira em gastos recorrentes de pessoal e custeio, aliado à queda na arrecadação inerente à desaceleração, vieram a restringir o escopo da sua ação fiscal. Em contraste com a maioria de nossos pares, caberá, portanto, à política monetária a principal responsabilidade de conduzir o esforço anticíclico, utilizando a margem de manobra que soube preservar. Redução de juros, liberação de compulsórios e administração de níveis de liquidez, em reais e em divisas, ser-lhe-ão armas preciosas.
À política fiscal caberá manter o apoio à rede de proteção social, em especial ao Bolsa-Família, e realizar impostergáveis investimentos públicos, sobretudo em infraestrutura. O governo terá, também, de melhorar o ambiente de negócios, temperando sua voracidade fiscal e assegurando maior segurança jurídica à atividade econômica, reforçando o marco regulatório e prestigiando a atuação independente e confiável das agências reguladoras. Só assim seremos capazes de atrair capital privado, nacional e externo, para investimentos prioritários. É tarefa indispensável, haja vista o baixo nível de nossa poupança, apenas 16,9% do PIB no quarto trimestre de 2008.
A maneira pontual que até agora tem presidido a destinação dos recursos públicos anticíclicos, atendendo, é verdade, a situações emergenciais de setores mais dependentes do crédito ou da exportação, tem de ser revista, para inseri-la em estratégia visando a preparar o País para o mundo de amanhã, em que predominarão novos paradigmas de produtividade, eficiência e eco-compatibilidade.
A política anticrise há, portanto, que ser vertebrada em torno de um fio condutor e inspirar-se em clara visão do futuro. Subsidiar empresas ou financiá-las a juros diferenciados, sem contrapartidas qualitativas e compromissos de modernizar a gestão, distorce a concorrência entre elas e subverte a equanimidade e a eficiência que devem inspirar o mercado dinâmico e sadio exigido pelo ambiente mais competitivo que passará a prevalecer amanhã.
Urge, pois, recolocar a operação do mercado nos trilhos, regulando-o sem sufocar seu dinamismo e sua criatividade, virtudes próprias da liberdade de empreender. Por sua vez o Estado tem de ser repensado e seus gastos, redefinidos, a fim de que passe a priorizar a educação, o conhecimento técnico-científico e a infraestrutura física e humana, valores pouco prezados entre nós, mas indispensáveis à mobilização do enorme potencial desperdiçado de desenvolvimento integral do País. É exigência impostergável no mundo pós-crise, que se anuncia menos exuberante, mas ainda assim repleto de promissoras oportunidades que não temos mais o direito de ignorar.
Marcílio Marques Moreira é presidente do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial. Site: www.etco.org.br
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