Já vivi similar "revolução" na Tailândia
1. Maduro é um monumento à incompetência e à inabilidade. Sem o carisma e a generosidade de Chávez, tem sido, desde a sua investidura, um problema acrescido às já muito graves dificuldades económicas com que se debate a Venezuela em consequência da súbita privação de ¾ das receitas outrora angariadas pela exportação de ramas petrolíferas, crise agravada por cinco anos de terrível seca de que não há memória e que provocou a ruptura da produção de bens alimentares, mas também por um modelo distributivo que não soube diversificar a estrutura económica do país. A governação bolivariana - que não é uma ditadura, muito menos um regime "comunista" - falhou ao não saber articular programas de justiça social e igualdade de cidadania com planos de fomento que equilibrassem uma economia inteiramente assente no ouro negro. É elemento de toda a evidência que Maduro falhou e que a Venezuela não pode continuar por muito mais tempo exposta a uma situação de paralisação e desnorte.
2. Contudo, compreendendo a natural agitação social resultante do colapso económico num país que já conheceu igual [ou pior] há cerca de duas décadas - Chávez chegou ao poder após o completo fracasso de Carlos Andrés Pérez - parece-nos que a agitação em curso se assemelha, não a mais uma revolução colorida, mas a um verdadeiro golpe de Estado. Na internacionalização da crise venezuelana e indiscutível intervenção externa nos assuntos daquele país, a imprensa internacional tem demonstrado não mais querer que constituir-se em agente, e não em observadora. Não deixa de ser sintomático o facto de, entre as centenas de enviados pela imprensa ocidental, 80% dos profissionais ali acreditados não serem jornalistas, mas fotógrafos, ou seja, coleccionadores de imagens fortes angariadoras de comoções.
3. Em 2009 e 2010, assisti a algo de muito parecido na Tailândia, onde residi durante quase quatro anos. Ali, estava em curso um levantamento dos seguidores do antigo primeiro-ministro Thaksin Shinawatra - os chamados Vermelhos, aliança espúria de plutocratas e do clandestino PC da Tailândia.
4. O modus operandi de quantos estavam apostados em derrubar pela violência a monarquia constitucional em nada divergia daquilo que está em curso na Venezuela: manifestações que terminavam em vandalização de edifícios, ocupação de avenidas e levantamento de barricadas, apedrejamento das forças da ordem obrigando a repressão para, depois, com centos de fotógrafos estrangeiros estrategicamente postados, dar ao mundo os argumentos de condenação de um governo que cumpria uma das atribuições de qualquer poder constituído, ou seja, a manutenção da ordem nas ruas.
5. Lembro-me bem das inflamadas parangonas do The Wall Street Journal, do New York Times, do Le Monde, do Corriere della Sera e do Süddeutsche Zeitung, das sensacionais acusações que produziam contra a monarquia - "feudalismo", "clique aristocrática", "regime opressor", "palácio rapinador" - com o propósito de gerar na opinião pública ocidental o estado de espírito necessário a desculpar quaisquer violências cometidas pelos Vermelhos. Tal como acontecera no Nepal para o derrube da monarquia, as embaixadas ocidentais em Bangkok passaram a funcionar como centros de apoio aos revoltosos, facultando-lhes acesso às cadeias de televisão, produzindo sucessivas condenações à actuação das forças da ordem, espalhando boatos e até enviando funcionários seus às manifestações vermelhas. Aliás, nada que não tenhamos já visto na Ucrânia, na Hungria, no Egipto, na Síria e até em Moscovo.
6. Estas "revoluções" - amiúde numericamente muito pouco expressivas - requerem imagens fortes, ou seja, violência. Os ocidentais têm por hábito dar sempre razão a quem ataca a polícia, pelo que basta uma carga policial para se produzir o efeito psicológico pretendido. Como se em Paris, em Frankfurt ou Washington uma carga policial não visasse o mesmo efeito de reposição da ordem de uma carga policial em Caracas, em Moscovo ou em Kiev!
7. O que me espantou na crise dos Vermelhos em Bangkok foi a disparidade de meios entre manifestantes e forças da polícia. A polícia investia com bastões, escudos, canhões de água e gás lacrimogénio, mas o vermelhos respondiam a tiro, usavam lança-granadas e bombas artesanais. Espantou-me também - fui convidado pelo MNE tailandês para prestar colaboração na produção de textos que serenassem as excitações nas chancelarias ocidentais, pelo que tinha acesso diário às listas de mortos e feridos entrados nos hospitais - que a comunicação social ocidental fizesse amálgama e interpretasse os dados de forma manifestamente desonesta.
8. Ora, neste ciclo de violência em que mergulhou a Venezuela desde Abril, na imprensa internacional alude-se sistematicamente às "130 vítimas da repressão"(1). Sem discriminação de dados, estas 130 mortes são contabilizadas como consequência de investidas das forças da ordem. Omitem os propaladores que, destas 130 vítimas mortais, 16 perderam a vida em assaltos e saque de superfícies comerciais (doze assaltantes e quatro proprietários); 14 morreram em barricadas (dez falecidos em consequência de disparos desferidos por revoltosos, sendo que os restantes quatro eram manifestantes); 11 manifestantes mortos no decurso de marchas; 4 assassinatos em ajustes de contas entre grupos da oposição; 5 vítimas linchadas ou queimadas vivas por grupos da oposição ao governo; 1 por crise cardíaca e que não foi assistida por a ambulância que a transportava ao hospital não ter podido transpor uma barricada; 4 por manipulação inábil de explosivos; 24 peões apanhados no fogo cruzado entre a polícia e os manifestantes, mas que não estavam envolvidas em quaisquer protestos; 7 polícias mortos; 30 sem relação directa com os protestos, mas possivelmente crimes de sangue; 4 por causas desconhecidas; 10 militantes ou dirigentes do partido do governo. Em resultado de uso excessivo de violência, o governo instaurou processos de investigação, processando, julgando e condenando a penas de prisão 39 agentes policiais.
9. Por último, não poderia deixar de convidar os ainda indecisos a analisarem as fotos dos tipos humanos predominantes nas manifestações. Há ali gente carecida, esfarrapada, com sinais de fome e penúria extrema? Onde está, pois, o povo pequeno? Por mais que procure, só vejo burguesia e aqueles que menos expostos estão à desastrosa situação por que passa o país. Seria como se a Quinta da Marinha saísse à rua para protestar contra a crise económica.
A análise serena, distanciada e fria é sempre a melhor conselheira. Compreendemos, assim, a louvável prudência do nosso MNE na análise da situação venezuelana pois, sei-o de fonte fidedigna, a nossa diplomacia tem trabalhado com base na verdade, e não com ebulições ideológicas. Para quem quer deixar os 15 anos mentais para quem os tem, a racionalidade obtém-se pela análise serena. Que pena, sou uma cabeça muito pouco ideológica.
Miguel Castelo Branco
(1) Dados coligidos a partir dos relatórios hospitalares, ONG's, comunicação social e entidades governamentais.
Fonte: tiremasmaosdavenezuela.com
Subscrever Pravda Telegram channel, Facebook, Twitter