As descobertas da nossa juventude
Eu descobri aos poucos que o mundo não se dividia em bons e maus e que Deus costumava recompensar os bons e castigar aos maus, num longo processo de sofrimento e dor.
Não é simples abandonar as certezas que nos ensinaram em casa, na escola e na igreja e vagar pelas incertezas de um mundo sem Deus, e onde ser bom ou mau é apenas uma questão pessoal e não nos dá direito a reivindicar prêmios ou castigos numa hipotética e segunda vida.
Mas se houve um momento em que esta ruptura com o passado ficou clara, foi numa noite no velho Teatro São Pedro, no distante ano de 1957.
Era uma noite fria de inverno gaúcho, e eu, nos meus gloriosos 18 anos, num silêncio quase religioso, junto com mais uma centena de pessoas, assistíamos, a estréia em Porto Alegre da peça de Jean Paul Sartre, Entre quatro paredes (Huis Clos), com Tônia Carrero, Paulo Autran e Margarida Rey, com direção de Adolfo Celli, quando faríamos uma descoberta que iria nos acompanhar pela vida inteira, que "o inferno são os outros".
Sartre era um dos papas do existencialismo e dizia que estamos condenados à liberdade e sua peça nos mostrava como essa liberdade nos custava caro.
Numa sala fechada, sem espelhos, três personagens são obrigados a se verem através dos olhos dos outros dois e discutir tudo que não foram em suas vidas.
Garcin, o escritor, se pretendia um herói, mas não passa de um covarde; Estelle é uma pequena burguesa fútil que foge da sua culpa por ter matado o bebê que teve com um amante e Inês é a lésbica, que se dedicou em vida a atormentar os outros.
Estelle tenta seduzir Garcin, que tem medo que ela descubra sua covardia, enquanto Inês procura jogar um contra o outro.
A conclusão de Sartre, que Garcin verbaliza e que todos nós saímos do teatro, naquele distante ano de 1957 concordando, é que realmente o inferno são os outros
Essa é a liberdade da qual não podemos fugir: o de fazer o papel que nos foi destinado nesse jogo.
É interessante como as pessoas da minha geração aprenderam valores que iriam levar pela vida inteira através da ficção, do teatro, dos livros, do cinema.
O humanismo socialista, antes de Marx, Lenin eTrotsky, nós o conhecemos nas páginas de Les Thibault, acompanhando a vida de Jacques Thibault.
Beethoven, Mozart e Bach, nos foram apresentados por Romain Rolland em Jean Christophe.
O ateísmo, que substituiu aquela incômoda religiosidade herdada da infância em colégios de padres, começou a ser construído com a leitura do drama de Jean Barois, muito antes de Richard Dawkins nos provar que Deus é um delírio
Foi lendo os poemas de A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, que descobrimos que a poesia podia ser revolucionária.
Foi nas salas escuras dos cinemas Ópera, Continente e no pequeno Palermo da Rua 7 de Setembro, que aprendemos com Jules Dassin (Aquele que deve morrer), com Alain Resnais (Hiroshima meu amor) e com Stanley Kubrick (Glória feita de sangue), que o cinema, mais do que uma indústria do passatempo, poderia ser um instrumento poderoso para transformar o mundo.
Não era uma época de certezas, mas de grandes dúvidas. Um dia, éramos comunistas estalinistas, no outro, trotskistas convictos, mais adiante pensávamos que a única resposta estava no anarquismo.
Todas essas certezas pareceram desaparecer quando lemos, com alguns anos de atraso, a trilogia de Sartre, Os Caminhos da Liberdade (Les Chemins de la Liberté) - A Idade da Razão (L´Age de Raison), Sursis (Le Sursis) e Com a Morte na Alma (La Mort dns l´ Âme). Nosso herói, por algum tempo, passou a ser o cínico e incrédulo Mathieu.
Naquele Brasil ensolarado do final dos anos de JK, cheio de energia e vigor, queríamos ser soturnos, como o professor de filosofia criado por Sartre e que segundo todos diziam, reproduzia a sua vida numa França assustada com a guerra fria e o medo da destruição atômica
Mas logo a vida nos chamaria para novas revelações. Os gloriosos anos da primeira década de 60, quando tudo parecia ser possível num Brasil que achávamos às portas da revolução, terminariam em breve no drama do golpe militar de 1964.
Mas, então, o que era apenas ficção, virou realidade.
Tantos anos depois daquela noite de descobertas no Teatro São Pedro, nos perguntamos, quantas coisas ainda existem para serem descobertas nos livros, no cinema, no teatro?
Marino Boeira é jornalista, formado em História pela UFRGS
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