Não é partida de xadrez entre iguais - um joga xadrez; o outro, Monopoly. É como se o ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergei Lavrov esteja adiando o xeque mate, enquanto o secretário de Estado John Kerry dos EUA vai percebendo que tem pela frente o inevitável.
Como Lavrov já explicou repetidas vezes, a única solução possível para a Ucrânia é criar-se uma federação fluida,[1] como parte de uma "profunda reforma constitucional". Implica que o leste e sul da Ucrânia - os russos étnicos e também os sentimentalmente russos - devem ser amplamente autônomos. Há cerca de duas semanas, Kerry deu sinais de concordar que essas regiões ucranianas precisam ter mais poder para decidir. Mas então a Casa Branca recomeçou com sua blitzkrieg moralista - que coincidiu com a viagem do presidente Barack Obama a Haia e Bruxelas. Mesmo assim, depois de jogo inconclusivo de quatro horas entre Kerry-Lavrov em Paris, o xeque mate está a caminho.
A solução russa é o mesmo plano que M oscou já propôs há poucas semanas, e foi outra vez discutido por telefone por Obama e o presidente Vladimir Putin na 6ª-feira - telefonema que fez Kerry redirecionar seu avião para Paris. Cada região da Ucrânia, segundo Lavrov, poderá controlar a própria economia, impostos, cultura, idioma, educação e "conexões econômicas e culturais externas com países e regiões vizinhas". É plano tão bom, que é aceito até por ex-guerreiros da Guerra Fria (ou guerreiros eternos da Guerra Fria, dependendo do 'especialista' consultado) - como Henry Kissinger e Zbig Brzezinski.
O problema chave é que Washington se meteu empedernidamente na cabeça que o atual arranjo vigente em Kiev - também conhecido como o "Khaganato dos Nulands", criado pela secretária-assistente do Departamento de Estado Victoria Nulands - seria legítimo. Moscou vê ali um bando de putschistas e fascistas. E Washington ainda se recusa a pressionar para que Kiev aceite um sistema federal - único modo de permitir, dentre outras coisas, que o russo seja aceito como segunda língua oficial.
A última dos norte-americanos é uma campanha massiva de propaganda, do gênero "Os Vermelhos estão chegando", com imagens e 'informações' sobre concentração massiva de soldados russos[2] na fronteira (a imprensa-empresa servil está falando de mais de 100 mil).
Kerry, por hora, está conseguindo, pelo menos, disfarçar os sintomas de histeria; já admitiu que Washington e Moscou concordam que é indispensável chegar a uma solução diplomática, nem que seja só para poder retornar ao mais novo meme posto em circulação, perfeitamente artificial, o tal "prelúdio de uma invasão", inventado pelo Pentágono/OTAN.
A posição oficial de Washington continua a ser que Moscou 'tem de' desarmar suas forças na Crimeia (não acontecerá); admitir observadores internacionais (Moscou talvez decida admitir); e recuar seus soldados para dentro da fronteira leste (Moscou diz que as tropas estão em manobras, e que ali não há um soldado extra, só os de sempre: menos de 20 mil). Lavrov, obrigado a repetir e repetir e repetir que não há qualquer plano russo para invadir a Ucrânia, já começa a expor Kerry ao mais perfeito ridículo.
Cuidado! Vem aí o Império do Caos
E há as próximas eleições presidenciais. Podem-se apostar rios de vodka: vai ser operação imundíssima. Os sabujos do partido Svoboda e do Setor Direita que estão hoje em posição de poder farão de tudo para falsificar resultados (porque sabem que não são o que se entende normalmente por "governo bem quisto pelos eleitores"). Depois que o cavalo da chanceler alemã Angela Merkel - o ex-boxeador "Klitsch" - abandonou o páreo, o líder é - e como poderia não ser?! - um oligarca: o bilionário, rei do chocolate, Petro Poroshenko. Já anunciou que não quer saber da solução de federalizar a Ucrânia; para ele, seria "plano de alguém por lá, no governo russo, que quer nos ensinar o tipo de sistema de governo que devemos ter".
Mas, para começar, não se trata absolutamente de "democracia". Os mudadores-de-regimes, como Kommersant noticiou, trabalham a pleno vapor para reescrever a Constituição ucraniana, com o primeiro-ministro Arseniy "Yats" Yatseniuk exigindo que entreguem a redação final em, no máximo, duas semanas.
O tigre siberiano que está na sala e do qual não se fala é um detalhe, inegociável para os russos: Kiev tem de prometer oficialmente que a Ucrânia não se unirá à Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN. E todos nós sabemos, desde que foi instalado o Khaganato dos Nulands, que, aí, só se trata, mesmo, da expansão da OTAN comandada pelo Pentágono.
A "cenoura" que Putin exibe para Obama é algo que Putin também lhe disse ao telefone: o futuro da Transdnistria na Moldávia, na fronteira sudoeste da Ucrânia, tem de ser decidido por conversações em formato de 5+2: Moldávia, Transdnistria, a Organização para Segurança e Cooperação na Europa, Rússia e Ucrânia, mais a União Europeia e observadores norte-americanos. Mais uma vez, não se cogita de qualquer "invasão".
Acima de tudo isso paira, sim, um fato já consumado e inafastável: a reincorporação da Criméia na Federação Russa. E não há volta possível - e EUA, EU e Kiev que espalhem quanta propaganda queiram espalhar.
Tudo isso, contudo, introduz mais um problema. O raciocínio de Putin para agir na Crimeia - depois que a inteligência russa descobriu um complô para reproduzir em Simferopol o golpe em Kiev - assumia, como pressuposto necessário, que só a autonomia da Crimeia não bastaria para proteger a região contra a ação dos mudadores de regime. O mesmo valeria logo depois no caso dos russos étnicos e falantes de russo no leste e no sul da Ucrânia. Implica dizer que as condições da autonomia - e a reforma da Constituição - terão de ser muito, muito firmes e sólidas e garantidas. E muito provavelmente não serão.
Seja como for, também é fato inamovível que nem EUA, nem União Europeia nem o Fundo Monetário Internacional (FMI) dão qualquer bola ao "povo ucraniano" (a Rússia, pelo menos, interessa-se pelo destino dos russos na Ucrânia). Outro problema posterior ainda mais sensível, assumindo-se que Washington e Moscou cheguem a algum acordo, é até que ponto alguém pode(ria) confiar na "palavra" do governo dos EUA. A Rússia tem experiência direta nesse assunto (Bush Pai prometeu a Mikhail Gorbachev que a OTAN não avançaria na direção do leste da Europa. E, sim, a OTAN avançou exatamente naquela direção - como geleca assassina, de filme B de terror).
Não se pode jamais perder de vista o Grande Quadro: como no caso do complexo Panopticon-orwelliano da Agência de Segurança Nacional, trata-se sempre, sobretudo, da aplicação da doutrina de Dominação de Pleno Espectro do Pentágono, que implica cercar a Rússia (via OTAN), movimento que se articula a outro cerco (esse, de estilo "pivô"), contra a China. A lógica que rege tudo isso nunca muda: é o Império do Caos em ação. *****
[1] 29/3/2014, Voice of Russia, em http://voiceofrussia.com/2014_03_29/Only-way-for-Ukraine-to-reach-settlement-is-to-sign-federal-agreement-Lavrov-1757/
[2] 28/3/2014, no Wall Street Journal, (http://online.wsj.com/news/articles/SB10001424052702303779504579465830294243784 (imediatamente macaqueado por O Globo (http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/03/russia-mobiliza-100-mil-soldados-na-fronteira-com-ucrania.html), Terra, TV Cultura... da imprensa-empresa de macaqueação de agências que há por aqui... [suspiro] (NTs).
31/3/2014, Pepe Escobar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/Central_Asia/CEN-01-310314.html
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