A acumulação capitalista está impressa na assim chamada "natureza humana"?

A tarefa de dar resposta para tal questionamento exige muito espaço, pois são muitos os pontos a considerar e diversas as vertentes que se abrem a quem pretenda enfrentá-la.

Iraci del Nero da Costa*

A tarefa de dar resposta para tal questionamento exige muito espaço, pois são muitos os pontos a considerar e diversas as vertentes que se abrem a quem pretenda enfrentá-la. De sorte a tornar a leitura mais inteligível vou enumerar minhas ponderações sobre o tema; como notará o leitor, este escrito trata-se da resposta a uma missiva na qual nos foi proposta a pergunta que o encima; destarte, os argumentos vão apresentados de maneira informal, pois nos interessava, sobretudo, arrolar alguns elementos capazes de servirem como pontos de partida para as reflexões a serem desenvolvidas por nosso interlocutor.

1. Talvez seja preciso afirmar desde logo, independentemente do reconhecimento ou não de uma "natureza humana", que parece ser interessante para a espécie a conservação da grande diversidade de formas de ser apresentadas pelos humanos. Em termos bem simples, e sem qualquer compromisso com a ciência, a ideia poderia ser expressa da seguinte maneira: "interessa à espécie garantir sua 'biodiversidade', garantir a existência e permanência do maior número possível de 'genes' aos quais possam dever-se atitudes as mais distintas". Enfim,  a espécie precisa de suas figuras extremadas, loucos, maníacos, homicidas sádicos etc.; caso não carregássemos todas as taras por nós portadas, seríamos incapazes de desenvolver muitas ações úteis e desejáveis. Ou seja, caso não houvesse em alguns de nós uma "carga genética" capaz de tornar tais pessoas menos sensíveis à dor de terceiros não existiriam cirurgiões nem enfermeiras prontos a nos cortar e causar dor quando necessário. O problema todo repousa num fato simples e irrecorrível: as cargas genéticas que cada um de nós recebe não são homogêneas nem balanceadas, pois as recebemos como um lote mais ou menos aleatório, daí os excessos representados por indivíduos como os lembrados mais acima. E aqui se define um primeiro ponto a considerar: há excessos os quais têm de ser controlados, circunscritos e inibidos. Assim, enquanto a maioria da população não estiver disposta a adotar uma norma proibindo a existência da propriedade privada sobre os meios de produção, o socialismo será impossível e a probabilidade de recaídas - como as observadas na ex-URSS e seus satélites - será muito alta. De outra parte, a proposição "quem não trabalha não come" já é um elemento ponderável de compulsão largamente aceito, embora ainda não haja concordância universal com respeito à definição inequívoca do conceito de "trabalho".

2. F. Engels e K. Marx, de certa maneira, fugiram da questão em epígrafe. Para Engels, mais cauteloso, as pessoas sob o socialismo e sob o comunismo resolverão as questões a seu modo (modo esse impossível de ser previsto) e rirão muito de tudo aquilo que dissermos hoje sobre as maneiras segundo as quais elas deveriam agir num futuro cujas condições fogem a uma plena compreensão de nossa parte. Marx foi mais longe e negou a existência de uma "natureza humana",  afirmou ser o homem um feixe de relações, negando assim a existência de uma natureza humana, natureza essa a qual poderia levar o homem a querer acumular dinheiro (ou que o induziria a estabelecer relações mercantis, como proposto por Adam Smith). Para Marx todas as volições humanas são mediadas pela sociedade, definem-se como um produto cultural e não natural; ademais, na medida em que são produtos culturais, são amoldáveis, são socialmente plasmáveis; aqui não é impertinente a pergunta, que muitos procuram responder, sobre a possibilidade de tal "produto cultural" ser determinado naturalmente. Há pesquisadores para os quais esses "produtos culturais" têm embasamento natural e são decorrência de um processo de seleção pensado em moldes darwinianos. Por fim, cabe lembrar que, para Marx, no socialismo e no comunismo o resultado do trabalho seria tido pelo trabalhador como a expressão de sua subjetividade e, por isso,  ver-se-ia ele estimulado a ser produtivo e eficiente. Segundo penso, existem argumentos (abaixo os explicito) os quais reforçam algumas dessas postulações do autor em tela.

3. Ainda neste plano introdutório faz-se necessário lembrar os dois momentos distinguidos pelos teóricos do marxismo quando se pensa numa sociabilidade pós-capitalista: o socialismo (...a cada um segundo o seu trabalho) e o comunismo (...a cada um segundo suas necessidades). No socialismo este elemento material de compensação pelo "esforço" despendido no processo produtivo estaria plenamente presente na forma de pagamento pecuniário; assim, as pessoas mostrar-se-iam interessadas em se tornarem mais produtivas e eficientes, muito embora não pudessem utilizar essas capacidades para deter a propriedade privada sobre os meios de produção. "Construir" um homem apto a viver no comunismo colocar-se-ia, por seu turno, como tarefa a ser cumprida pela sociedade. Resta saber se temos um instrumental "genético e psíquico" capaz de facilitar tal "construção"; a meu juízo, a resposta a tal questão é afirmativa e arrolo abaixo alguns argumentos embasadores dessa minha postura.

4. Antes de ir adiante cabe perguntar se não estamos dando um valor muito grande à ideia segundo a qual os homens "por sua natureza" são levados ao capitalismo. Enfim, se o homem, por sua natureza, almeja compensações, é preciso verificar se tais compensações têm, necessariamente, de ser de ordem "material" e na forma de capital. Há elementos para supor que tal necessidade não se impõe.

5. Eu pergunto: quanto ganha um poeta para fazer (da melhor maneira possível) suas poesias? A compensação derivada delas, não sendo pecuniária, tem, para nosso vate, um caráter "material" ou "subjetivo"? Os sociólogos estudam esse tema. Para eles existem formas não pecuniárias de compensação altamente perseguidas pelos homens. Max Weber discutiu o tema em termos de "vocação". Assim, como diziam nossos pais e avós, o encanador alemão é eficiente porque ele despende todo seu esforço (e se sente recompensado com isso) a fim de ser considerado (e considerar-se) um trabalhador prestimoso. Para alguns marxistas esses "alemães" interiorizaram o modo de produção capitalista, poupando ao dono do capital a tarefa de controlar a produção, pois o selo de garantia é dado pelo próprio operário o qual é (sente-se) incapaz de ferir os altos critérios de qualidade por ele mesmo esposados. Esta forma de "pagamento" distingue-se como algo muito poderoso e mobiliza as capacidades humanas. Uma outra forma bizarra de "pagamento" não pecuniário lembrada pelos sociólogos está na associação do nome do cientista a algum fenômeno por ele descoberto (número de Avogadro, Lei de Boyle, Efeito Pigou etc. etc.); segundo esses sociólogos trata-se de uma forma de recompensar o trabalho dos cientistas e estimulá-los a socializar suas descobertas e inventos. Os capitalistas já se servem de tais formas de "pagamento" em larga escala; toda essa onda de valorização do empregado prende-se a isso, parece-me algo asqueroso (porque a serviço da exploração), mas os administradores perceberam que a empresa, concebida como uma grande e fraternal família, tem seus lucros aumentados!

6. Os antropólogos lembram a crítica social como um forte estímulo à padronização de ações. Particularmente, eles dão importância ao riso, tido como uma forma de crítica social ao desvio. Assim, se um pessoa tropeça somos levados a rir; para os antropólogos esse riso é uma crítica que "a espécie" faz à pessoa desajeitada ("não apta"). Entre os índios o riso é um forte inibidor de ações desviantes, assim, em muitos casos basta a comunidade rir da atitude de um índio para que ele amolde seu comportamento ao padrão privilegiado pelo grupo. Como se vê, a crítica e a pressão da sociedade são fatores de enquadramento muito fortes e presentes em quase todas nossas ações e atividades. Enfim, existe um conjunto de valores, comportamentos e hábitos passados às crianças no processo de socialização que se fixam de maneira indelével em suas "personalidades" de sorte a não ser necessária nenhuma repressão externa a fim de vê-los respeitados (trata-se dos "mores"). Tais exemplos, evidenciam, segundo penso, a existência de um instrumental posto à disposição da humanidade e poderoso o bastante para conduzir as ações das pessoas de modo a fazer com que elas não vejam a recompensa, pretensamente impressa na "natureza humana", como algo a ser medido, necessariamente, em termos monetários. 

7. Outro problema a considerar é o da própria produtividade e eficiência, valores desejáveis, mas, se tomados de modo absoluto, passíveis de reparos. Em outros termos, até que ponto uma sociedade socialista ou comunista tem de privilegiá-los de maneira a, eventualmente, colocá-los acima da preocupação com o atendimento das necessidades básicas de toda a população? Em outros termos: a busca pela eficiência e por aumentos da produtividade é conduzida, no capitalismo, pelo valor de troca visando-se à maximização dos lucros; já no pós-capitalismo, o condutor será o valor de uso dos bens, procurando-se garantir o bem-estar das pessoas. Assim, embora a excelência seja sempre desejável, não se pode perder de vista a consideração e qualificação dos objetivos perseguidos.

8. Contemplemos agora a ideia de "natural". Dizer que algo é natural e, por sê-lo, dar a discussão por encerrada representa, a meu ver, uma postulação ideológica devida aos positivistas. Para um hegeliano, justamente por ser natural, a "coisa" tem de ser negada, pois nosso plano de existência, o cultural, é eminentemente antinatural. O homem só se erige como tal a contar do momento em que coloca em questão a natureza, não se pretende como advertia Marx negar a natureza, mas superá-la. Para Hegel superar a natureza significa entender a necessidade: "a liberdade é o conhecimento da necessidade"; ou seja, eu não me "liberto" da força da gravidade atirando-me de um prédio e batendo os braços, mas sabendo (conhecendo) as fórmulas que regem a gravidade e criando um mecanismo (avião, dirigível, foguete etc.) capaz de superá-la. No caso em pauta, é preciso ter presente que o "espírito" (consciência) é capaz de criar meios (antinaturais) de convivência humana aptos a dispensarem a presença do capital; enquanto não fizermos isso seremos presas do capitalismo. Assim, contrariamente ao que pensavam alguns marxistas, o salto para o socialismo não se dará de modo "natural" nem necessário, mas será fruto da vontade (da ação consciente) dos homens.  

De outra parte, o homem não pode ser considerado um "animal" estritamente cultural; a cultura atua como mediação entre uma "natureza humana" de caráter puramente animal e as ações e volições reveladas pelo homem. Vale dizer, o homem não porta, como queria Adam Smith, um "instinto de troca" que o leva a produzir mercadorias e a trocá-las. Não obstante isso, é inegável que a "competição" está impressa de modo definitivo em qualquer animal, aliás ela nos precede, pois cada um de nós é fruto de uma "corrida" dos espermatozóides em busca do óvulo. De certa maneira, a própria "acumulação" também se faz presente, tanto em termos físicos (eu posso acumular gordura) como em termos subjetivos, pois o que nos separa dos demais animais não é a exploração (as formigas prendem uma espécie de inseto para usufruírem de uma forma de melaço que eles produzem), não é a produção (as formigas plantam uma espécie de fungo) nem a acumulação (as abelhas e alguns animais que enfrentam o frio o fazem, assim como os ursos e peixes que acumulam gordura), enfim o que nós acumulamos é conhecimento e é isso que nos distingue das demais espécies cujo processo de acumulação de "conhecimento" se dá em termos da seleção natural e não como processo consciente. Como anotou Alexandre Kojève interpretando Hegel: "Se o animal muda, se ele se ultrapassa, sua consciência-de-si, em vez de estender-se, se anula; ele se torna nada: morre ou desaparece tornando-se um outro animal (a evolução biológica não é histórica). Por isso é que, para Hegel, o animal não tem consciência-de-si, mas apenas um sentimento-de-si. A consciência-de-si que caracteriza o homem é necessariamente uma consciência que sempre se estende ou se transcende". Já o homem pode se negar - acumular conhecimento - sem se destruir, pois o novo conhecimento é acrescentado ao seu estoque de saber sem levar à negação da espécie. Pois bem, tudo isso é verdade, temos a "concorrência" e a "acumulação" decalcadas tanto em nossa formação física como psíquica. Mas, e aqui está a pergunta central, tal fato nos condena inescapavelmente a uma vivência social em que o "meu" e o "eu" se confundam? Não creio, mais ainda, acho que somos uma espécie "jovem" demais e com muito pouca experiência para respondermos que a acumulação na forma de capital perpetuar-se-á.

A própria ideia do "eu" é nova demais. Sobre este tema também devemos a Marx uma observação muito perspicaz. Segundo ele, o reconhecimento do "eu" (reconhecimento de si como indivíduo destacado dos demais) deve-se à propriedade privada (pessoal e exclusiva); segundo ele, para ser possível ao homem destacar-se do grupo, foi necessário que o homem "objetivasse" tal separação, o que se dá quando ele diz "isto é meu", ao fazê-lo, ele diz, concomitantemente, "isto não é de mais ninguém"; ou seja, ao afirmar-se como dono único de algo, o homem se destaca do grupo e, deixando de se reconhecer exclusivamente como pessoa vinculada a um grupo, passa a se ver como um indivíduo isolado de todo o restante da comunidade e do universo. Assim, a própria possibilidade de emergência do conceito de indivíduo está calcada, para Marx na existência da propriedade privada. Talvez seja este o papel mais revolucionário desempenhado pela propriedade privada, sem sua existência, talvez continuássemos a nos ver como pessoas integrantes de um grupo, incapazes de nos sentirmos como algo destacado da nossa comunidade. Mas, dado este passo, será possível uma "reconciliação" com o grupo (agora transformado em sociedade) de sorte a que não impere a identificação imediata entre o "eu" e o "meu"? Creio que sim. Aliás, a ideia de acumular capital me parece tão imbecil (e vai aqui uma limitação minha) que a meu ver o capitalista não está preocupado com a acumulação em si, mas vê na acumulação um bom índice para mensurar sua capacidade e sagacidade. De toda sorte, a acumulação de capital não será pouco, muito pouco, para satisfazer espíritos um pouco mais sofisticados?

9. Creio que podemos estabelecer, sempre provisoriamente, algumas conclusões lógicas do acima posto.

A. A ideia de associar o socialismo com a felicidade para a humanidade (para toda a humanidade) não me parece sustentável, pois não será necessário percorrer muitos consultórios de psicanalistas para encontrarmos vários exemplares de pessoas que se sentem profundamente infelizes com a felicidade alheia ou profundamente deprimidas em razão de seu próprio bem-estar. Assim, exigir uma felicidade universal significa exigir o impossível.

B. De toda sorte, "se pensarmos uma sociedade na qual se deseje ver promovida, sem nenhuma mediação, a distribuição da produção de acordo com as necessidades de cada um de seus integrantes (e é isto que os comunistas alegam querer), seremos obrigados a admitir que seus pressupostos são: 1) tal sociedade tem de se erigir com base na negação da propriedade privada sobre os meios de produção, já que não pode haver, por hipótese, qualquer mediação entre a produção de bens e serviços e sua distribuição; 2) essa sociedade tem de ser 'pensada', projetada, antes de existir concretamente, pois, como vimos, a  natureza é incapaz de instituí-la, de produzi-la; aliás, pelo contrário, o que se produziu 'naturalmente' foi justamente a propriedade privada sobre os meios de produção, óbice maior à instituição da aludida sociedade almejada pelos comunistas; 3) como visto, tal sociedade não é um produto da natureza, mas algo antinatural, decorrente da vontade dos homens (da consciência, da cultura); não traz em si, portanto, os elementos necessários à sua reprodução (re-posição), pois, se o for, será 'colocada' (posta) pela consciência e por ela terá de ser re-colocada; a ela, portanto, caberá a função de sustentá-la. Dessa forma, tanto sua existência como sua persistência (subsistência) derivarão da vontade dos homens, de sua tensão em mantê-la. Não há, portanto, nenhuma razão de ordem natural para que ela venha a existir ou permaneça existindo."(COSTA, I. & MOTTA, J. F. A Engenharia Econômica como nova ciência, versão em português do Pravda.ru online, 6 de março de 2012).

C. Admitindo que:

1. existe um algo chamado natureza humana;

2. é próprio da natureza humana exigir recompensas materiais e simbólicas;

3. ainda não existem recompensas materiais ou simbólicas superiores às propiciadas pelo capitalismo;

Tem-se que:

4. os adeptos do socialismo (que os há) não se mostrarão capazes de formular propostas que levem ao estabelecimento de recompensas superiores às do capitalismo e neste caso ficará evidenciado que o socialismo é natural e necessariamente impossível.

ou:

5. os adeptos do socialismo chegarão à desejada formulação de recompensas mais substanciais do que as proporcionadas pelo capitalismo e neste caso o socialismo terá oportunidade de se estabelecer. 

6. como é impossível prever-se se prevalecerá a solução 4 ou a 5, é impossível afirmar-se se uma eventual existência do socialismo é viável ou não. Em face disto só nos resta esperar pelo passar das gerações e pelo refinamento da luta dos socialistas por seus objetivos.

 

 

* Professor Livre-docente aposentado da Universidade de São Paulo.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey