Sem medo de fantasmas

Chico Silva

O ex- juiz argentino Gabriel Cavallo foi um dos principais responsáveis pela incorporação de um novo traje ao figurino dos militares argentinos envolvidos com a prática de crimes cometidos pela ditadura militar do país vizinho. Depois da farda do quartel e do pijama da reserva, ele inovou ao fazê-los vestir o uniforme de presidiários. Em 2001, Cavallo tornou inconstitucionais as leis Obediência Devida e Ponto Final, semelhantes à nossa Lei da Anistia, e os indultos concedidos pelo ex-presidente Carlos Menem. Era o começo do fim da impunidade para militares de alta e baixa patente e colaboradores da junta responsável pelo assassinato de mais de 30 mil militantes políticos durante a chamada “guerra suja”.


Em 2005, a Corte Suprema ratificou a decisão do juiz. A partir daí centenas de criminosos tiveram de responder por crimes contra a humanidade, como assassinatos em massa, tortura e seqüestros ocorridos durante os sete anos do regime. Graças à iniciativa do juiz, torturadores e comandantes militares têm sido julgados na Argentina. No mês passado, o general Luciano Menéndez, acusado de quatro assassinatos durante a ditadura, foi condenado a prisão perpétua.


Hoje aposentado dos tribunais, Cavallo descobriu uma nova vocação. Tornou-se editor e sócio do controverso jornalista Jorge Lanata, um dos fundadores do Pagina/12, no diário La Crítica Argentina. Cavallo defende a necessidade de um país não deixar impunes aqueles que sob a sombra do Estado cometeram crimes contra sua própria sociedade. Confira, abaixo, a íntegra da entrevista.


CartaCapital: A exemplo do Brasil, a Argentina tinha leis e indultos que não permitiam o julgamento de crimes praticados por militares e altos funcionários da ditadura argentina. Como foi o processo que derrubou essas garantias e permitiu a detenção de centenas de acusados por assassinatos, torturas e seqüestros durante a chamada “guerra suja”?


Gabriel Cavallo: Tudo começou no governo de Raul Alfonsín, quando acontecem os primeiros julgamentos dos crimes cometidos pelos militares da Junta. Porém, a promulgação das leis Obediência Devida e Ponto Final paralisa o processo. Posteriormente, o presidente Carlos Menem completa o marco de impunidade com a concessão de indultos aos comandantes condenados. Da canetada de Menem ao momento do decreto que torna essas leis inconstitucionais passam-se 12 anos. Durante esse período houve grande pressão de governos estrangeiros, principalmente europeus, para que os autores desses delitos fossem julgados. Toda vez que um presidente argentino viajava ao exterior enfrentava manifestações de ativistas e organismos de defesa dos direitos humanos pedindo a abertura de processos contra os torturadores. Isso provocava um problema político internacional imenso para o governo. Ao mesmo tempo, havia uma série de mandatos de prisão expedidos por cortes internacionais contra militares do Cone Sul, como o caso clássico da prisão do Pinochet na Inglaterra. Havia então um ambiente favorável para a derrubada dessas leis.
CC: Qual o argumento jurídico utilizada pelo senhor para torná-las inconstitucionais?

GC: Acompanhei as sentenças judiciais expedidas pelos juízes europeus. Essas decisões eram baseadas na legislação internacional para crimes contra a humanidade e direitos humanos. Esse tipo de doutrina se aplica, por exemplo, aos criminosos nazistas da Segunda Guerra Mundial. Realizei um estudo de tudo que estava se passando no direito internacional e comecei a projetar como isso poderia ser adaptado na Argentina. Fiz isso em 2001. Quatro anos depois a Suprema Corte ratificou meu despacho e permitiu a reabertura desses processos.


CC: No Brasil há uma discussão sobre a abertura de processos contra os acusados de prática de crimes durante a ditadura. O ministro da Justiça, Tarso Genro, defende que os delitos cometidos durante o período sejam julgados como crimes comuns. Como o senhor analisa essa proposta?


GC: Na minha avaliação é um erro. Se você julga um crime contra a humanidade como crime comum você permite ao acusado todas as prerrogativas de defesa garantidas por lei para esse tipo de delito. A primeira coisa que irá se alegar é que muitos desses crimes já prescreveram. Um crime previsto pelo direito internacional, por exemplo, nunca prescreve. Por isso até hoje se persegue os criminosos nazistas pelo mundo. Outro fato importante é que os condenados nessa categoria não têm direito a indulto, anistia, nada. O que não aconteceria no caso de um julgamento comum. Por isso é importante que esses julgamentos sejam regidos pelas leis do direito internacional.


CC: O senhor tem acompanhado os debates sobre a possível mudança da Lei da Anistia no Brasil?


GC: Acompanho esporadicamente. Estou informado que há movimentos nesse sentido. Mas é sempre uma questão delicada, complexa, que demanda tempo e habilidade para ser discutida. Aqui na América do Sul tivemos grandes progressos no Chile, que viveu uma situação muito parecida com a da Argentina. Mas esse tema não avançou no Uruguai. Lá foi realizado um plebiscito para referendar a lei que anistiava os militares suspeitos de crimes durante o regime militar. Opovo uruguaio achou por bem não levar adiante essa questão. É uma decisão soberana. Eu particularmente acredito que nenhum país deveria deixar impunes seus criminosos. Mas respeito outros pensamentos.


CC: Na América Latina, Forças Armadas e governos democráticos vivem em delicado equilíbrio. No Brasil há pressão de setores militares para que não se abram processos contra àqueles que praticaram crimes durante a ditadura. Um governo deve dar respaldo institucional para que estes sejam julgados ou deve deixar a questão apenas para o Poder Judiciário?


GC: Na Argentina o contexto político e histórico levou os governos a adotarem posições distintas. No começo do governo Menem a pressão do Exército era muito grande. O país tinha uma democracia jovem, precária. Menem preferiu preservá-la a seguir adiante com os julgamentos. O passar dos anos e a troca de presidentes criaram um clima oportuno para a retomada desses processos. O governo Kirchner adotou a questão dos direitos humanos como política de estado, coisa que não ocorria desde os anos Alfonsín. E isso acabou ajudando. Nessa matéria é essencial que o governo acompanhe e dê respaldo para as decisões judiciais, pois no fundo trata-se de um tema político. No exterior, salvo algumas exceções, não há muito interesse de se julgar crimes fora da jurisdição de cada estado. Por isso o governo de cada país tem papel fundamental nesse processo.


CC: Há quem defenda que tanto agentes do regime quanto integrantes de organizações que combateram a repressão sejam julgados pelos mesmos crimes. O que pensa sobre a questão?


GC: Nesse aspecto só posso afirmar que um crime cometido por uma organização terrorista ou de esquerda não pode ser tratado na mesma forma que um delito cometido por um Estado. Um crime contra a humanidade é regido por três preceitos. Ele tem que ser autorizado por posições oficiais de poder; ser praticado e motivado por questões políticas, religiosas ou raciais e por último tem que ser sistemático contra uma determinada parte da população civil. Quando o estado toma a decisão de atacar um grupo da população com o objetivo de exterminá-lo aí temos um crime contra a humanidade. Foi o que aconteceu na Argentina e no Brasil. No caso contrário isso não se configura.


CC: Como o senhor avalia os argumentos de que eventuais excessos foram cometidos em nome da defesa da Pátria, pois se vivia uma guerra entre terroristas e as forças que atuavam para defender o Estado?

GC: Esse argumento não procede, pois havia uma diferença extraordinária de forças. Imagine um Estado que conta com a Polícia, Exército, Marinha e Aeronáutica lutando contra um grupo. É impossível que uma organização terrorista tenha condição de enfrentar, em condições de igualdade, o poderio de um governo. A disparidade de meios é enorme. E o número de vítimas desse enfrentamento comprova isso. Na Argentina cerca de 800 militares morreram durante a ditadura. Do outro lado mais de 30 mil foram assassinados ou desapareceram entre os anos de 1976 e 1983. Isso sem falar em outros delitos praticados pelo governo de então, como seqüestro de menores, roubo de propriedade privada e uma série de violações que mostram o imenso poder do Estado na repressão de seus opositores.


CC: Decisões como a tomada pelo senhor costumam vir acompanhadas de aborrecimentos e pressões. O senhor recebeu algum tipo de ameaça?


GC: Sim. Sofri ameaças, perseguições políticas e operações difamatórias de pessoas alinhadas ao pensamento de extrema direita. Recebi telefonemas, cartas e e-mails com ameaças de morte dirigidas a mim e à minha família. Em um determinado momento cheguei a ter quatro seguranças, dia e noite, postados na porta da minha casa. Há três anos, inclusive, um destes guardas foi assassinado. Até hoje a polícia não esclareceu esse crime. Não se apurou se foi roubo ou atentado. Além disso, tentaram me tirar do cargo. Mas hoje abandonei a magistratura. Deixei de ser um inimigo.
CC: Que métodos usaram para lhe difamar?


GC: Fui atacado no Conselho da Magistratura. Tentaram me afastar do cargo denunciando coisas que posteriormente se provaram falsas. A mais grave delas era de que eu teria enriquecido ilicitamente. Quiseram mostrar também que eu havia oferecido propinas para conseguir uma promoção ao Tribunal Superior. A idéia era me desprestigiar e ao trabalho que vinha realizando. Mas nunca conseguiram provar nada contra mim. Segui adiante.


CC: De onde partiam essas tentativas de intimidação?


GC: Na verdade eu não tenho nenhuma suspeita determinada. Até porque há muitas motivações. Não acredito que somente militares estejam envolvidos. Houve civis que participaram da Junta Militar e integrantes de organizações terroristas que por temor à vida ou à integridade da família colaboraram com o governo, delatando companheiros. É gente que tem posição de vítima e passaria pela vergonha de ser reconhecido como o alcagüete que entregou seus colegas. Isso provoca temores e reações imprevisíveis. Quando se mexe em uma ferida como essa tudo vem à tona.


CC: Por falar em feridas, a Argentina convive com o drama dos filhos e netos seqüestrados pela ditadura. Hoje, muitos desses jovens adotivos não querem contato com as famílias de seus verdadeiros pais e se revoltam contra as decisões judiciais que condenam seus pais adotivos. Como lidar com essa situação?


GC: Todas as famílias que receberam essas crianças sabiam que eles eram filhos e filhas de militantes mortos ou desaparecidos. Portanto, todos são cúmplices desses crimes. A reação desses jovens, que foram criados por essas pessoas, é até aceitável. Mas é preciso ficar claro que os pais apropriadores não foram vítimas da pressão política para assumi-los. Inclusive, o caso que motivou a inconstitucionalidade das leis do Ponto Final e da Obediência Devida foi o de um seqüestro de menores. Uma moça, chamada Cláudia Poblete, não sabia que era filha de desaparecidos políticos. Ao tomar conhecimento de sua verdadeira identidade, até defendeu os país apropriadores. Mas estes foram condenados. Essas leis permitiam uma barbárie. Eu tinha instrumentos para prender um sargento ou um cabo pelo seqüestro de uma criança, mas não para levá-lo ao cárcere pela tortura ou assassinato dos pais dessa criança. Não havia a mínima lógica.


CC: O senhor acredita que um País possa seguir seu caminho sem enfrentar os seus fantasmas do passado, mesmo que para isso pague um preço político por isso?


GC: Nenhuma sociedade pode crescer sem reconhecer os erros do passado. É óbvio que você não vai dar solução ao sofrimento. Não vai se devolver o filho à mãe e ao pai; o pai e a mãe ao filho e o neto para a avó. Mas você precisa dar uma resposta institucional, até para colocar sua democracia à altura dos sistemas mais avançados do mundo. Quando você caminha nessa direção sua democracia amadurece e ganha um status superior ao que tinha antes. Além disso, o país dá uma resposta moral à sua sociedade. Como você pode cobrar que o seu governo afaste um funcionário corrupto sabendo que a legislação do seu país permite que um genocida seja seu vizinho ou colega de trabalho? A impunidade dissemina um germe que contamina toda a sociedade. O país que não revisa seu passado corre o risco de vivê-lo de novo.

Texto da Carta Capital desta semana

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey
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