Neutralidade Brasileira no Conflito Armado Colombiano

Silvio de Albuquerque Mota/Jurista

As guerras são acontecimentos objetivos. Não dependem de formalidades. Grotius, considerado o pai do moderno Direito Internacional Público, (Huigh de Groot, 1583 -1645) chegava a classificar as guerras em públicas, privadas e mistas. O que importava nessa classificação era se as partes tinham a autoridade de Estado. Soberania.

Tucídides define a soberania como o poder de fazer as próprias leis, e Dionísio de Halicarnasso complementa essa definição como o poder de nomear autoridades, executar e revogar leis, administrar a justiça e fazer a guerra e a paz.

Desde 1964, portanto há 43 anos, existe uma guerra na Colômbia em que ambas as partes detêm autoridade de Estado e estão dotadas de soberania, conforme as clássicas definições de Tucídides e de Dionísio de Halicarnasso. A Plataforma Política da nascente Guerra de Guerrilhas Móveis em Marquetalia foi lançada no dia 20 de julho desse ano e é conhecida como o Programa Agrário dos Guerrilheiros. O estado de guerra e, portanto, a situação de beligerantes das partes envolvidas pode contar, em uma guerra civil, com o próprio reconhecimento do velho Estado existente ou do reconhecimento internacional.

As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP) propugnaram pelo reconhecimento interno dessa situação em 1999, mas o governo central não aceitou seu pedido alegando que não cumpriam com as condições exigidas para tal pelo Direito Público Internacional.

Isso numa guerra civil que leva 43 anos e na qual o movimento insurgente se fortaleceu cada vez mais nos aspectos políticos, organizacionais, militares, de controle territorial e jurídico, a ponto de tornar impossível sua derrota militar, pois não foi obtida pela classe dominante e seus sucessivos governos, nem sequer com a ajuda massiva de uma potência estrangeira, os Estados Unidos da América.

Há países, como a Venezuela, que já declararam sua neutralidade diante do conflito, reconhecendo implicitamente às FARC-EP a condição de beligerantes. Basta ver o tratamento que o Presidente Chávez como mediador está dando, tanto ao Comandante-em-chefe das FARC-EP como ao atual Presidente da Colômbia. Também há governos que se negam a aceitar as pressões do imperialismo norte-americano com que busca obrigá-los a qualificar as FARC-EP com termos como “terroristas”. Menciono dois: os governos de Luis Inácio Lula da Silva, no Brasil e o de Rafael Correa no Equador.

Por outro lado, sucessivos governos na Colômbia reconheceram de fato a situação de guerra civil várias vezes, como veremos mais adiante, ao realizar conversas com os insurgentes, assinar acordos entre as partes, estabelecer zonas desmilitarizadas e participar o próprio Presidente da República em discussões com Manuel Marulanda Vélez, Comandante-em-chefe das FARC-EP.

Um estado jurídico reconhecido não pode retroceder no tempo, sobretudo quando as causas que deram origem ao conflito continuam sem ser solucionadas.

Grotius reconhece a guerra civil como equivalente à pública, entre dois países com direito a embaixadores (“On the Law of War and Peace”, Kessinger Publishing, Estados Unidos, página 154). Também reconhece que “as guerras, para conseguir seus objetivos, não se pode negar, devem empregar a força e o terror como seus agentes mais próprios.” (op. Cit. Página 232).

O Protocolo II da Convenção de Genebra declara:

PROTOCOLO II ADICIONAL À CONVENÇÃO DE GENEBRA DE 12 DE AGOSTO DE 1949 RELATIVO À PROTEÇÃO DAS VÍTIMAS DOS CONFLITOS ARMADOS SEM CARÁTER INTERNACIONAL

TÍTULO I. ÂMBITO DO PRESENTE PROTOCOLO

ARTÍGO I. Âmbito de aplicação material.1. O presente Protocolo, que desenvolve e completa o artigo 3º comum à Convenção de Genebra de 12 de agosto de 1949, sem modificar suas atuais condições de aplicação, aplicar-se-á a todos os conflitos que estejam cobertos pelo artigo I do Protocolo adicional à Convenção de Genebra de 12 de agosto de 1949 relativo à proteção das vítimas dos conflitos armados internacionais (Protocolo I) e que se desenvolvam no território de uma Alta Parte Contratante entre suas forças armadas e forças armadas dissidentes ou grupos armados organizados que, diante da direção de um Comando responsável, exerçam sobre uma parte do território um controle que lhes permita realizar operações militares sustentáveis e organizadas e aplicar o presente Protocolo.

2. O presente Protocolo não se aplicará às situações de tensões internas e de distúrbios interiores, tais como motins, atos esporádicos e isolados de violência e outros atos análogos, que não são conflitos armados.

O artigo 3 da Convenção de Genebra, mencionado no Protocolo II acima citado, tem a seguinte redação:

ARTIGO 3: “Em caso de conflito armado de caráter internacional (ou de caráter interno, segundo o Protocolo II) que ocorra no território de uma das Altas Partes Contratantes, cada Parte do conflito deve aplicar, como mínimo, as seguintes disposições:

1. As pessoas que não tomem parte ativa nas hostilidades, inclusive membros das forças armadas que hajam deposto suas armas e os postos fora de combate por enfermidades, feridas, captura ou qualquer outra causa, devem ser tratadas com humanidade em todas as circunstâncias, sem distinção de raça, cor, religião ou convicção, sexo, nascimento ou riqueza, ou quaisquer outros critérios semelhantes.

Para esse objetivo, estão e permanecerão proibidos os seguintes atos em qualquer tempo ou lugar relativamente às pessoas acima mencionadas:

(a) Violência contra a vida e a pessoa, particularmente o assassinato de todas as espécies, mutilação, tratamento cruel e tortura;

(b) Tomar reféns;

(c) Ofensas à dignidade pessoal, em particular tratamento humilhante e degradante;

(d) Expedição de sentenças e aplicação de execuções sem prévio julgamento por um tribunal regularmente constituído, com todas as garantias judiciais que são reconhecidas como indispensáveis pelos povos civilizados;

2. “Os feridos e doentes devem ser atendidos e cuidados.Uma instituição humanitária imparcial, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, poderá oferecer seus serviços às Partes em conflito. As partes em conflito devem, além disso, empenhar seus esforços em fazer valer, por meio de acordos especiais, todas ou parte das outras disposições da presente Convenção.”

A aplicação das disposições precendetes não afetará o estado legal das Partes em conflito. Essas disposições, que são obrigação internacional tanto da Colômbia como do Brasil, não vêm sendo observadas. Ou pior ainda, foram observadas em diversas ocasiões, inclusive com troca de prisioneiros, e deixaram de ser observadas pelo atual governo da Colômbia, ainda permanecendo na mesma situação.

Como exemplos do reconhecimento da condição de beligerante das FARC podem ser citados:

1. 1982-1986 Conversas entre a Comissão de Paz do Governo Belisario Betancourt e o Secretário das FARC-EP na região de Casa Verde, Município de La Uribe, Estado do Meta, chegando à assinatura dos conhecidos Acordos de La Uribe. Foram estabelecidos entre as partes um cessar-fogo bilateral, uma trégua e um processo de paz, cujo fruto principal foi o surgimento do movimento político União Patriótica, posteriormente massacrado pelo Estado. Estes diálogos demonstraram claramente que a solução do conflito é de caráter político.

2. 1986-1990: Várias reuniões entre representantes do governo de Virgilio Barco e o Secretariado das FARC, com o objetivo de dar continuidade ao Processo de Paz já iniciado.

3. 1990-1994: Conversações entre o governo de César Gaviria e as forças insurgentes agrupadas na Coordenadoria Guerrilheira Simón Bolívar em Cravo Norte (Colômbia), Caracas (Venezuela) e Tlaxcala (México).

4. 1998-2002: Visita do Presidente eleito Andrés Pastrana aos acampamentos das FARC-EP e entrevista com o Comandante-em-chefe, Manuel Marulanda Vélez. No dia 07 de janeiro de 1999, instalação pública dos diálogos de paz em San Vicente del Caguán, um dos cinco municípios desmilitarizados pelo governo nacional por exigência das FARC-EP para iniciar os diálogos. Assistiram convidados nacionais e internacionais, os poderes do Estado colombiano e o Corpo Diplomático credenciado na Colômbia. Não se deve dizer que as FARC-EP têm reféns seqüestrados, mas prisioneiros.

Grotius já reconhecia que “...qualquer poder pode deter os súditos (ou cidadãos) de outro Estado para obter a liberação dos seus que estejam detidos por aquele Estado”. (op. Cit. Página 246). Reconhece também a evolução de grupos irregulares à condição de beligerantes, equivalentes a Estados (op. Cit. Pagino 250).

Ressalte-se que nos Regulamentos das FARC-EP estão estipulados como infrações, conseqüentemente crimes militares:

1. Uso de calúnia contra as massas.

2. Falta de respeito com os membros do movimento de massas.

3. O assassinato de homens ou mulheres da população civil.

4. A violação sexual.

5. O roubo praticado contra a população civil.

6. Os negócios enganosos ou leoninos contra as massas.

7. O consumo de drogas.

8. Qualquer atividade que vá contra a moral revolucionária, os costumes da população ou que tenda a rebaixar o prestígio das FARC-EP junto ao povo.

9. Todas as atividades encaminhadas a impedir a liberdade de culto religioso.

Um movimento insurgente com tais normas atende ao disposto no Protocolo II da Convenção de Genebra para ser considerado como organizado e como organização que já aplica o citado Protocolo.

O controle das FARC-EP sobre parte do território colombiano é inquestionável. Além disso, no exercício de sua soberania, as FARC-EP estabeleceram as seguintes normas que regulam o tratamento com a população civil nos territórios sob seu controle:

1. Nosso comportamento diário e os planos que nos regem devem partir dos interesses do povo.

2. Devemos respeitar as idéias e atitudes políticas, filosóficas e religiosas da população e, particularmente, a cultura e a autonomia das comunidades indígenas e de outras minorias étnicas.

3. Não devemos impedir o exercício do voto nem obrigar o povo a votar.

4. Nos planos político-militares, tanto no desenvolvimento como em seus movimentos diários, deve-se levar em conta a segurança dos trabalhadores, de suas casas e de seus bens.

5. Devemos respeitar as diversas medidas que tomem nossos colaboradores para manter o segredo de sua relação conosco.

6. A disciplina interna e o trabalho de massas devem privilegiar o cuidado com os inocentes e/ou amigos, para que por nossa negligência ou omissão não fiquem à mercê dos terroristas e do exército oficial.

7. Em todos os lugares nos quais as massas sejam agredidas pelo exército oficial e pelos paramilitares, com bombardeio e destruição de seus bens, devemos ser ativos na denúncia e no combate a essas atividades terroristas, para que o povo se sinta defendido por nós.

8. Considera-se um delito o assassinato e todos os atentados que sejam comprovados, cometidos contra a população civil.

9. Não deve haver imposições às massas de nossa parte. Devemos procurar que vejam nossas armas como suas.

10. As reclamações da comunidade sobre agressões de combatentes ou de outras pessoas devem ser investigadas exaustivamente de acordo com as condições de nossa guerra revolucionária.

11. Caso seja necessário prender uma pessoa por delito composto ou comprovado, sendo essa militante ou simpatizante de uma organização irmã, deve ser entregue a essa organização o caso e, se possível, a pessoa.

12. Os chefes e os combatentes devem estudar e praticar as normas do Direito Internacional Humanitário de acordo com as condições de nossa guerra revolucionária.

13. Em qualquer caso nosso princípio fundamental é o respeito pelo direito à vida.

14. Os chefes e combatentes devem levar em conta que os justiçamentos só podem ser executados por delitos muito graves dos inimigos do povo e com autorização expressa do comando superior para cada caso. Em todos os casos devem ser confrontadas provas e as decisões devem ser assumidas coletivamente, com atas circunstanciadas de toda a instrução comprobatória.

15. O alcoolismo, a dependência de drogas, o roubo, a desonestidade, são vícios contra-revolucionários que prejudicam a confiança de nosso povo.

16. Devemos evitar os abusos da confiança e da generosidade do povo, não exigindo bens para benefício pessoal. Aí está claro o exercício da soberania.

Aí estão as normas penais e processuais, de acordo com as vigentes nos países civilizados. Máxime agora, quando existe estancamento na Troca de prisioneiros de guerra.

O caso colombiano é típico dos passíveis de necessária aplicação das normas do Direito Internacional Público e do Direito Internacional Humanitário, devendo ser reconhecida pela República Federativa do Brasil a condição de beligerante das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo e nossa neutralidade diante de seu conflito com a República da Colômbia.

Resolução especial sobre a Colômbia

Os participantes do ENCONTRO CIVILIZAÇÃO OU BARBÁRIE, realizado em Portugal nos dias 1, 2 e 3 de outubro de 2007, exigimos a realização da Troca de Prisioneiros de Guerra na Colômbia e condenamos a criminosa política de “resgate a sangue e fogo” empregada pelo governo de Álvaro Uribe Vélez.

Da mesma forma, respaldamos decididamente os esforços do Presidente Hugo Chávez, da Senadora colombiana Piedad Córdoba e do Secretariado Nacional das FARC-EP - organização que reconhecemos com o status de FORÇA BELIGERANTE – para concretizar a reunião entre o mandatário venezuelano e o Comandante Manuel Marulanda Vélez. Essa reunião, necessária e urgente, teria repercussões históricas, favoráveis à luta pela paz, à liberdade e ao socialismo na Colômbia e América Latina.

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey