A agonia da República começa nas eleições municipais

por Vitor Augusto Faria Pereira[i]

 

Luís Carlos Prestes nos alertou acerca da farsa da “nova república”. O velho Cavaleiro da Esperança, por não vislumbrar diferenças estruturais entre a Velha República brasileira e a dita “nova república”, negou veementemente o advento de um novo modelo da pólis nacional. Embora a modernidade tenha modificado o conceito de República, originário do mundo greco-romano, a essência do conceito vinda de Platão, Aristóteles e Cícero ainda pode ser verificada no conteúdo semântico existente na moldura a qual hoje a contemporaneidade compreende como “República”. Afinal, por República ainda se entende, ainda que de forma cínica, a abnegação do interesse privado em prol de um corpo político voltado ao bem comum.

O regime republicano florece na antiguidade, entre os séculos VIII e IV a.C., na Grécia. Embora a participação política nas cidades-Estado gregas se dê de forma extremamente limitada, com o advento da República, a estratificação e hierarquia social, principalmente em Atenas, permitiram certa participação ativa, ainda que restrita, dos considerados cidadãos de “segunda categoria” (artesãos, camponeses e comerciantes) na vida política.

Contrastando com a Roma republicana, entre os séculos VI e I a.C, onde o espírito público sempre encontrou dificuldades para subsistir no árido solo aristocrático, o modelo romano, conforme delineado na historiografia, apresentou maiores delimitações de participação popular e estruturas bem definidas de poder, caracterizando-se pelo domínio formal e de fato da Aristocracia, representada pelo Senado.

Contudo, as contradições nas formações econômico-sociais da antiguidade de modo nenhum anularam o avanço político-social representado pela instituição da República. A essência da carga semântica antiga, que ainda persiste na contemporaneidade, revela  que “República” denota o princípio do interesse público e do bem comum em detrimento da vontade individual. O que os gregos denominaram to kainon, e os romanos res publica, legou à humanidade o sufrágio, as leis e o estado de direito como legitimadores de um determinado governo.

O arco histórico é importante para a compreensão do caminho linguístico trilhado até aqui; afinal, “existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa”, como nos diria Benjamin (II Tese sobre o conceito de história).

Cícero (2019, xxv, p. 35), já na decadência da República romana, em seu diálogo de inspiração platônica, intitulado De re publica, definiu a res publica “como ‘coisa do povo’, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum”.

Em terra brasilis, o significado do binômio originário foi resgatado de forma genuína. Heloisa Guaracy Machado (1995, p.13) explica que, enquanto Res é tratado pelo dicionário Latino-Português como “coisa”, “objeto”, “ser”, Publica é uma palavra feminina que traz o sentido original de “meretriz” (aquela que pertence a todos).

Assassinatos

A referida origem linguística é de fato interessante. Hostilizadas por seus pares do sexo feminino e renegadas pelos hipócritas do sexo masculino, a cultura ocidental jamais deferiu o devido respeito às suas meretrizes. Estando o Brasil elencado entre os 10 países com maiores índices de assassinatos contra mulheres no mundo e cientes da cultura patriarcal que costura a similitude identitária do povo brasileiro de norte a sul, há de se concluir que a nação brasileira ainda não aprendeu a forma correta com a qual se trata o sexo feminino de modo geral. Compreende-se, portanto,a magnitude do mal tratamento deferido à nossa combalida Res Publica.

As campanhas eleitorais municipais são um grande sintoma da corrupção do nosso modelo político. Tem-se um show de pirotecnia no qual candidatos de amalgamas ideológicas buscam o voto a qualquer custo, à caça do poder pelo poder; ou seja, observa-se tudo menos o verdadeiro espírito republicano.

Os partidos políticos, institutos originados da necessidade de representação política plena, onde todas as classes e grupos sociais poderiam se fazer presentes no embate político, disputando suas ideias e concretizando seus interesses coletivos específicos, são reduzidos a siglas vazias que, a cada eleição municipal, acotovelam-se na disputa pela gestão da máquina pública, rendidos pelas oligarquias locais.

PT

O Partido dos Trabalhadores, de Lula, e o Partido Liberal, que abriga um inominável ex-presidente, segundo os dados do TSE, compartilham o mesmo palanque em 85 municípios Brasil afora. O Maranhão é o Estado que conta com o maior número de municípios em que o PT e o PL caminham de mãos dadas rumo ao poder executivo municipal, totalizando 22 cidades, seguido do Estado de São Paulo com 12 municípios nessa mesma insólita situação.

À primeira vista, pode parecer que estamos diante de aberrações ideológicas ao nos depararmos com chapas apoiadas por antagonistas políticos no cenário nacional. Contudo, ao analisarmos o palco da República brasileira, nota-se o total consenso entre esse tipo de ignomínia e o conteúdo contemporâneo que demos à nossa política. Na atual política não importa a defesa das ideias, a finalidade do combate ou o lado da trincheira, vale mais o exercício do poder.

 Nas eleições municipais observa-se o oposto da busca incessante pela virtude verificada na teleologia do regime republicano. O poder é concebido como um fim em si, com o privado sobrepondo-se ao público, a tragicomédia em detrimento da seriedade e a promiscuidade sobrepujando a probidade.

Ao nos desprendermos dos fundamentos tão caros à nossa sociabilidade, especialmente em um território de incomensurável importância para o exercício do poder popular, a cidade - o território de contato direto e imediato entre a comunidade e o indivíduo - perdemos as rédeas da coisa pública, permitindo que a corrupção, aqui empregada no sentido de “desfuncionalidade”, irradie até o topo, passando dos municípios para os entes federados, até chegar à União.

Se, cada vez menos, se discute projetos, metas e horizontes na política nacional, no âmbito municipal talvez jamais tenhamos nos preocupado dessa forma. No principal centro econômico do país, o Município de São Paulo, temos um show de horrores novelesco no qual candidatos objetivam frenéticamente a lacração, buscando, nos debates que deveriam ser destinados a exposição dos planos de governo, a criação de cortes palatáveis para viralização nas redes sociais.

Já nos rincões do país, nos pequenos municípios, essenciais para o desenvolvimento sustentável dos grandes centros urbanos, a teatralidade é ainda pior. Líderes paroquiais, sem a menor reflexão quanto ao bem público, entram nas disputas eleitorais com suas caminhonetes 4x4 importadas, promovendo uma farra baseada na promessa de distribuição de cargos públicos, gasolina e próteses dentárias como moeda de troca do voto do eleitorado. Ao fim e ao cabo, enquanto nação, estamos delapidando nossas pólis, compreendida em sua origem linguística como o fenômeno geográfico e sócio-político que faz referência à cidade em si e a população sujeitada ao governo. 

Findo o esforço de traçar um dialogo entre a linguagem e o cenário político atual, chame como bem preferir: jeitinho brasileiro, coisa nossa, geringonça ou até mesmo a velha máxima “político é tudo igual”. Em verdade, vos digo que, enquanto estivermos entregues no âmbito municipal a essas elites sem esclarecimento, alheias às massas despossuídas, não haverá grandes esperanças para o futuro do país.

As tarefas de uma reforma política nacional são claras e objetivas. Há de se corrigir incongruências de forma e conteúdo, recobrando o significado das siglas partidárias, resgatando o conteúdo representativo e a honestidade da linha ideológica contido na forma dos partidos políticos. Por conseguinte, a tarefa maior é a ressignificação da função pública, começando, sim, no âmbito municipal. O sentido semântico ainda está lá, “prefeito” ainda é o executor do bem público, “vereador” ainda é aquele que abre veredas para o povo; afinal, o Dicionário da Língua Portuguesa continua definindo República por “forma de governo na qual o Estado tem em vista servir à coisa pública e aos interesses comuns dos cidadãos”.

 

 

 

 


 
[i] Vitor Augusto Faria Pereira é acadêmico de Direito; e-mail: [email protected]

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