A Constituição está morta

por Vitor Augusto Faria Pereira[i]

Somos uma grande nação de traidores – sim, traidores da pátria –, ao menos é a constatação correta a ser feita se considerarmos o célebre discurso do timoneiro da Constituinte, Dr. Ulysses Guimarães, que afirmou categoricamente que “Traidor da Constituição é traidor da Pátria”. Contudo, para atenuar nossa herética condição de traidores, e para o desgosto de Ulysses Guimarães, nosso belo documento constitucional foi promulgado natimorto. A fim de justificar a contundente afirmação, certa análise há de ser feita. 

Nossa Magna Carta desenhou um Estado incongruente frente à realidade material que fundamenta nosso país latino-americano, gestado a partir do autoritarismo caudilhista, contaminado pela maldição da renda média, pela desigualdade e dependência econômica internacional. O capitalismo periférico, deliberadamente construído por décadas de imediatismo e populismo, aliado às políticas neoliberais adotadas a partir do governo Collor e replicadas rigorosamente por todos os governos subsequentes, tornaram inexequíveis o programa de bem-estar social concebido pela Constituição Federal de 1988, não permitindo outras alternativas aos brasileiros a não ser trair a essência da sua Carta Magna.  

Desde sua promulgação, a Constituição Federal vem sofrendo alterações constantes para adequar-se ao jogo político de Brasília. Diariamente, analistas políticos sensacionalistas visando desmoralizar nosso documento constitucional sem nenhuma honestidade intelectual, comparam o elevado número de emendas realizadas na Constituição brasileira de 1988 com o baixo número de emendas realizadas na Constituição estadunidense de 1787. A desonestidade da comparação reside na diferença fundamental entre as naturezas dos referidos documentos constitucionais e também no fato de que os Estados Unidos lograram êxito em formar um sistema econômico e social independente (embora atualmente se possa questionar tal independência), lastreado na industrialização precoce já no século XIX, e principalmente em seu poderio militar. Já ao sul do continente, o Brasil jamais obteve condições materiais, ou pretensões imperialistas, para cumprir o estipulado pela sua Constituição, de modo que as emendas, bem ou mal, apenas garantiram status constitucional à realidade política e econômica nacional.

Atualmente, nossa Constituição cidadã sofreu 128 emendas (excluídas as de revisão e os tratados internacionais com status de emenda), em comparação com apenas 27 emendas na Constituição dos Estados Unidos da América. Quatorze dessas emendas à Constituição brasileira foram aprovadas somente no ano de 2022, ano legislativo que registrou um número recorde de emendas desde que a Carta entrou em vigor. 22,6% das emendas constitucionais publicadas até hoje, totalizando 29 emendas, foram promulgadas entre 2019 e 2022, demonstrando o desmonte realizado no Estado brasileiro durante o governo Bolsonaro. Se traidor da Constituição é traidor da pátria, nada mais congruente do que números recordes de vilipêndios a uma Constituição progressista durante o referido (des)governo em concurso com as presidências de Rodrigo Maia e Arthur Lira na Câmara dos Deputados.

Como já citado, as naturezas diversas das Constituições brasileira e estadunidense dificultam qualquer forma de comparação. Embora a Constituição Federal de 1988 emane a essência dos movimentos constitucionais do século XVIII e sincretize o constitucionalismo estadunidense, francês e alemão, diferente da concisa Constituição dos Estados Unidos de 1787, nossa Magna Carta fornece comandos normativos diretos de como o Estado deve ser organizado econômica e administrativamente, como também determina as formas do processo legislativo, além de traçar princípios jurídicos de observação obrigatória à atividade jurisdicional. Note que nesta mesma característica analítica da Carta está a sua causa de morte.

Embora o termo "constituição" seja verificado desde os textos de Aristóteles para determinar a formação de um corpo político, o conceito atual de constituição vai além da mera formação material de determinada sociabilidade. O termo “constituição” na modernidade aponta para um instrumento formal normativo/jurídico de delimitação de poder, surgido com a formação dos Estados modernos, principalmente ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII. Tal instrumento jurídico advém do processo de racionalização da legitimidade dos governos, promovido pelas correntes filosóficas iluministas (destaca-se Hobbes, Locke, Rousseau e Kant) em substituição à antiga justificação divina para o direito de governo monárquico. Assim, para consolidar seu poder político e supremacia econômica, a burguesia substituiu seu Deus por suas Constituições.

Ao elaborar a Constituição de 1988, o legislador constituinte pensou em conceber aquilo que Karl Lowenstein classificou como "Constituições normativas", ou seja, aquelas perfeitamente adequadas à realidade política e social das nações que as aplicam. Portanto, elaborou-se um texto intransigentemente garantidor dos direitos fundamentais de primeira e segunda geração (liberdades individuais e direitos socioeconômicos). A Assembleia Nacional Constituinte formada em 1985 se empenhou em construir uma Constituição analítica, através da concepção de um texto longo e minucioso, retirando um conjunto grande de matérias das atribuições do legislador ordinário. Isso demonstrou, como afirma Ingo Wolfgang Sarlet sobre tal forma de Constituição, certa desconfiança do constituinte para com os poderes constituídos, delimitando taxativamente as suas atribuições e discricionariedades.  Prova disso é a minúcia com a qual o legislador se debruçou ao traçar as diretrizes da administração pública nacional. Esse grande número de regramentos específicos também justifica o elevado número de emendas realizadas na CF/88, uma vez que a administração pública brasileira historicamente não hesita em modificar normas que atrapalhem seus planos de governo e interesses paroquiais.

 No entanto, divergindo da inicial intenção constituinte, diante da dinâmica da política brasileira e com os estragos causados pelo legislador ordinário, nossa Constituição hoje facilmente se enquadraria no conceito de "Constituições semânticas", ou seja, aquelas que se aplicam para manter e perpetuar os privilégios do poder político dominante. Um exemplo marcante da crise de nossa constituição está no fato de que, embora nossos princípios constitucionais permitam louvavelmente que qualquer cidadão, quando necessário, possa exigir judicialmente do Estado o fornecimento de qualquer medicamento, do genérico ao fármaco referência de química fina, independentemente do preço, os instrumentos de austeridade fiscal impostos ao Poder Executivo, que contaminaram ideologicamente também o Judiciário e o Ministério Público, elevados ao status constitucional via emendas no pós-golpe de 2016, criaram um curto-circuito constitucional ao garrotear o investimento e o gasto público com metas de déficit zero e aberrações como a Emenda Constitucional n.º 95/2016, que congelou os gastos públicos por 20 anos, conhecida como "teto de gastos".

Em seu artigo 6º, a CF/88 prevê ao cidadão brasileiro os direitos sociais à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança, à previdência social, além da proteção à maternidade, infância e à assistência aos desamparados. Já no artigo 196, a Constituição cidadã garante caráter universal e igualitário ao acesso à saúde para todos os cidadãos, devendo o Estado garantir tal direito por meio de políticas sociais e econômicas. Nossos deputados e deputadas constituintes de forma alguma se equivocaram ao elevar tais direitos ao nível constitucional. O real problema é que não se promove justiça social somente por meio de instrumentos jurídicos formais. Logo, como garantir tais objetivos constitucionais e cumprir a intenção constituinte sem gasto público?

A realidade material brasileira é formada por um jogo político fisiológico, no qual setores sociais que compreenderam genuinamente o conceito de luta de classes, embora astutamente reneguem tal conceito, apoderaram-se ferozmente do orçamento da União, sufocando a capacidade do Estado de honrar a Constituição. O agronegócio exportador, representado pela Frente Parlamentar da Agropecuária, que assustadoramente conta com 324 dos 513 Deputados Federais e 50 dos 81 Senadores do Congresso Nacional, e o sistema financeiro abocanham uma parte colossal das receitas governamentais, tanto por meio de isenção fiscal quanto pelo obsceno pagamento de juros reais estratosféricos da dívida pública. 

Neste ponto, descobrimos a derradeira bala de prata que atingiu em cheio o coração da Constituição. O assenhoramento das receitas governamentais por estes setores tornou as promessas constitucionais meras ficções literárias, lindas de se ler, porém, sobrenaturais, como o realismo mágico de Gabriel García Márquez.

Ao questionar o desenho de país realizado pelo constituinte, o presente autor não visa ser interpretado como inimigo dos direitos sociais previstos na Constituição brasileira. Igualmente, ao contestar os mecanismos de contenção de gastos, este que vos escreve não possui a intenção de parecer irresponsável ou ingênuo. Afinal, também advogo em favor do equilíbrio dos gastos públicos. O grande paradoxo constitucional é que, a título de exemplo, instrumentos como o Arcabouço Fiscal do governo Lula, que substituiu o banditismo do teto de gastos, limitam o crescimento dos investimentos públicos, no melhor dos cenários, ao máximo de 2,5% ao ano, enquanto, em números redondos, 2 milhões de crianças brasileiras nascem por ano. A grande hipocrisia da classe dirigente do país é que, se por um lado, essas políticas de austeridade maculam e tornam ineficazes os direitos sociais constitucionais, por outro, emendas parlamentares propícias ao superfaturamento e o pagamento dos maiores juros reais de dívida pública do planeta terra ficam de fora deste contingenciamento. Categoricamente, limitar os gastos estatais, em pontos específicos como o investimento público, com mecanismos de austeridade fiscal a exemplo dos concebidos por Fernando Haddad, é o único modo de garantir que as fatias do bolo (público) continuem chegando apenas às mesmas bocas que sempre engordaram. 

O que deve nos indignar não é a pressão por parte de um Parlamento formado por representantes empresárias, mas sim a ação deliberada de um governo eleito pela classe trabalhadora que segue fielmente a cartilha neoliberal. Consonante às últimas declarações do Ministro da Fazenda, nos próximos anos iremos continuar a assistir ao recrudescimento de incentivos a parcerias público-privadas (inclusive com a entrega de presídios ao setor privado) e à diminuição do Estado nos campos essencias aos interesses do povo.

Por fim, a morte da Constituição cidadã não se dá pela sua preocupação de assegurar máxima proteção aos bens jurídicos de caráter social concebidos pelo legislador constituinte. Tampouco está morta a nossa Constituição por “garantir muitos direitos e impor poucos deveres”, como insistem bolsonaristas e direitistas nas ruas e parlamentos. Pelo contrário, tais características fazem da nossa CF/88, ao lado das Constituições mexicana (1917), colombiana (1991) e boliviana (2009), um dos mais belos documentos constitucionais da história moderna. A morte da Constituição cidadã se faz pela incompatibilidade entre estado de bem-estar social e neoliberalismo. Enquanto a política nacional não se reformular ao menos em torno de um grande projeto nacional de desenvolvimento e superação do atraso tecnológico norteado pelos interesses da classe trabalhadora, não há em que se falar na eficácia de direito e vida da Constituição Federal de 1988 no Brasil.


 
[i] Vitor Augusto Faria Pereira é acadêmico de Direito na Faculdade Maringá, pesquisador e secretário do Grupo de Pesquisa Constitucionalismo, Desenvolvimentismo e Autoritarismo no Brasil; e-mail: [email protected] 

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Author`s name Vitor Pereira
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