A história recente da regulação de armas no Brasil e os seus efeitos práticos

A história recente da regulação de armas no Brasil e os seus efeitos práticos

            Em 20 de fevereiro de 1997 o governo, do então presidente Fernando Henrique Cardoso, promulgou a lei 9.437, estabelecendo um novo entendimento sobre o comércio legal de armas de fogo no país, bem como, tipificando crimes relativos ao uso desses instrumentos. Antes da mencionada norma, o porte ilegal de arma de fogo não era considerado crime, apenas contravenção penal, desse modo, a legislação em tela foi responsável por introduzir os crimes de posse e porte ilegal de arma de fogo.

            A aprovação da referida norma, evidentemente, almejava impactar a violência homicida armada, entretanto, tal objetivo não foi alcançado, como bem evidenciam os números. A lei 9.437/97 vigorou até dezembro de 2003, período em que foi substituída pelo Estatuto do Desarmamento. Nos seus quase sete anos de vigência, a variação no número de homicídios por arma de fogo foi à seguinte: 24.445 (1997), 25.674 (1998), 26.902 (1999), 30.865 (2000), 33.401 (2001), 34.160 (2002) e 36.115 (2003) (Fonte: Mapa da Violência 2016: Homicídios por arma de fogo no Brasil). Um incremento percentual de 47,7% no comparativo 1997/2003. O fato aqui é bastante claro: criminalizar a posse e o porte de arma de fogo não ocasionou a redução do número de homicídios em nenhum ano da vigência da lei 9.437/97. Frente a isso, ao menos duas hipóteses são possíveis de serem apresentadas: leis penais rígidas possuem pouca eficácia na contenção de crimes e/ou a violência homicida armada não possui correlação com o comércio legal de armas.

            Após 22 de dezembro de 2003 passou a vigorar a lei 10.826, igualmente conhecida como Estatuto do Desarmamento. De fato, nos primeiros anos de vigência da referida norma, houve uma variação negativa no número de homicídios provocados por arma de fogo. Entretanto, algumas considerações se fazem necessárias. Há uma disputa de narrativas entre o governo federal e governos estaduais da época, ao passo que o primeiro atribuía à lei 10.826/03 a redução das mortes, o governo de São Paulo, por exemplo, apontava às políticas públicas estaduais como as responsáveis pela queda do número de homicídios. Neste caso específico, contudo, o pesquisador Graham Willis, docente na Universidade de Cambridge, diverge de ambas as explicações, atribuindo a oscilação negativa no número de mortes ao trabalho do crime organizado que pacificou áreas de disputa pelo tráfico de drogas (https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160210_homicidios_pcc_tg).            Outro aspecto a ser considerado sobre a vigência do Estatuto reside no fato de que as armas adquiridas antes de 2003 ficaram majoritariamente nas mãos da população civil, ou seja, a redução do número de homicídios observada após 2004 se deu com um contingente de milhões de armas de fogo em mãos civis. Nesse aspecto, cabe observar que quatro (04) anistias de armas de fogo foram realizadas durante o governo do presidente Lula (Lei 10.884/04, Lei 11.118/05, Lei 11.706/08 e Lei 11.922/09). Nas referidas anistias não era necessário apresentar laudo de aptidão psicológica, laudo de aptidão para o manuseio de arma e nem mesmo negativa de antecedentes criminais; bastava, essencialmente, uma declaração de origem lícita da arma. A última das referidas anistias foi realizada em 2009, sendo que, no ano seguinte, o Sistema Nacional de Armas da Polícia Federal chegou a contabilizar um recorde de quase 9 milhões de armas legalizadas (8.974.456). Essas armas anistiadas, obviamente, foram adquiridas antes de 22/12/2003, dado que após essa data a aquisição desses instrumentos passou a ser regida pelo Estatuto. Embora esse contingente de milhões de armas estivesse em situação irregular (sem o devido registro) sua origem havia se dado de forma legal e mesmo com essa cifra de armas espalhadas pelo território nacional houve redução do número de homicídios nos primeiros anos da vigência do Estatuto, possivelmente, mais um indicativo de que não há correlação entre o comércio legal de armas e a variação na taxa de homicídios.

            Nesse sentido e seguindo caminho contrário aos estudos de alguns colegas defensores da tese "mais armas, mais crimes", é absolutamente válido analisar a relação dos estados brasileiros mais e menos armados e suas respectivas taxas de homicídios por cem mil habitantes. Sendo assim, figuram como campeões em população civil armada o Rio Grande do Sul (55.452 armas com registros ativos), São Paulo (50.073) e Santa Catarina (34.366) sendo que o primeiro possui uma taxa de homicídios de 28,6, o segundo 10,9 e o terceiro 14,2. Por seu turno, figuram como os estados com o menor número de armas legalizadas Amapá (1.502), Roraima (1.560) e Amazonas (2.135) tendo o primeiro uma taxa de homicídios de 48,7, o segundo 39,7 e o terceiro 36,3 (https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/01/22/posse-arma-registro-pf-pessoa-fisica.htm).

            No caso do Nordeste, por exemplo, a correlação entre a aplicação do Estatuto do Desarmamento e os homicídios seguiu, também, caminho inverso. O impacto da política pública foi negativa, ou seja, os dados de homicídios tiveram maior incremento percentual após a aplicação da medida. Entre 2004 e 2013, o crescimento dos homicídios foi linear e contínuo. Em 2004, houve 11.581 homicídios e, em 2013, o dado ultrapassou os 21 mil. O Estatuto do Desarmamento, legalmente, vige em todo o território nacional, portanto, as diferenças regionais no seu efeito são externas a ele. A falta de conexão regional é pontual no Nordeste e, como vimos, em outras regiões do país. A única região a apresentar contínua redução é a Sudeste (https://m.blogs.ne10.uol.com.br/jamildo/2015/04/24/a-falta-de-conexao-entre-o-estatuto-do-desarmamento-e-os-homicidios-no-nordeste/).

            O grande empecilho para uma análise adequada da violência homicida armada reside na absoluta ausência de dados sobre os calibres utilizados nesses crimes. Nesse sentido, não há nenhuma base de dados para determinar quais são as armas comumente usadas nos homicídios praticados no país. As mortes por arma de fogo estão contabilizadas pelo DATASUS, porém, a catalogação dessas mortes não obedece a uma quantificação dos óbitos por cada calibre correspondente; é apenas o laudo pericial balístico que pode determinar qual calibre foi utilizado no crime e essa é uma informação não disponibilizada pelas Secretarias de Segurança dos estados. As mortes no DATASUS, grosso modo, estão dividas entre CID 10 X93 (Agressão por meio de disparo de arma de fogo de mão), CID 10 X94 (Agressão por meio de disparo de espingarda, carabina ou arma de fogo de maior calibre) e CID 10 X95 (Agressão por meio de disparo de outra arma de fogo ou de arma não especificada).

            Apesar da diferença estabelecida pelos CID´s, que catalogam as mortes por arma de fogo, é imperioso considerar que existe no Brasil uma diferença profunda entre armas de calibre permitido (acessíveis ao público civil) e armas de calibre restrito (de uso exclusivo de determinadas categorias profissionais e das forças de segurança). Assim, um homicídio praticado com uma pistola calibre 9mm pode ser enquadrado no CID 10 X93, contudo, trata-se de arma proibida para o público civil, cujo comércio não é regulado pelo Estatuto do Desarmamento e sim por legislação específica do Exército. Frente a isso, analisar tão somente a variação na taxa de homicídios sem estabelecer a distinção entre calibres permitidos e restritos é um equívoco metodológico.

            Para além disso, as armas de calibre restrito são as prediletas do crime organizado, justamente por conta da sua maior eficácia. Diferente do que alardeiam determinadas ONG´s, um relatório oficial da Polícia Federal demonstrou que as armas utilizadas pelas organizações criminosas são provenientes do contrabando, não apenas as armas longas como fuzis, mas também as pistolas e revólveres (https://istoe.com.br/armas-do-crime-vem-de-paraguai-e-eua-e-rota-e-pela-triplice-fronteira-diz-pf/). Além disso, as sucessivas descobertas de fábricas clandestinas de armas pelo território nacional demonstram que o crime possui know How suficiente para fabricar suas próprias armas, inclusive, as de grosso calibre e com grande capacidade de disparos (https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/10/16/policia-encontra-fabrica-de-armas-clandestina-na-grande-sp.htm).

            A promulgação do Estatuto do Desarmamento, porém, trouxe conseqüências de outra ordem. Apostando numa lógica punitivista, a referida legislação aumentou as penas e tipificou novos crimes envolvendo armas de fogo. Em menos de duas décadas de vigência, a lei 10.826/03 já figura entre as legislações penais que mais encarceram no Brasil. E, é importante que se diga, sobre os excessos da legislação, como o caso das prisões que afetam inclusive as populações tradicionais do país (http://g1.globo.com/espirito-santo/noticia/2012/05/indios-sao-presos-com-armas-de-fogo-em-aldeia-no-es-diz-policia.html). Vários são os exemplos de excessos da legislação em tela como, por exemplo, o caso do inciso IV do artigo 16 que equipara qualquer arma de fogo com numeração suprimida a uma arma de calibre restrito; em outras palavras, significa que o indivíduo detido com uma garrucha 22 com numeração raspada comete exatamente o mesmo crime daquele que porta uma metralhadora antiaérea calibre .50 BMG. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de 2016 o número de encarcerados por crimes previstos no Estatuto somava 32.115 detentos, sendo 31.533 homens e 582 mulheres. Nunca é demais lembrar que a maioria dos crimes previstos no Estatuto enquadra-se nos chamados "crimes de perigo abstrato", logo, puni-los com a pena de prisão mortifica por completo o caráter subsidiário do direito penal, configurando-se verdadeira afronta ao Estado democrático de direito.

           

José Maria Pereira da Nóbrega Junior, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da UFCG.

Josué Berlesi, historiador, docente na UFPA.

Foto: Por From Norwegian patent 8564, April 11 1899. - http://www.forgottenweapons.com/landstad-1900-automatic-revolver/, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=57994986

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey