Estrutura da boate Kiss - I: Espuma de Poliuretano e Shows Pirotécnicos

Estrutura da boate Kiss - I: Espuma de Poliuretano e Shows Pirotécnicos

Não foi um simples acidente, foi um crime que envolve muitas pessoas vítimas da ganância, da corrupção e da falta de humanitarismo. Nunca vou ter certeza, mas provavelmente minha filha e muitos que lá estavam, mesmo vendo o que estava acontecendo, não pensaram que iriam morrer. Trancaram a única saída que as vítimas tinham, tiraram qualquer chance de escaparem. Posso estar confusa nas ideias, mas acho também que não teria havido tantas mortes se não houvesse o maldito material tóxico [espuma de poliuretano] que liberou o gás da morte [cianeto]. Se fosse simplesmente logo sem o gás muitas pessoas mais teriam escapado, por isso acho que o fabricante desse produto deveria ser responsabilizado também, e muito, pelo que ocorreu. Não foi acidente! Foi assassinato em massa sem chances para quem estava lá dentro, porque mesmo para aqueles que conseguiram sair e sobreviver, nunca mais levarão uma vida
normal: viverão com sequelas física e psicológicas para sempre, marcados para sempre e não se sabe por quanto tempo. Quantos anos de vida terão?

Especialmente para esta reportagem, Denise Zimmermann Darif, 50, municipio de Guaraciaba-SC, mãe de Thaís Zimmermann Darif, 20, estudante de Medicina Veterinária da UFSM, uma das 242 vítimas fatais da Kiss

 

por Edu Montesanti

  

Na sequência de reportagens sobre a tragédia de Santa Maria que, no último dia 27, cumpriu quatro anos sem justiça, aborda-se a estrutura da boate da morte. Este tema é dividido em duas amplas reportagens: nesta primeira, a questão da espuma de poliuretano que se encontrava no teto do estabelecimento, e os frequentes e criminosos shows pirotécnicos que ocorriam na casa noturna. 

 

A espuma de poliuretano contida na boate Kiss, que incendiou e liberou gás cianeto com o lançamento de fogo de artifício pela banda Gurizada Fandangueira, foi um dos objetos de investigação policial mais minuciosos pois, além de uma das diretas causas das 242 mortes em 27 de janeiro de 2013 e ter deixado 638 sobreviventes com sequelas que os acompanharão para o resto da vida, incrimina diretamente: os sócios da boate; a empresa importadora e ao mesmo tempo fabricante do produto por não informar (até os dias de hoje) os riscos ali contidos, comercializando-o, assim, para fins equivocados; o Município santamariense já que suas leis vetam claramente o uso de tal material em estabelecimentos; o Corpo de Bombeiros da cidade pela emissão irresponsável de alvará contra incêndio à boate, além do fato de a corporação ter estado, por anos até a noite mais infame da história da cidade, emaranhada em casos de corrupção que a impediu de atender minimamente à sociedade no momento do incêndio; e o governo federal por permitir a importação e mesmo a fabricação nacional do produto sem as devidas exigências para segurança, por exemplo não fiscalizando as informações nas embalagens do produto nem providenciando, através do Ministério da Saúde, o antídoto para o gás letal que rapidamente libera, uma vez queimado. E se não bastasse, as informações passadas pelo Inmetro com exclusividade a esta reportagem tornam ainda mais grave a culpa do governo federal de então (administração de Dilma Rousseff) na tragédia em Santa Maria.

 

"Fator determinante no resultado, porque é combustível altamente inflamável e tóxico" segundo o Relatório Definitivo da Polícia Civil sobre o Incêndio da Kiss concluído em 22/3/2013, a espuma para isolamento acústico foi colocada na boate Kiss no segundo semestre de 2012, contra poluição sonora que, desde a abertura da boate em 2009, vinha perturbando vizinhos.

Quanto aos shows pirotécnicos com fogos de artifício, repetiam-se frequente e ilegalmente na Kiss desde seus primórdios segundo a Polícia baseada nas mais diversas testemunhas e em documentos, configurando-se outra causa direta da tragédia e o perfeito retrato da irresponsabilidade e da ganância de músicos que funcionam muito mais como passageiros animadores de auditório que como promotores de cultura, de empresários sem o menor escrúpulo e dos velhos fiscais municipais, muito bem conhecidos país afora.

Sobre ambas as questões, foram ouvidos por esta reportagem todos os lados em questão, e nem todos se saíram bem nas colocações como era de se esperar.

Santa Maria: Almas que Choram

  

Cianeto, mesmo gás usado pelos nazistas durante a II Guerra Mundial a fim de exterminar seus inimigos. Cianeto, que em Santa Maria ceifou 242 vidas na fina-flor da idade e, das várias que temos conhecimento, pessoas brilhantes com um futuro promissor ao Brasil da ausência de memória, da alienação, da apatia e do individualismo. E da corrupção declaradamente enraizada na política e na sociedade. 

Tudo isso incentivado pelas classes dominantes e pela grande mídia reducionista que possui hoje o mesmo caráter de 31 de março de 1964, e dos 21 anos que seguiram aquele dia os quais ela mais que apoiou: promoveu. Um universo que glorifica os iguais, a estupidez e a ignorância. O oposto a isso representa ameaça ao poder estabelecido com seus privilégios, muitas vezes criminosos a exemplo dos envolvimentos da tragédia em Santa Maria. 

Decorrente disso, aqueles que têm a nação e seus rumos na palma da mão trataram de jogar no esquecimento mais um capítulo do nosso espetáculo do horror, ditando o pouco que ainda se deve dizer e acreditar em relação à tragédia em Santa Maria. 

Foram 242 vidas interrompidas criminosamente, o que leva pais a repetirem, atônitos, o que diz a esta reportagem o sr. Paulo de Carvalho, pai de Rafael Paulo Nunes de Carvalho, vendedor, 32, uma das 242 vítimas fatais da Kiss:

  

Esse dia [da tragédia] não passou e nunca sabemos como vamos reagir. Ao mesmo tempo, parece que faz muito tempo que ocorreu devido à tanta dor e tanta coisa que tem acontecido. Às vezes, parece que vamos conseguir ser fortes e por algumas pequenas coisas caímos. Mas felizmente, até agora, sempre levantamos seja por apoio, seja por pessoas que ajudam mesmo à distância, que escrevem, que entendem...


Em outras conversas com o sr. Paulo, fica claro que ele e muitos familiares acordam cada dia pela manhã pesados, pesarosos, há quatro anos da tragédia.

Conta a sra. Ariane Floriano, mãe de Rogério Floriano Cardoso, 25, cabo-armeiro do Exército santa-mariense, outra vítima fatal da Kiss:

Acordo de manhã querendo que chegue logo a noite esperando que ele [o filho] volte, e à noite quero dormir logo para aliviar a dor... que chegue logo o outro dia.


Já são mais de quatro anos sem memória, sem verdade e sem justiça.

  

Reducionismo Midiático


Envolvendo a espuma de poliuretano na boate da morte, noticiou o diário O Globo em 11 de janeiro de 2014, quando o genocídio de Santa Maria estava prestes a completar um ano: 

(...) Não foram observadas [na Kiss] as restrições da lei municipal 3.301 de 1991, que proíbe a instalação de material de fácil combustão ou que emita gases tóxicos, como a espuma que revestia o teto do palco da Kiss, em estabelecimentos como cinemas, teatros e boates.


As Organizações Globo, incluindo sua afiliada no Rio Grande do Sul, a RBS, possuem claro tendencionismo no que diz respeito à tragédia, o que discutiremos em artigo mais adiante - para nem mencionar o velho sensacionalismo da provocação de lágrimas, de muita dor sem nenhum conteúdo a fim de, jornalisticamentedesconversar as implicações da tragédia, de tentar gerar o oposto daquilo que mais preocupa os porões do poder: justamente brios societários (junho de 2013 para a dona Rede Globo, já foi demais neste quesito!), de jogar tudo no esquecimento de maneira gradualmente mais diplomática além, é claro, de tentar superar a séria crise financeira por que atravessam através de mais audiência e do aumento das vendas de exemplares nas bancas de jornais, que só se declina como reflexo também da perda vertiginosa de credibilidade. 

Pois no reducionista artigo mencionado mais acima, o Globo seguiu toda sua linha ao longo destes mais de quatro anos de tragédia: não colocou suas implicações no contexto mais amplo. Os mini-artigos são frequentemente esporádicos, e totalmente incompletos. 

A quem tentam safar das responsabilidades? Serão aqueles que têm injetado milhões e milhões de reais em suas contas desde 2003, isto é, os lordsdo então governo federal do PT que, por coincidência ou por acidente, eram do mesmo partido do governador do RS, Tarso Genro, responsável pelo Corpo de Bombeiros do Estado em questão? O empresariado? A "indústria" da fiscalização que permeia as prefeituras, Brasil afora?

Todo esse reducionismo, curtos nas informações e na linha de raciocínio, vai muito além da incompetência - passa por ela, pelo baixo nível intelectual e profissional, mas o buraco é certamente bem mais embaixo, nenhuma novidade a ninguém: há muito dinheiro impiedoso envolvido nessa questão. E esta também é, exatamente, a reclamação de todos os familiares de vítimas, sem nenhuma exceção. 

Impiedoso bem material poisnão se importa com vidas humanas nem muito menos com justiça, apenas com a maximização dos lucros e com a manutenção do status quo. E agora, no caso da tragédia, com a impunidade de muitos criminosos engravatados que ultrapassam os limites de município da acolhedora, sofrida e traumatizada Santa Maria.

 

Prefeitura e Espuma: Desconversando


Nas mais de 150 horas de entrevistas desta reportagem com todos os lados envolvidos na tragédia, a questão da espuma causou notável, profundo e generalizado mal-estar: evitou-se de todas as maneiras falar no assunto, e o muito pouco que se falou foi suficiente para contradizer-se, alterar-se e até mentir. Isso com exceção, é claro, de familiares de vítimas e sobreviventes, mais especificamente aqueles pacíficos mas briosos e incansáveis pertencentes à Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).

 

Vale destacar que membros de alto escalão da AVTSM têm sido duramente atacados por todos os membros da então Prefeitura de Santa Maria ouvidos por esta reportagem, desde às vésperas do cumprimento de um ano da tragédia em 2014, acusados de tentar se aproveitar da tragédia (que levou seus próprios filhos) para candidatar-se a cargos políticos. De lá para cá, já ocorreram duas eleições no País, e nenhum membro da Associação em questão sequer cogitou ocupar cargo político.

Perguntado se há alguma lei em Santa Maria que proíbe a utilização de espumas em estabelecimentos, o prefeito Cezar Schirmer, quem conversou cerca de cinco horas da maneira mais gentil possível com esta reportagem,  (não) responde:

Desconheço este grau de detalhe. A espuma é utilizada em colchões. Não há proibição na lei federal nem estadual. No que diz respeito à Prefeitura, a Lei Estadual é clara: a competência é dos Bombeiros. O primeiro documento [liberado à Kiss] foi dos Bombeiros, em 2009. Depois disso, o sanitário, ambiental, de localização... [de competência da Prefeitura].


Indagado logo em seguida sobre requerimento encaminhado ao Ministério Público (MP) de Santa Maria por parte do sr. Walter Cabistani, professor de Matemática da UFSM, assessor Jurídico da AVTSM e pai de Walter Mello Cabistani, 20, uma das 242 vítimas fatais da Kiss, exigindo explicações sobre a colocação da espuma na boate, material proibido pela Lei Municipal 3301/91 não apenas em estabelecimentos fechados, mas também em estabelecimentos de reunião de público tais como cinemas, teatros, boates e assemelhados, o prefeito Schirmer, novamente, (não) responde: 

Não posso afirmar sobre isso. Na medida em que o alvará cumpre a legislação vigente, presume-se que a  legislação estadual bem como a federal e a municipal estão cumpridas. Se você quiser mandar o documento [do sr. Cabistani ao MP] posso responder. A prefeitura não foi comunicada da colocação da espuma.


Veja o requerimento encaminhado pelo professor Cabistani ao MP, enviada com exclusividade a esta reportagem, aqui(role a tela)..

O ex-prefeito afirma ainda que a espuma havia sido colocada na boate no final de 2012, e que a inspeção municipal anual acontecera no início do ano, portanto antes da colocação do produto. Porém, a data da colocação da espuma apresentada pelo prefeito Schirmer não confere, segundo investigação policial: notas fiscais atestam que passaram a ser compradas pelo sóciod a boate, sr. Elissandro Spohr, em setembro de 2011, e depoimentos indicam que logo passaram a ser instaladas na Kiss.

Em posterior entrevista, acrescenta o ex-prefeito Schirmer:

Quando a Prefeitura autorizou [o funcionamento da Kiss], havia todos os documentos. As atividades da boate foram embargadas pela Prefeitura [apenas teoricamente através de documento, em 2011]. Houve muitas autuações da Prefeitura [em forma de multa]. Desde abril de 2012, tudo estava regular.

 

À época da criação dessa lei, em 91, eu nem sei se existia essa espuma. Não conheço esse detalhe. No tempo que eu ia em boate, colocavam caixas de ovo para evitar barulho.


A isso, contestamos, "em se tratando da maior tragédia da história de Santa Maria, e do incêndio mais mortal da história do Brasil, os senhor até hoje não saber do que se trata a espuma que causou as mortes, sendo acusado de omissão pelos familiares de vítimas e sobreviventes, não acha que deveria saber do que se trata esse material?", ao que o prefeito responde:

Isso é um assunto técnico de químico, engenheiro, eu não sou técnico, sou advogado. Se me perguntarem de lei, respondo. Essa espuma libera... cianeto, correto? Existe alguma lei federal que a proíba após a tragédia?


Nossa colocação, "lei federal não, mas municipal em Santa Maria sim", ao que o ex-prefeito aponta com certa razão:

Mas quem tinha que ter visto eram os Bombeiros.


A Prefeitura, conforme concluiu o inquérito da Polícia Civil santamariense, cometeu sucessivos crimes culposos pelo incêndio, concorrendo, com suas omissões na fiscalização, para que a tragédia ocorresse; porém, o Corpo de Bombeiros local cometeu o crime doloso, o que praticamente não tem sido abordado pela mídia.

 

Mais questões da espuma observadas pelo prefeito de Santa Maria serão discutidas mais abaixo, e as de alvará envolvendo também a espuma, com mais detalhes em uma próxima reportagem com ampla apresentação de documentos por parte da Prefeitura, e da Polícia Civil de Santa Maria.

O sr. Ogier Rosado, coordenador de Eventos da Prefeitura de Santa Maria (então cargo de confiança do ex-prefeito Schirmer) e pai de Vinicius Rosado, 26, estudante de Educação Física da Universidade Metodista e uma das 242 vítimas fatais da Kiss, na entrevista de mais de duas horas a esta reportagem trata de imputar grande responsabilidade à sociedade, tentando atenuar as responsabilidades da administração de Cezar Schirmer.

O sr. Ogier insiste indignadamente sobre o fato de que "quem matou meu filho foi a espuma", o que o levava a crer que os únicos culpados pela morte de seu filho eram o governo federal por permitir a importação do produto sem que haja antídoto contra cianeto no país, e o estadual, responsável pelos Bombeiros que emitiram alvará à Kiss. Tudo isso dito com bastante autoridade, inconformado com os governos estadual e federal, para logo mudar consideravelmente o tom.

Questionado sobre a Lei Municipal 3301/1991, que proíbe as espumas de poliuretano nos estabelecimentos da cidade, o ocupante de cargo de confiança do prefeito e mordaz cobrador de atitudes societárias (não) sai-se assim:

Ninguém [na Prefeitura] conhecia a lei. Não vejo culpa. Como alguém na Prefeitura deveria saber? Ela não consegue fiscalizar tudo, duvido que alguém conheça esta lei e possa fiscalizar, se nem a Anvisa sabia que a espuma era tão tóxica. Essa questão é muito tênue, não é a causa de tudo isso.

 
Quando perguntado que muda em sua busca pela verdade essa lei que diz não ter conhecimento, (não) responde: 

Nada. Isso não me diz nada. Se me disserem na investigação que sabiam na Prefeitura, muda o caso. Nem o prefeito conhecia a lei, há milhares de leis. Seria humanamente impossível alguém na Prefeitura saber dessa lei. Ai é querer demais que os governantes conheçam todas as leis e a da espuma.


Questionado se a sociedade pode ser culpada pela tragédia e o Poder Público não, por desconhecer as leis, o constrangimento ficou claro e o sr. Ogier, muito bem articulado, já buscava as palavras com certa dificuldade, atropelava-as, pensava para responder e diz isto:

"Isso não é relevante", voltando a afirmar que ninguém conhecia a Lei 3301/91. Perguntado se acredita que algum funcionário da Prefeitura diga que conhecia essa lei, (não) responde: "Não tenho bola de cristal".

O sr. Ogier chegou a mentir contra um dos mortos na Kiss, a fim de culpar a sociedade e livrar a administração municipal de responsabilidades: alegou que Walter Mello Cabistani trabalhava na Kiss, "e portanto, por que nunca denunciou irregularidades na boate?"

Perguntado do porquê de a espuma seguir sendo utilizada em Santa Maria ainda hoje, sem que a então Prefeitura de Santa Maria tenha sido punida, afirma que:

O inquérito não terminou ainda, se imputarem culpa à Prefeitura, direi, "tudo bem", e aceitarei. Serei o primeiro a ir à Imprensa e reconhecer...

 

Justiça: 'Cala-Te, Boca!'

  

Questionado se a Justiça determinar que ninguém conhecia a lei, a nível federal, estadual e municipal, e que, portanto, ninguém é culpado por desconhecê-la, se o sr. Ogier aceitaria esta decisão, o coordenador de Eventos da confiança do prefeito disse, para se contradizer ainda mais perante a irredutibilidade inicial com os governos estadual e federal em relação à espuma, e perante as próprias palavras abaixo:

Sim, aceitarei. Acredito na Justiça brasileira, e o dia que não acreditar vou embora daqui. A Justiça é falha, há leis falhas.


Rebatemos questionando que se a Justiça é falha, por que aceitaria uma decisão assim, absolvendo a todos na questão da espuma que havia afirmado ter matado seu filho, responde assim: "Por que não é minha justiça, é a que se tem e não cabe a mim, que vou fazer?".

Quando se fala em responsabilidades e em justiça, o desconforto e o espírito reacionário entre funcionários da ex-Prefeitura é notável. 

Perguntamos ao prefeito Cezar Schirmer quem havia errado para que ocorresse a tragédia, e ele (não) responde: 

Não farei pré-julgamento, não é meu papel. Quem vai decidir é a Justiça. Uma tragédia dessa dimensão sempre deixa um legado, tanto que o governo estadual e federal estão discutindo a aprovação de novas leis, e fechar lacunas. É daqui prá frente; tomara que não ocorra mais, et cetera e tal. Onde pode ter havido falha? Tem que ser amparado na lei, não pode ser por motivos políticos.


Perguntado como se dá esse suposto jogo político contra a Prefeitura á época da tragédia, não quer responder publicamente.

Nas diversas vezes que questionamos o prefeito Schirmer sobre quem teria permitido a tragédia, a única alegação que retorna passa por isto:

A Justiça julga, não eu. Queremos justiça. Mas não pode ser, "não gosto de fulano, não gosto de beltrano".


Perguntado como colabora com a Justiça a fim de encontrar a verdade, o ex-prefeito responde:

Comparecendo para depor, quando chamado.


Levamos essa resposta ao delegado, dr. Sandro Meinerz, quem responde sem rodeios:

Se não comparecesse para depor quando intimado, o prefeito seria preso.


A superintendente municipal de Assistência Social à época, Ione Lemos, questionou a esta reportagem não muito animada com a reabertura do inquérito em 2014:

O que vai mudar com a reabertura do inquérito? Será que vai trazer justiça?


Esses argumentos são idênticos aos do dr. Jader Marques, advogado do sr. Elissandro Spohr, um dos sócios da Kiss acusado de homicídio doloso pela Polícia - advogado que tem se recusado a conceder entrevistas aos veículos de comunicação em geral mas, a exemplo do ex-prefeito de Santa Maria, abre exceção e dispõe-se a conversar horas com esta reportagem, de maneira extremamente solícita -, contestando a ansiedade (para dizer o mínimo) de familiares de vítimas por justiça:

Independente da decisão judicial, a dor continuará.


Nossa resposta imediata ao dr. Marques, que vale a todos os membros da ex-Pefeitura santamariense e a todos os muitos setores retrógrados deste país, vale ser registrada aqui: para pessoas na posição de vítima, omissão e injustiça causam efeito reverso não cicatrizando feridas, e intensificando a dor. Além, é claro, de não prevenir novas tragédias.

A Espuma na Kiss


Segundo o dr. Jader Marques alega a esta reportagem, menos de 50% dos óbitos se deram por cianeto, consequência, segundo ele, da pouca quantidade da espuma no estabelecimento de seu cliente: 

A maioria das mortes se deu por intoxicação natural com fumaça de fogo, o monóxido de carbono. A quantidade de espuma da casa não seria capaz de gerar intoxicação a ponto de matar. Havia [espuma] apenas sobre o palco, nas laterais e ao fundo da casa. Houve precipitação da autoridade policial em alegar que a espuma foi responsável pelas mortes. Posteriormente, os laudos confirmaram isso.


Posteriormente, são apresentadas ao advogado do sr. Spohr versões completamente diversas a esta reportagem: afirmações feitas com exclusividade por parte da dra. Solange Garcia, toxicologista do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, quem socorreu diretamente diversos sobreviventes na capital gaúcha, e por parte do delegado de Santa Maria, dr. Sandro Meinerz que investiga a tragédia. Diante disso, o dr. Marques muda a versão em suas observações: de menos de 50% de mortes por cianeto, para apenas 50%.

A dra. Solange diz:

É mentira do Jader que a minoria foi contaminada por cianeto: A Polícia Federal afirmou que as 242 vítimas morreram por cianeto através de exames. É impossível apenas monóxido de carbono matar tão rapidamente, apenas cianeto mata desta maneira: entra nas células e impede a passagem de oxigênio.

Quando a intoxicação se dá apenas por monóxido de carbono, administra-se e em uma e meia o indivíduo se restabelece, os níveis sanguíneos retornam.

Quando se aplica oxigênio e não há restabelecimento mas o indivíduo permanece em estado de coma, há outro agente envolvido: cianeto. Enquanto não se conseguir antídoto, não haverá solução.


O dr. Meinerz - quem trabalha com o delegado, dr. Marcelo Arigony, incansável e exemplarmente sobre a tragédia, fato reconhecido por familiares de vítimas, sobreviventes e pelos mais diversos moradores de Santa Maria - enviou a esta reportagem, com exclusividade, a necrópsia de Fernando Pellin, uma das 242 vítimas do incêndio na boate Kiss, atestando a morte por cianeto o que, segundo os laudos médicos, representa todas as outras 241 mortes, e ainda afirma que:

Laudos da micropsia atestam a tese de duplo fator que ocasionou as 242 mortes: monóxido de carbono com cianeto [aquele, sempre liberado com este]. A cinergia das duas substâncias levou a óbito.

Com uma saída de ar apenas, tudo o que saía se dirigia ao fundo da casa, a porta onde havia troca de ar. O exaustor da boate havia sido fechado para evitar ruído [motivo de reclamações da vizinhança]. A reforma obstruiu o exaustor, e a saída de ar quando houve a queima.

Os laudos do Departamento Médico Legal, somados aos depoimentos de sobreviventes e de bombeiros junto do quadro encontrado pelos corpos, aponta morte semelhante à apneia. 

Todos que relatam desmaio, afirmam o seguinte: "Na segunda vez que respirei, caí". É unânime essa afirmação. Todos foram mortos por cianeto com monóxido de carbono.

Uma coisa é médico examinar um cadáver, outra é vários fazerem isso e todos dentro de um mesmo contexto, em cima de exames laboratoriais. O sangue das vítimas continha grande quantidade de cianeto.

O Jader está tentando desqualificar a questão. A espuma funciona como grande alastradora de fogo em velocidade imensa, além de liberadora de cianeto. Aquela espuma deveria funcionar como colchão.


Este é um grande motivo de indignação por parte dos familiares das vítimas contra o dr. Marques, conforme apontou o sr. Sérgio da Silva, professor de Pedagogia da UFSM, presidente da AVTSM e pai de Augusto Sergio Krauspenhar da Silva, estudante de Filosofia na UFSM e Direito no Centro Universitário Franciscano (UNIFRA), uma das 242 vítimas fatais da Kiss

Um advogado não precisa mentir para defender seu cliente, como faz o Jader.


Desencontros de ideias e de informações, a esta reportagem, a outras e até à Polícia e à Justiça, realmente ocorreu por vezes em sua defesa do sr. Elissandro Spohr, conforme veremos nesta publicação, e mais adiante nesta série de reportagens.

A versão do advogado de um dos sócios da Kiss fora desmentida também por seguranças ouvidos por esta reportagem, que afirmaram que a espuma tomava grande parte da boate em acordo com o que atestou o dr. Luiz Fernando Smaniotto, advogado da AVTSM: "Havia na casa 97 metros cúbicos da espuma distribuídos em 110 metros quadrados da boate", o que, segundo o dr. Smaniotto, representa muita coisa - tese reforçada simplesmente pelos fatos e pelos laudos médicos, o que abordaremos com mais detalhes em uma próxima reportagem. 

Sobre o exaustor e ausência de janela na boate Kiss, o dr. Smaniotto aponta:

Os sócios da Kiss haviam fechado is exaustores externos pelo ruído, havia talvez oito, ficaram apenas duas, e nem janela havia. Era uma tragédia anunciada.

 

Cantegril

  

O dr. Smaniotto observa ainda que a espuma vendida pela fabricante e importadora Cantegril, da cidade de Viamão (RS), à loja Colchões & Cia de Santa Maria, e desta à Kiss era importada: "Preços baixos indicam importação. De onde veio a espuma?".


Procurado por esta reportagem, o químico da Cantegril confirmou que a totalidade ou parte da espuma realmente contém material importado, sem saber especificar a origem.

Se esses componentes importados que a empresa de Viamão utilizou na confecção de espuma foram verificados e autorizados pela Anvisa, esta concedeu um número da autorização para utilização do produto. Contudo, nada disso nem a Cantegril nem a Anvisa nos explicou.

O dr. Émerson Ronei Alvarenga, 42, químico da Cantegril, perguntado se deveria vir informado junto da espuma que a queima do poliuretano libera cianeto, diz que:

Não sei responder, pois não sou do Código de Defesa do Consumidor. O departamento comercial [quem nos encaminhara a ele, e já havia sido perguntado por isso outras coisas] é apto a responder isso.


O dr. Alvarenga compara, a fim de se justificar e de justificar os que lhe pagam o salário:

O açúcar é cancerígeno, mas os fabricantes não informam que ele contém aspartame que causa câncer, do contrário ninguém consumiria. O mesmo se dá no caso dos transgênicos.


Questionado, não sabe dizer se existe antídoto no Brasil e afirma nem pode dizer essas coisas. É perguntado como um químico não tem conhecimento disso, ao que alega não ser questão de sua alçada. E aponta:

Não é cianeto liberado a partir da espuma de poliuretano, ela não libera cianeto,  até porque o pior de todos é o monóxido de carbono através da queima.


Quando perguntado sobre a quantidade de monóxido de carbono suficiente para matar um indivíduo, diz que teria que calcular.

Perguntado por que não se desenvolve material que não seja danoso à vida humana, "não sei dizer". É questionado como um químico não tem conhecimento disso, ao que responde afirmando não possuir tanta experiência, e "nem tudo de memória".

Perguntado sobre a Ficha de Informações de Segurança de Produtos Químicos (FISPQ) nas embalagens da espuma de poliuretano, diz não ter conhecimento de como os materiais informam isso. Perguntado se a comercialização do produto é autorizada pelo Conselho Regional de Química, não sabe responder já visivelmente desconfortável com os questionamentos, mas sempre muito gentil. Perguntado se vendem o colchão à cidade de Santa Maria, não sabe dizer (já com certa dificuldade em falar, devido a um claro nervosismo).

Sobre as desinformações e desconversas do químico da fabricante e importadora da espuma da morte, quem ao final recomendou, novamente, procurar outro setor da empresa, o dr. Meinerz afirma:

Não acredito que um químico não saiba que a espuma libera cianeto. Primeiro porque se trata de questão técnica para um profissional da área; segundo pelo que ocorreu na Kiss: o mínimo que se esperaria de um químico, seria fazer uma análise de seu produto. Teria testado a fim de contradizer as alegações de que o que fabrica e comercializa levou tantas vidas a óbito. Quertirar sua responsabilidade, e a da empresa. Há interesses econômicos envolvidos. Tal postura demonstra a 'seriedade' da fiscalização e da cobrança que predomina neste país.

 

Se você fosse químico, vamos supor que não tão qualificado como ele tenta se colocar, e ocorre um caso da magnitude do incêndio na boate Kiss, queimaria as substâncias contidas na espuma.

 

Já se sabia com antecedência que a espuma libera cianeto se queimada. Tenho informação que a Cantegril já sabia disso. O vendedor da loja de Santa Maria apresentou notas da Cantegril.


O jurista da importadora e fabricante da espuma em questão, dr. Cezar Peres, acaba procurando esta reportagem pouco depois para dizer que:

Outras quatro empresas comercializam a espuma de poliuretano à Colchões & Cia, que revendeu à Kiss. Portanto, não se sabe qual a origem exata do produto queimado na boate.


Afirma também que:

É uma ignorância aplicar culpa à comercialização da espuma de poliuretano: ela está em todos os colchões, em todos os locais e não libera cianeto, mas sim monóxido de carbono.


O próprio dr. Meinerz enviaria pouco depois, com exclusividade a esta reportagem, as notas da Cantegril e da Colchões & Cia, desmentindo ao dr. Peres, afirmando que a loja santa-mariense adquiria o produto apenas da Cantegril [veja-as aqui (role a tela)].

O jurista da Cantegril ainda justificou o fato de as embalagens da espuma de poliuretano não informarem que, uma vez queimado, o produto libera gás cianeto, exemplificando o caso de que "os que comercializam gasolina não advertem para que não a tomem. Vendemos espuma não fogo junto dela", alegando com isso que a queima do produto não é de responsabilidade da empresa.

Segundo o dr. Smaniotto, a FISPQ deve prever a liberação de cianeto da espuma no caso da queima, contra-exemplificando que "venenos contra formiga contêm a advertência de que, uma vez ingerido, matam".

Anvisa e Inmetro: Nada com Isso


Procurada por telefone, a ANVISA responde através de sua assessoria de Imprensa, mais especificamente pelo jornalista Carlos Moura:

As responsabilidades desta agência são: medicamento, cosmético, produtos para a saúde, ou seja, equipamentos médicos,  e saneantes: limpeza em geral, tais como inseticidas. A responsabilidade pela espuma de poliuretano talvez seja do Inmetro.


Procurado também por telefone, o Inmetro tardou um pouco mas respondeu que:

A espuma de poliuretano não é um produto regulamentado. A Lei 9.933, que rege as atividades do Instituto,  lhe confere competência legal para regulamentar as etapas de fabricação e comercialização. 

 

Portanto, sem regulamentação, o Inmetro não possui competência para fiscalizar atividades como a importação deste  produto, tampouco sua utilização em qualquer tipo de estabelecimento, sejam eles comerciais ou não, cabendo esta responsabilidade às autoridades estaduais e municipais - Corpo de Bombeiros, Prefeituras, entre outras.


Tal reposta vem de encontro com uma observação providencial do dr. Smaniotto:

A Cantegril não informa em seu sítio na Internet a comercialização da espuma de poliuretano para isolamento [a que revestia amplamente o teto da Kiss], entre os produtos expostos em imagens ali.


A resposta do Inmetro coloca mais responsabilidade ainda sobre o governo federal, quem deveria regulamentar e fiscalizar a comercialização do produto. E deixa bem claro: ninguém responde pelo produto, generalizadamente utilizado em casas noturnas no Brasil, que causou o incêndio mais mortal da história do País. É fácil a vida de vítimas e de seus familiares no país do imponderável? 

Enfim, como nem o governo federal assume suas responsabilidades, talvez o sr. Ogier e os mais diversos setores reacionários deste país tenham razão: a culpa é da sociedade. Tudo assinado embaixo pelo Ministério Público de Santa Maria, que acabou absolvendo a todos os criminosos envolvidos na tragédia, e ainda processou quatro pais de vítimas por "calúnia e difamação": os pais, pertencentes à AVTSM, entre eles o sr. Sérgio da Silva, alegam que o MP tinha pleno conhecimento de que a Kiss não poderia funcionar em seus cerca de quatro anos de atividades noturnas, sem nunca ter sido capaz de reunir todos os alvarás de funcionamento - em determinados momentos, como aponta o dr. Smaniotto e é fato comprovado, funcionou sem nenhum dos alvarás. Mas nada disso importa aos órgãos públicos, defensores dos interesses do podre Estado brasileiro e corporativos do alto empresariado brasileiro. O Estado contra o cidadão, velho filme.

Shows Pirotécnicos


Segundo o inquérito policial baseado nos depoimentos dos componentes da banda Gurizada Fandangueira, que mudaram os discursos na 1ª Delegacia santa-mariense, do gerente da loja Kaboom que frequentemente vendia os fogos de artifício SputnikSkib e Chuva de Prata à referida banda, de sobreviventes da tragédia que frequentavam a Kiss e acompanhavam as apresentações da Gurizada em outros locais, e de funcionários da boate, era constante o uso de fogos na boate e fora dela pela banda em questão.

Menos de uma semana antes da tragédia na, a 21/1/2013 a mesma banda se apresentara com o mesmo show pirotécnico na casa noturna Absinto Hall, de propriedade do sr. Mauro Hoffmann, sócio do sr. Spohr na Kiss, segundo a investigação policial que ainda constatou que o próprio sr. Spohr incentivava e orientava que a Gurizada estendesse a duração da apresentação com fogos, por ser, segundo um dos proprietários da boate da morte, o clímax das atividades noturnas.

A própria banda Projeto Pantana, do sr. Elissandro Spohr, costumava apresentar-se na Kiss fazendo uso de tais fogos, além de organizar festas e permitir que terceiros fizessem isso com fogos de artifício, "conforme farta prova testemunhal carreada aos autos" segundo a investigação policial, para a qual também depuseram, neste sentido, componentes da Pantana e altos funcionários da Kiss próximos do sr. Spohr, que inclui uma familiar sua.

Afirma o dr. Meinerz:

Em gravação de clip da banda Pantana observa-se o uso de fogos. A mesma banda fez uso de fogos em todos o seus outros shows, segundo todos os presentes. As pessoas diziam que gostavam de fogos. A Gurizada Fandangueira disse que Elissandro havia dito que deveria estender o show pirotécnico, pois era o clímax, o público gostava. Era do conhecimento do proprietário da boate, e recomendado por ele.


Segundo o inquérito, os músicos da Gurizada não possuíam o menor treinamento para manusear o fogo, eram negligentes quanto às advertências para uso contidas na embalagem embora possuísse certo conhecimento sobre o produto, e o mais grave: os músicos compraram fogos para uso externo, devido ao valor inferior. 

Como eram clientes da Kaboom, o vendedor os advertiu propondo baixar o preço dos fogos de uso interno, que não apresentavam risco de incêndio, de R$ 75 para R$ 50. Mas os músicos optaram mesmo pelos de uso externo, que custavam apenas R$ 2,50.

Sobre isto, pontua o dr. Meinerz:

Os integrantes da banda pensaram apenas no preço, no lucr,o sabendo dos riscos que envolviam tanta gente, o que é crime doloso.


O delegado Arigony, muito respeitado pelos familiares de vítimas e sobreviventes da tragédia, publicou fotos de locação de festa à tarde da empresa Fuel na Kiss, exibindo uma mesa armada com bebidas usando spray de fogo.

Em conversa com esta reportagem, o dr. Jader Marques pede cuidado com vídeos que têm sido exibidos, especialmente da empresa Fuel para publicidade desta:

Não se deu em hora de funcionamento da boate Kiss, a qual nunca contratou a Fuel. Esta nunca fez show pirotécnicona boate. Havia muita vela usada para produzir esse material. Não era em hora de festa da Kiss. A denúncia foi feita [pelo dr. Arigony] para fazer as pessoas acreditarem que o Elissandro assumiu responsabilidade pelo fogo.

Assim como as velas no champagne em festas promovidas pela Kiss, há mil festas no mundo, além do mais há em sua embalagem aviso de que pode ser usada em local fechado.


Grande crítico do inquérito policial e do julgamento, por não incluir diversos funcionários públicos, o dr. Marques afirma que:

O máximo que houve foi culpa por previsão de risco de pegar fogo, enquanto delegados e promotores defendem a tese de dolo eventual.


Perguntado sobre o mínimo que houve em termos de culpa por parte de seu cliente, desconversa e diz:

O Meinerz e toda aquela turma fazem jogo político, não jurídico. O Ministério Público [de Santa Maria] e a Polícia criam uma forma de acusação errada, mas politicamente mais justa.


O dr. Jader Marques, quem serve de testemunha a favor de pais diante das acusações do MP, reclama com esta reportagem que membros do MP e diversos funcionários da Prefeitura de Santa Maria deveriam ser chamados pela Justiça e condenados, já que seu cliente seguiu determinações destes. Para ele, a ausência de funcionários públicos enfraqueceu o julgamento do incêndio na Kiss. Essa ideia é defendida inclusive por familiares de vítimas e sobreviventes da tragédia, o que lhes tem valido inclusive muitos protestos (por exemplo, aqueles em frente ao MP mencionados por Carina Correa).

Vale apenas registrar que a Polícia de Santa Maria que investiga o caso não tem se omitido de responsabilizar e pressionar pela condenação de todos os envolvidos, inclusive os funcionários da Prefeitura conforme pode ser lido no Relatório Definitivo sobre o Incêndio na Kiss, e como evidenciam até as circunstâncias atuais envolvendo a conclusão do novo inquérito. Cabe à Justiça determinar quem deve depor, uma vez executados os inquéritos policiais.

Sobre as acusações do dr. Marques, o dr. Meinerz respondeu:

A postura do Jader é de advogado cujas teses são frágeis, não se sustentam, de quem tenta defender o indefensável, por isso apela para argumentos vazios e de ataques, como faz desde o início. Existe muito dinheiro envolvido nisso.


Esta reportagem recebeu a informação do professor Cabistani de que o pai do sr. Spohr pagou, através do cartão VISA, uma prestação que gira em torno de R$ 1,5 milhão ao dr. Jader Marques para a defesa do filho, pendente de pagar outra prestação do mesmo valor. Ainda segundo o sr. Cabistani, tal informação é algo bem sabido em Santa Maria, cidade também do sr. Spohr e de sua família.

(Ir) Responsabilidades

 

"A presença de material de fácil combustão (espuma de poliuretano) aderido ao duto de ar condicionado e ao forno, cujas placas não exibem uma perfeita justaposição entre si,apresentavam espaçamentos (frestas) entre as peças, permitindo o alojamento do corpo ignescente que deu gênese ao fogo". Relatório Definitivo da Polícia Civil de Santa Maria sobre as causas do incêndio na Kiss/março de 2013.


Para a Prefeitura de Santa Maria, conforme abordado mais acima, a espuma que contraria a Lei Municipal 3301/1991 foi colocada no segundo semestre de 2012 sem seu consentimento, e após a fiscalização municipal anual o que, segundo o prefeito Schirmer, isenta sua administração de toda e qualquer responsabilidade: "O proprietário da Kiss colocou a espuma à sua revelia, parece, não sei, mas a Prefeitura jamais foi informada de sua colocação, cumpriu todos os requisitos legais, e nunca recebeu nenhuma denúncia.

O dr. Marques, por sua vez, afirma que:

A colocação deste material foi feita por indicação de inquérito especializado, do engenheiro [Miguel] Pedroso e do arquiteto Samir [Samara. Ambos os profissionais, contratados pela Kiss, negam tal fato, e em seus trabalhos em outros locais nunca fizeram tal recomendação]. 

Outras boates em todo o Brasil possuem o mesmo produto. O promotor de Justiça de Santa Maria, Ricardo Loza, fotografou a boate; ele tinha toda a documentação e recomendou a aplicação da espuma. É um raciocínio distorcido sobre a espuma: sua inflamabilidade não a torna combustível. A lei está sendo mal interpretada. Isso é fundamental: quem sabia disso antes? A Anvisa sabia? O Fórum sabia dessa espuma?


Segundo o inquérito policial, o sr. Spohr, quem realmente havia contratado ambos os especialistas para orientações em determinadas reformas na boate, decidiu pela espuma sozinho. E ambos negam veementemente tal recomendação. Eles haviam auxiliado projetos arquitetônicos referentes a obras na boate em 16/11/2011, sem contemplar tal espuma de isolamento acústico. 

O sr. Spohr, segundo depoimentos de funcionários à Polícia, "usou cola de sapateiro de nome Cascola. A ordem e a disponibilização do material foram feitas todas por Elissandro [Spohr]. O sr. Elissandro foi orientado por seu advogado a não se pronunciar à Polícia após o primeiro depoimento, logo após a tragédia, sobre a colocação da espuma.

 

Porém, depoimentos de ex-funcionários da boate somados a notas fiscais da aquisição do produto, apontam que no final de 2011 elas começaram a ser instaladas na Kiss (sempre, de acordo com o Inquérito Policial, por livre, espontânea e irresponsável vontade de Spohr).

 

Tais evidências envolvendo datas jogam importante luz às responsabilidades pelo incêndio inclusive no que diz respeito à fiscalização, conforme será abordado em uma próxima reportagem sobre a liberação de alvarás.

O Relatório Definitivo declara que o sr. Spohr confirmou à Polícia ter sido responsável pela instalação da espuma, sem nenhuma recomendação de engenheiro nem de arquiteto.

Reformas indevidas foram realizadas no interior da Kiss, sem acompanhamento de responsável técnico, inclusive a colocação da espuma combustível no teto localizado acima do palco.


Era prática comum do sr. Elissandro Spohr antecipar-se a especialistas, e fazer reformas e modificações à sua maneira na boate, segundo as investigações policiais. Relatando que o engenheiro Pedroso tenha negado a indicação da espuma para isolamento acústico, pois segundo ele sequer tinham tal finalidade, o Relatório Definitivo policial afirma que:

Tal fato poderia ter sido melhor elucidado se Elissandro tivesse prestado um segundo depoimento, ao que se negou em virtude de estratégia de sua própria defesa.


A dra. Solange Garcia afirma em conversa com esta reportagem que "as pessoas que colocaram a espuma foram gananciosas", enquanto o dr. Smaniotto questiona: "Quem confiou ou mandou confiar no engenheiro Pedroso? Ele foi contratado pela Kiss, e a Prefeitura e os Bombeiros nada fizeram".

Alegando que "todos os colchões possuem o poliuretano", o dr. Marques questiona insinuando desconhecer a Lei Municipal 3301/1991 de Santa Maria:

Onde consta que este material é proibido? Qual a capacidade de saber que isso era proibido? Há locais que ainda hoje mantêm a espuma. Qual regra impede isso? A presidente Dilma pediu um estudo sobre sua utilização.


Procurado sobre isto, o advogado Luiz Fernando Smaniotto afirma que:

O Ministério Público (MP) avocou a responsabilidade pelo barulho; abriram um inquérito pelo barulho. Permitiram uma emenda para abafar ruído e, assim, colocaram a espuma sob ciência do MP. As esferas municipal e estadual trabalharam juntas, de maneira catastrófica.


O dr. Smaniotto pleiteia por uma lei de reparação, a exemplo do que ocorre na capital argentina de Buenos Aires após o incêndio na boate República Cromañón em 30 de dezembro de 2004 (causas e consequências idênticas às da Kiss), através do qual o Estado prestando assistência para o resto da vida a familiares de vítimas e sobreviventes com sequelas.

O advogado Antoniel Bispo, de São Paulo, foi procurado por esta reportagem para analisar tal questão, declarando que:

Se existe uma lei municipal que proíbe o uso do material que revestia o teto da casa noturna, esta lei é plenamente válida e era obrigação da fiscalização municipal verificar o cumprimento desta lei. A lei municipal de Santa Maria, que proíbe o uso da espuma de poliuretano, deve ser cumprida e a fiscalização era de responsabilidade do Município, pois lei sem fiscalização e sem penalidade é uma lei vazia. Toda lei que estabelece regras e proibições deve prever também a penalidade. E se não houver fiscalização, certamente não haverá penalização ou sanção.


Na Argentina, os culpados foram punidos: músicos, os donos da boate, fiscais municipais e o então prefeito, que se safou por lobby mas teve a carreira política arruinada.

Para o dr. Smaniotto, assim como para o professor Cabistani, para o ex-presidente e o atual da AVTSM, srs. Adherbal Ferreira e Sérgio Silva respectivamente, respectivamente, as três esferas governamentais são culpadas, e devem ser responsabilizadas. 

"Não há políticas de prevenção de catástrofes para este material", pontuou o dr. Smaniotto. Para reivindicar essas políticas além de Lei de Reparação, os quatro foram com a dra. Solange Garcia ao Senado em dezembro, recebidos pelo senador Paulo Paim (PT-RS).

Uma pergunta inevitável que se coloca, quanto ao proprietário da Kiss, sr. Spohr: de onde tirava tanta liberdade para fazer os ajustes que bem entendia em seu estabelecimento, ao que tudo indica sem a menor preocupação com fiscalização?

Existem indícios, dentro do relatado até aqui e do que há de ser reportado nas próximas semanas com base em depoimentos exclusivos, de que a (ausência) de fiscalização objetiva e a certeza de que essa fiscalização jamais seria efetiva, portanto jamais o incomodaria (por alguma razão que a Polícia está investigando, e concluirá o Novo Inquérito em fevereiro), davam sinal verde para que os sócios da Kiss fizessem o que bem entendessem em sua propriedade. Tudo isso a ser esmiuçado nesta série de reportagens.

Tragicamente fundamental, fundamentalmente trágico


Quanto a todos os lados irresponsáveis envolvidos na tragédia, desde a Prefeitura Municipal de Santa Maria até o então governo federal que até hoje não apresentaram respostas minimamente satisfatórias à sociedade (nem sequer teóricas, quanto mais práticas), se não forem todos devidamente punidos, o que nada indica que será feito pela "Justiça", novas tragédias ocorrerão. Isso o Brasil precisa entender. 

Se a perda de 242 vidas, e daquela maneira não são suficientes para mobilizações populares, eis aí um bom motivo, tão trágico quanto fundamental para se lembrar de Santa Maria hoje e sempre, enquanto vidas de familiares de vítimas e de sobreviventes naquela cidade estão fundamentalmente trágicas até o presente sem memória, sem verdade e sem justiça no país da indiferença, do caminho sempre mais fácil a fim também de anestesiar a própria consciência.

 

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Author`s name Timothy Bancroft-Hinchey