A Anistia Internacional enviou carta aberta a Presidenta Dilma onde expressa sua indignação com os constantes ataques, ameaças de despejos, assassinatos e outras graves violações dos Direitos dos Guarani-Kaiowá. Ressalta também forte preocupação com a PEC 215 e demanda que o Brasil cumpra com suas obrigações Constitucionais e com seus compromissos firmados em Convenções internacionais sobre direitos dos Povos Indígenas.
Excelentíssima Senhora Presidenta,
A Anistia Internacional está preocupada com as violações dos direitos humanos dos povos indígenas Guarani-Kaiowá. Há décadas, essas comunidades não conseguem ter acesso a suas terras ancestrais e concluir o processo de demarcação de terras, tal como estabelecido na Constituição. Em consequência, as comunidades são ainda mais discriminadas e impedidas de acessar serviços essenciais. Além disso, ataques contra defensores dos direitos humanos e líderes comunitários têm sido documentados com frequência, e todos esses crimes permanecem impunes.
Demarcação e restituição de terras
A Constituição de 1988 afirma que as terras de todos os povos indígenas devem ser demarcadas e homologadas dentro de um prazo de cinco anos. Essa disposição e os mecanismos resultantes de demarcação e homologação foram elogiados pelo Relator Especial da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas em seu relatório de 2009, o qual afirma que o "Brasil criou um modelo exemplar para assegurar os direitos à terra dos povos indígenas, com o qual outros países têm muito que aprender". Tal disposição fornece a base para que o Brasil cumpra com suas obrigações de reconhecer os direitos dos povos indígenas à terra, de acordo com a Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2002, com a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas e com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
No entanto, a esperança que essa disposição constitucional representou, criando a possibilidade de que os povos indígenas pudessem resgatar sua dignidade, exercer plenamente seus direitos humanos, viver com paz e prosperidade em suas terras ancestrais, assim como praticar suas crenças espirituais, não se realizou.
No Mato Grosso do Sul existem, pelo menos, 41 Tekohas (território tradicional) dos Guarani-Kaiowá e Guarani-Ñandeva, com procedimentos administrativos de demarcação em diferentes estágios de conclusão. Entretanto, 22 anos depois de expirar o prazo estabelecido pela Constituição, sequer uma única comunidade conseguiu reaver seu território tradicional. Nos casos em que agricultores não indígenas demandaram judicialmente, conseguindo paralisar os procedimentos demarcatórios, cabe reafirmar que estes foram sucessivamente derrubados em instâncias superiores, permitindo ao Poder Executivo avançar constitucionalmente com os estágios demarcatórios.
Em alguns casos, os tribunais emitiram ordens de despejo apesar das terras terem sido identificadas pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) como pertencentes à comunidade, permitindo que os fazendeiros entrassem nas terras e as cultivassem. Como a Anistia Internacional afirmou em seu relatório de 2010: conhecemos nossos direitos e vamos batalhar por eles. "Os danos provocados por empreendimentos agroindustriais nas terras tradicionais dos indígenas do Mato Grosso do Sul são motivo de grande preocupação. A redução da produtividade futura da terra compromete a capacidade dos índios de sustentar seu modo de vida quando conseguirem retornar a essa terra". Por outro lado, os povos indígenas, cansados do lento processo judicial para a restituição de suas terras, decidiram reocupá-las (em ações denominadas retomadas) e têm sido submetidos a diversas formas de violência, inclusive assassinatos.
A Anistia Internacional também se preocupa seriamente com a PEC 215, uma Proposta de Emenda Constitucional que pretende transferir do Poder Executivo (FUNAI - MJ) para o Poder Legislativo (Congresso Nacional) o poder decisório sobre a demarcação e a homologação das terras indígenas. A propriedade da terra é uma questão de direitos e prerrogativas jurídicas subordinadas ao direito nacional e internacional. A Anistia Internacional se preocupa que considerações com motivações políticas que ignoram as obrigações do Brasil frente do Direito Internacional possam ter consequências negativas para os povos indígenas, violando ainda mais seus direitos.
Ataques contra defensores dos direitos humanos e líderes comunitários
Um grande número de ataques violentos tem sido perpetrado contra as comunidades Guarani-Kaiowá e Guarani-Ñandeva, principalmente as que se envolveram na reocupação pacífica de suas terras. Relacionamos a seguir três exemplos de defensores dos direitos humanos dos Guarani-Kaiowá que foram atacados e assassinados recentemente.
Marcos Verón, Cacique da comunidade Takuara, liderou um pequeno grupo de índios na retomada de sua terra no município de Juti, Mato Grosso do Sul, e foi assassinado em 2003. Ele foi baleado e espancado até a morte, supostamente por um grupo formado por empregados de fazendas locais e matadores de aluguel. Até hoje, ninguém foi devidamente condenado por esse crime.
...suspenderam os efeitos da homologação e emitiram uma ordem de despejo em favor dos demandantes não indígenas. Em agosto passado, os indígenas de Ñanderu Marangatú decidiram reocupar suas terras. Vilhalva foi morto com um tiro no rosto, supostamente por um pistoleiro contratado pelos fazendeiros. A Anistia Internacional publicou uma denúncia sobre o ataque. Ninguém ainda foi preso por esse crime.
Viver com Dignidade
O índice de suicídio entre os Guarani-Kaiowá é 34 vezes maior do que a média do Brasil e um dos mais altos do mundo. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) documentou os assassinatos de 41 indígenas no Mato Grosso do Sul em 2014.
As comunidades que são expulsas de suas terras ancestrais não conseguem mais realizar suas práticas culturais e espirituais, que são ligadas de modo inseparável a essas terras. Na maioria dos casos, as comunidades estão tendo que viver em porções de terra muito pequenas, insuficientes para permitir sua subsistência, algumas inclusive às margens de rodovias. A situação de desespero fez com que o consumo de álcool aumentasse entre membros da comunidade. Muitas vezes, os índios têm que percorrer grandes distâncias para trabalhar em fazendas, onde às vezes são mantidos em condições consideradas pelas autoridades brasileiras como análogas à escravidão.
Para enfrentar essas ameaças contra suas vidas, os Guarani-Kaiowá estão fortalecendo suas formas de resistência não violenta, tanto em nível local quanto nacional, junto com vários povos indígenas de outras regiões do Brasil. As mobilizações nacionais e as iniciativas de ativismo dos povos indígenas visam a impedir a PEC 215 e outras propostas legislativas que possam prejudicar os direitos dos índios. No Mato Grosso do Sul, os Guarani-Kaiowá estão resistindo às tentativas de despejo. O Brasil tem a obrigação de respeitar e proteger o direito dos povos indígenas de participarem de protestos não violentos para promover seus direitos.
A fim de garantir que o Brasil cumpra com suas obrigações em virtude do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), bem como garantir a todas as pessoas, sem discriminação, os direitos consagrados nesses instrumentos, inclusive o direito à saúde e à educação, é essencial que os povos Guarani-Kaiowá tenham suas terras demarcadas e entregues a eles, de modo que possam realizar seus modos de vida e suas práticas culturais e espirituais com dignidade.
Excelentíssima Senhora Presidenta,
O relator especial da ONU sobre os direitos dos povos indígenas, em seu relatório de 2009, publicado após sua visita ao Brasil, afirmou que "Tensões entre indígenas e ocupantes não indígenas têm se mostrado especialmente críticas no estado do Mato Grosso do Sul, onde os povos indígenas sofrem uma severa falta de acesso a suas terras tradicionais, pobreza extrema e dificuldades sociais relacionadas; ocasionando um padrão de violência marcado por inúmeros homicídios de indígenas, bem como pela criminalização dos indígenas por ações de protesto".
Infelizmente, nos últimos seis anos, a situação não melhorou; na verdade, aumentou o desespero das comunidades indígenas que habitam essa área, vivendo em condições de extremo confinamento, geralmente em lugares perigosos que expõem suas vidas a sérios riscos e sob constante ameaça de ataques e agressões por parte de atores não estatais. A Anistia Internacional exorta Vossa Excelência a fazer tudo o que for necessário para garantir que o Brasil cumpra com suas obrigações de direitos humanos, sobretudo:
Atenciosamente,
Atila Roque
Diretor Executivo
Anistia Internacional Brasil
Cc:
Ministro da Justiça Exmo. Sr. José Eduardo Cardozo
Governador do Mato Grosso do Sul Exmo Sr. Reinaldo Azambuja
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