José Ribamar Bessa Freire*
Um exército de escribas invadiu, nessa semana, os espaços dos jornais de circulação nacional, pontificando sobre a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, numa campanha orquestrada para influenciar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). O que eles querem, afinal? O mesmo que os bandeirantes, ou seja: tomar as terras dos índios e entregá-las a colonos endinheirados. Diferem apenas na metodologia.
Os bandeirantes da época colonial usaram armas de fogo para invadir aldeias, incendiar malocas, roubar terras e escravizar índios. Já os bandeirantes dos tempos modernos utilizam a pena para escrever artigos e editoriais, invadindo mentes e corações, com preconceitos arraigados e surrados chavões. Ambos, no entanto, se igualam porque justificam a usurpação das terras e, para isso, tratam os índios "como se fossem porcos do mato", na expressão do padre Antônio Vieira.
Dois desses 'bandeirantes da pena' merecem ser citados aqui: Pio Penna Filho e Denis Lerrer Rosenfield. E isso porque os dois são doutores, professores universitários, com livros publicados, o que numa sociedade cartorial lhes confere o direito de cagar regras. (O corretor do world cismou com o verbo e, numa atitude pudibunda, propôs mudá-lo para 'defecar', quer dizer, o corretor quer defecar regras pra cima de mim. Não aceito. Mantenho o verbo original, mais apropriado para o caso).
A pena do Pio
Em entrevista à UnB Agência, Pio Penna Filho, ex-professor do Colégio Militar de Brasília, declarou que "o índio que vive no Brasil não é brasileiro, possui língua, cultura e território próprios" e, por isso, "a delimitação contínua de reservas indígenas é um equívoco, que compromete a soberania nacional". Citou a Bolívia, onde "já se falou até em se criar um estado em Santa Cruz de la Sierra, o que iniciaria um movimento capaz de fragmentar o país", omitindo, no entanto, que quem quer dividir a Bolívia são os fazendeiros e não os índios.
No caso da Raposa Serra do Sol, aonde a demarcação "afeta também as áreas produtivas", Pio considera que os ocupantes do território já passaram por processo de integração com a sociedade regional e foram reinventados como índios "por algumas ONGs internacionais com segundas intenções". Não são mais índios. "Toda a história do laudo dessa reserva Raposa Serra do Sol é controversa" ele declara, mas não indica quais os pontos controvertidos e sequer diz se conhece o laudo antropológico.
Apesar disso, estranhamente a matéria da UnB Agência lhe confere autoridade advertindo em manchetinha: "Penna NÃO recomenda manter enorme reserva de terra contínua em zona de fronteira". Quem é o Pio Penna no jogo do bicho para fazer recomendações desse tipo e dizer quem é e quem não é índio? A quem é dirigida sua recomendação? Por que não foram ouvidas opiniões diferentes de pesquisadores e dos próprios índios, como seria recomendável no bom jornalismo? Qual é autoridade que o Pio tem para piar dessa forma?
Nenhuma. Ele é, atualmente, professor de História das Relações Internacionais da USP, pesquisou sobre repressão e espionagem na época da ditadura militar, cometeu dois livros e vinte artigos em revistas especializadas. Nenhum deles sobre índios. Confessa, en passant, que já esteve na terra dos Cinta-Larga, em Rondônia, "habitada por índios 'hi-tech', que têm uma série de equipamentos eletrônicos, inclusive telefones via satélite?". E daí? Pio Penna não usa, ele também, esses equipamentos que não foram inventados por brasileiros? Por causa disso, ele deixa de ser brasileiro?
Nessa questão indígena, Pio Penna, que não cita o trabalho de um só antropólogo, substitui a pesquisa de campo por chavões e preconceitos, que circulam na sociedade brasileira. Suas reflexões não nos convidam a pensar, mas a reforçar esses preconceitos. E como disse o ministro Carlos Ayres Britto, relator do processo, "é muito mais fácil desintegrar um átomo do que desfazer um preconceito".
Mais um pio
A mesma lenga-lenga e o mesmo blá-blá-blá são repetidos pelo outro bandeirante da pena, Denis Lerrer Rosenfield, em artigo publicado em O Globo dois dias antes da reunião do STF, intitulado 'Aculturação e Integração'. Ele simplifica - ingenuamente? - a questão, jurando que existem apenas duas abordagens: "a da demarcação contínua, defendida por aqueles que querem impedir o contato dos índios com a sociedade brasileira, e a da demarcação descontínua, que advoga o intercâmbio entre as populações indígena, mestiça e branca".
Quanta simplicidade! De onde ele tirou essa idéia de que nós, que defendemos a demarcação contínua, queremos "manter os indígenas separados dos demais brasileiros, como se fosse possível voltar a um estágio pré-cabralino?". Ele não cita as fontes. E não cita, porque elas não existem. Ele inventou isso por achar que dessa forma fica mais fácil combater os direitos constitucionais dos índios. Suas leituras sobre a matéria estacionaram nos anos 1950.
Da mesma forma que Pio, Rosenfield acredita que "a indumentária, o dinheiro, a língua, a escola e a religião solapam os fundamentos mesmos dessas culturas indígenas", e que "a moderna civilização brasileira não pode ser barrada por uma política indigenista", pois se trata de "um processo irreversível". Usando categorias já criticadas pela antropologia brasileira, ele avalia que hoje, "a demanda, no caso, é por postos de saúde, com enfermeiras, médicos e medicamentos e não pela volta do pajé".
Volta do pajé? É. Ele escreve assim mesmo, com desdém, opondo uma coisa a outra. Fica evidente o desconhecimento do autor sobre o cotidiano das aldeias e sobre o papel exercido atualmente pelos agentes indígenas de saúde, incorporando novos conhecimentos e a medicina tradicional do pajé, que em muitos casos se mostra de extrema eficácia. Não percebe que da mesma forma que um índio pode usar o português e sua língua indígena, pode também recorrer ao pajé e ao médico, dependendo do caso. As duas línguas e as duas medicinas não são incompatíveis, apenas têm funções diversas.
Denis Rosenfield é doutor em filosofia pela Universidade de Paris I e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele pesquisa vejam só o conceito de mal, ética e metafísica, e publicou livro sobre o direito à propriedade. Em parceria com meu Deus do céu Yves Gandra escreveu sobre "a democracia tributária e sobre Descartes e as peripécias da razão". Sobre índios, nada! Está tudo explicado.
De que serviu estudar tanto pra dizer tanta besteira sobre aquilo que não conhece? Quantos livros lidos, para quê? Para usar inteligência e energia contra os interesses históricos e constitucionais dos índios? Os dois, na verdade, não passam de intelectuais orgânicos do agronegócio e dos arrozeiros. Estão interessados em justificar o projeto dos senadores Augusto Botelho (PT-RR que vergonha!) e Mozarildo Cavalcanti (PTB RR vixe, vixe!) que pretendem reduzir as terras indígenas de Roraima. Felizmente, os ministros do STF não foram na conversam fiada deles. "Nós, aqui, estamos desfazendo um preconceito multissecular, com o mais depurado humanismo que faz avançar a democracia racial", declarou o relator Carlos Ayres, do STF. Ainda bem!
*José Ribamar Bessa Freire é jornalista e escreve para vários jornais brasileiros.
Fonte: www.patrialatina.com.br
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