Por Gustavo Barreto, especial para o Fazendo Media
Meios de comunicação de grande circulação no Brasil têm apontado, seja por meio de programas de "humor", seja por meio de reportagens "sérias" e "fundamentadas", que a Venezuela se arma com o objetivo de invadir nações vizinhas - incluindo, claro, a Amazônia brasileira.
Raul Reyes (foto), homem forte da diplomacia nas FARC, é assassinado por narcogoverno que domina a Colômbia. Imagem: FARC-EP
É extremamente curioso, para não dizer patético, que quando um outro país, armado com milhões de dólares pelos Estados Unidos [leia abaixo os números], decide invadir a Amazônia e declarar que o fez sem nenhum sentimento de culpa, todos os programas jornalísticos ou humorísticos se calem. Exatamente o que se passou na atual crise nos Andes.
A Colômbia, que recebe o maior financiamento militar dos Estados Unidos em toda a América Latina e Caribe, invadiu - e admitiu que o fez - a Amazônia pelo lado equatoriano. Não contente, fez uma investida militar e bombardeou um acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia - Exército do Povo (FARC-EP), assassinando um dos líderes que mais buscava o diálogo com as potências militaristas do Norte e de seu país. Outras 16 pessoas foram mortas enquanto estavam dormindo. "Não são boas as notícias", sentenciou o insuspeito ministro das Relações Exteriores da França, Bernard Kouchner, que compõe um governo de direita em seu país [leia mais à frente as reações internacionais].
Em 2000, o então candidato à presidência dos EUA George Walker Bush declarou em debate com Al Gore que "os países em desenvolvimento com imensas dívidas externas devem pagá-las com terra, com riquezas. Que vendam suas selvas tropicais". Esta observação, que é relativamente bem aceita dentro do espectro político conservador americano, não causou qualquer reação no Brasil - muito menos a atenção dos humoristas de plantão, que continuavam a ridicularizar desde então a figura do presidente legitimamente eleito, re-eleito e novamente re-eleito Hugo Chávez. Esta mentalidade é a principal causa de invasões como a que ocorreu no último sábado (1/3).
Governo fechou alternativas pacíficas
Os acontecimentos que serão descritos pela imprensa alternativa neste episódio da incursão de Alvaro Uribe, presidente colombiano, no Equador, deixarão transparente que, como declarou Raul Reyes em 2005, as FARC não fazem a guerra pela guerra. Fazem após dezenas de tentativas de negociação pacífica - todas respondidas com bombas e tiros [veja o episódio de 1984 mais à frente]. Todas respondidas com a força. As portas da política institucional foram fechadas e a oposição democrática precisou passar por distintos massacres para se convencer disto. [O jornalista Nuno Ramos de Almeida aponta mais à frente quais foram estas tentativas].
Segundo o site da revista " Resistencia ", veículo oficial de comunicação das FARC-EP, a melhor homenagem que poderá ser feita a todos os combatentes assassinados será "não cessar o esforço em favor das trocas humanitárias dos reféns", bem como "continuar o propósito pacifista e de construção de uma democracia efetiva com justiça social".
O presidente Alvaro Uribe, como poucos que se informam apenas pelas redes privadas de TV sabem, já esteve na lista de narcotraficantes da Drugs Enforcement Administration dos Estados Unidos, a DEA. O gerente da campanha presidencial de Uribe, Pedro Juan Moreno Villa, importou em 1997 e 1998, por meio da empresa GMP Produtos Químicos, 50 mil quilos de permanganato de potássio ( saiba os números aqui ). A GMP foi a maior importadora do produto de 1994 a 1998, quando Uribe era governador do Estado de Antioquia e Moreno era seu chefe de gabinete.
A importação chamou a atenção da agência antidrogas americana pois, sem este produto, não é possível fazer a cocaína. Estes compostos são chamados de precursores químicos e seu controle é difícil, pois também são utilizados em outros produtos industriais. No entanto, destaca-se que sem estes precursores químicos não há droga. E, como destacam os especialistas, estes precursores não são produzidos nem na Colômbia, nem no Peru, nem na Bolívia. São importados.
O detalhe é que o esforço da Comissão de Entorpecentes das Nações Unidas, que se reuniu recentemente em Viena para debater o polêmico tema dos precursores químicos, luta para "evitar que o anidrido ácido e o permanganato de potássio que se comercializa não sejam desviados por canais ilegais à fabricação de heroína e cocaína, respectivamente". E se o produto for efetivamente comercializado por canais legais, há garantia de que será usado legalmente? Não na Colômbia.
A imprensa igualmente não se preocupa em perguntar - e relembrar - por que o maior importador de permanganato de potássio da Colômbia entre 1994 e 1998 - segundo o próprio DEA - era o braço direito de Uribe por muito tempo e onde ele se encontra atualmente. São questões pertinentes e, no entanto, continuamos sem respondê-las.
Exército colombiano recebe maior ajuda americana no Ocidente
Mais curiosa ainda é a omissão da imprensa internacional de grande alcance acerca do financiamentoamericano do Exército colombiano. Em 1997, enquanto a DEA suspeitava dos navios com precursores químicos com destino à Colômbia, a Casa Branca (governos Clinton e depois Bush Jr.) aumentava brutalmente o apoio militar ao país. De US$ 50 milhões, passou para US$ 290 milhões em 1999.
Neste ano, a Colômbia era nada mais nada menos que o país que mais recebia ajuda militar dos americanos, ganhando nos números de qualquer outra Nação e deixando a Turquia para trás. As consequências são óbvias: cresceu no mesmo período para 20 por dia os assassinatos políticos [vejam um relato sobre o tema mais adiante].
Os motivos da crescente militarização das FARC é um fator diretamente relacionado à militarização do próprio Estado colombiano, com a crescente ajuda externa. Armam-se para se defenderem, pois como poucos conhecem a realidade da selva colombiana e a ingerência dos militares e paramilitares. A Colômbia se tornou nos anos 1990, segundo organizações de direitos humanos, o país mais violento de todo o hemisfério ocidental. O aumento das atrocidades é proporcional, ano após ano, ao aumento do investimento militar.
Isso nos diz um pouco sobre o caráter da seriedade da imprensa em relação à sua preocupação com assuntos como narcotráfico, direitos humanos e soberania nacional.
Guerra química: danos são imensuráveis
A fumigação, guerra química dos governos colombiano e americano, desalojou centenas de comunidades e provocou perdas econômicas e socais incalculáveis. Tudo sob o pretexto do combate às drogas na ponta - e não na estrutura. A força empregada pelo Estado acaba por eliminar qualquer chance de os camponeses locais utilizarem as milenares técnicas da agricultura familiar sustentável para sobreviverem e, inclusive, contribuírem no controle das drogas. Como já destacamos, segundo a ONU, sem a importação de precursores químicos não há a mínima hipótese de produção de drogas pesadas.
Ainda de acordo com analistas da imprensa colombiana, o processo de fumigação já trouxe resultados: a expulsão dos camponeses pobres da terra para privilegiar investidores estrangeiros e elites colombianas. A execução da fumigação obedece a uma tendência internacional adotada pelas grandes transnacionais: a terceirização do trabalho sujo. Paramilitares e empresas terceirizadas são contratadas para substituir o Estado e o exército nacional. Desta forma, o Estado se exime da responsabilidade, contribuindo para o avanço do paramilitarismo e do descontrole neoliberal, com fiscalização nula e controle social próximo a zero.
"Ainda que se quisesse dar crédito aos argumentos americanos em prol de uma guerra contra as drogas, os supostos motivos são escandalosos. Basta imaginar a reação a uma proposta de que a Colômbia ou a China lançasse programas de fumigação na Carolina do Norte para destruir colheitas subsidiadas pelo governo para produzir produtos ainda mais letais - que, ainda por cima, elas não só são obrigadas a importar, mas também a permitir sua propaganda junto a populações vulneráveis", compara o escritor Noam Chomsky (Editora Campus, 2004).
Neste cenário de submissão explícita a interesses externos, se posicionam de forma contundente os presidentes Hugo Chávez (Venezuela) e Rafael Correa (Equador), apoiados diplomaticamente por outras nações da região como Argentina, Bolívia e Brasil.
Pesos e medidas
A imprensa brasileira deforma, a partir da omissão desta realidade e da submissão cultural de parte dos editorialistas, o contexto internacional da crise. Basta imaginar o que aconteceria caso o presidente Hugo Chávez decidisse invadir o território norte-americano e bombardear o país de Bush Junior, sob o pretexto de executar uma ação anti-terrorista. Não é muito difícil vislumbrar o cenário diplomático e midiático que teríamos.
Mas quando ocorrre o contrário - um país militarizado pelos EUA invade outra nação e bombardeia seu território -, grande parte da imprensa culpa o governo da Venezuela por intervir indevidamente na crise. É de fato um momento de vergonha para jornalistas que se prestam a esse papel.
As falsas polêmicas começam, então, a surgir: Uribe teria "avisado" a Rafael Correa sobre o ataque. "O governo de Bogotá afirmou que o presidente do Equador, Rafael Correa, teria sido informado da ação, mas não especificou se a informação foi passada antes ou depois do ataque", destaca o jornal O Estado de S. Paulo em edição na Internet . Perceba a mediocridade da afirmação: se tivesse sido avisado, pela própria reação de Correa, evidentemente que Uribe não estava autorizado a realizar o ataque militar. É tão óbvia esta dedução quanto é patético que um jornal da tradição do Estadão coloque isto em questão.
Poucos jornalistas perguntarão, por exemplo, de onde veio a informação, para a Colômbia, de que estariam naquele local guerrilheiros das FARC. Quem as forneceu? Por que informações do território equatoriano estariam disponíveis para o governo da Colômbia e quais satélites são responsáveis pela "dica"?
Quando um país poderoso como os EUA, investindo 450 bilhões por ano na militarização do poder estatal, decide apoiar financeira e logisticamente a Colômbia para invadir um país vizinho, poucos acreditam que há, aqui, uma notícia. Nem sequer acreditam que há uma questão. Quando o governo da Venezuela,deposse de informações do risco de intervenção externa - que agora poucos ousam declarar, como antes difamavam, ser "tese conspiratória" -, decide se defender, trata-se, aí sim, de uma "ameaça militar" e um ataque à "soberania nacional".
Uribe, aos olhos de qualquer analista bem informado sobre a região e até mesmo aos olhos de setores bem informados do governo norte-americano, é chefe de Estado de um narcogoverno. Chávez, por dizer o que a imprensa omite, é um "louco" e "polemista".
A este mesmo narcogoverno, que tem sua evidente relação com paramilitares omitida pela imprensa internacional, é dada o benefício da dúvida e o crédito pelas declarações de que há provas estruturais acerca da relação entre FARC e os governos de Correa e Chávez. A descrição da imprensa é patética: "Teriam sido encontrados documentos, como e-mails e atas, em que estariam registradas conversas do líder das FARC morto com o ministro da Segurança Pública do Equador, Gustavo Larrea." (OESP). O diretor da Polícia Colombiana, general Óscar Naranjo, também disse nesta segunda (3) que deseja "estabelecer com claridade este estado de relações [entre as FARC e o Equador]", que afetaria a segurança nacional colombiana.
Se procurasse um pouco mais, a mal intencionada ou mal informada imprensa brasileira teria encontrado emails do líder Raul Reyes com toda a imprensa internacional - o que teria igualmente desmascarado a aposta hipócrita no confronto por parte do governo colombiano. Também acharia emails dele com o ministro do Exterior da França [saiba mais abaixo].
O motivo é muito simples: Raul Reyes sempre deu entrevistas por email e mantém conversas constantes com os governos envolvidos no conflito. Negocia, porque a saída das FARC é a negociação. Como destacam diversos diplomatas nesta segunda (3), Reyes era o homem forte da diplomacia e responsável pela maior parte das libertações unilaterais de reféns - ou seja, libertações sem qualquer contrapartida do governo colombiano.
Imprensa alternativa terrorista?
Talvez o governo colombiano considere a imprensa alternativa também terrorista, por reproduzir centenas de entrevistas de Raul Reyes - a começar pelo jornal Fazendo Media e pela revista Consciência.Net, tendo esta última reproduzido em abril de 2005 entrevista com o guerrilheiro Reyes. Ele afirma em um trecho: "Temos em nosso poder três prisioneiros de guerra que são oficiais da CIA, de nacionalidade norte-americana, capturados em missão militar na área de guerra. Derrubamos seu avião. O projeto paramilitar também tem a mesma origem: a oligarquia colombiana e a ingerência a mão armada do Império dos Estados Unidos de América do Norte". A captura de integrantes da CIA informada por Reyes - e como estes aviões chegaram à Colômbia - não despertou o interesse da imprensa de grande circulação.
"A Comunidade Internacional sabe de nossa disposição e boa vontade de realizar a troca de prisioneiros (...) Nossa principal bandeira tem sido e continua sendo a convicção profunda e sincera de que é possível alcançar as transformações fundamentais que Colômbia precisa, por vias distintas à guerra entre irmãos de uma mesma Pátria. E nisto seguimos insistindo. No entanto, sempre temos encontrado como resposta a guerra feita pelos sucessivos governos contra o povo", completa Reyes nesta entrevista publicada nos sites terroristas (segundo o entendimento de Bush e de Uribe) Pravda e Consciência.Net .
O diretor de redação do Pravda em português, Timothy Bancroft-Hinchey, lamentou o ocorrido. "Raul Reyes (...) morreu sabendo que tinha razão, porque lutava para uma causa social e política, que procurava a paz e uma solução negociada ao conflito mas que não iria deitar fora os esforços feitos ao longo de décadas, de construir uma sociedade progressiva na Colômbia, por se render. Raul Reyes e seus companheiros morreram como heróis. A luta continua, a causa continua, seus sonhos e projectos continuam e o seu desaparecimento será apenas físico e nunca em vão", afirmou.
O simulacro que o governo colombiano tenta criar é o do rompimento absoluto com as FARC, posição tida na própria Colômbia como intransigente, para iniciar um conflito na região andina e fortalecer a imagem do governo contra uma suposta "ameaça externa". Integra, assim, o plano de militarização para justificar os milhões que recebe dos EUA, informações de conhecimento público que a imprensa, por algum motivo, não acha importante destacar.
Equatorianos se irritam com mentiras de Uribe
Sobre a acusação de ligação estrutural com as FARC, o embaixador de Quito em Bogotá, Francisco Suescum, vai direto ao ponto: "É uma mentira. O governo do Equador, o presidente Rafael Correa, o ministro da Segurança Interna e Externa, Gustavo Larrea, jamais poderiam ter uma atitude desta natureza" ( AFP ).
Foram apresentadas pelo governo colombiano duas cartas de Reyes, ainda sem sua veracidade comprovada e questionada pelo vice-ministro da Defesa do Equador, Miguel Carvajal. A imprensa destacará apenas o trecho em que supostamente o governo equatoriano pretende oficializar as relações com as FARC, a reconhecendo como uma organização representativa. Não há novidade:Chávez o faz publicamente há muito tempo. No documento há o seguinte trecho [de Reyes sobre o governo equatoriano]: "[os representantes do Estado equatoriano] têm claro que Uribe representa os interesses da Casa Branca, as multinacionais e as oligarquias, o consideram perigoso na região". E assim pensam muitos analistas, como por exemplo o professor do MIT e analista internacional Noam Chomsky, que o demonstra com números e fatos contundentes.
Ou seja, Reyes - caso a carta seja verdadeira - repercute as ações de negociação entre um governo e uma organização popular, feita em igualdade de condições. Francisco Suescum, apontando o que Reyes afirma, notabilizou na imprensa que esta foi uma "ação de guerra". Durante conversa com jornalistas, Suescum chamou a operação da Colômbia de "massacre bárbaro, ação contra a paz, contra a vida e contra os direitos humanos".
Além disso, segundo a Folha Online, Correa levou efetivamente à frente uma ação descrita na suposta "carta-denúncia" de Reyes: "Após reforçar a fronteira do Equador com o envio de mais tropas, o presidente Correa quer apresentar uma reclamação contra a Colômbia na Corte Internacional de Justiça de Haia (na Holanda) devido ao uso do herbicida glifosato, maléfico à população e à natureza, nas fumigações aéreas de combate às drogas na divisa entre os dois países. Segundo o Equador, o glifosato não só destruiu plantações de coca e papoula no lado colombiano, mas, levado pelo vento, causou danos irreparáveis a povoações e ao meio ambiente do lado equatoriano".
As denúncias não são de Correa apenas - e não são de hoje. A fumigação, descrita acima neste artigo, é uma prática que acabou com toda a biodiversidade local e, conforme explica Correa, se espalhou pela região. O glifosato (glicina + fosfato) é um herbicida sistêmico não seletivo - o que significa que ele mata qualquer tipo de planta.
Já se sabe, por exemplo, que na Argentina o uso massivo do glifosato provocou o aumento da resistência dos microorganismos tidos como pragas, levando a um aumento progressivo das doses usadas e, assim, à perda de fertilidade do solo. O herbicida elimina também as bactérias indispensáveis à regeneração do solo, por exemplo. Em terras em que há o intenso uso de glifosato, sob o pretexto do combate às drogas, a expulsão dos camponeses é apenas uma questão de tempo.
Reação internacional
Nesta segunda (3/3), vários países se manifestaram contrários à ação de guerra do Estado colombiano. O ministro de Relações Exteriores da Itália, Massimo D'Alema, afirmou que seu país está "preocupado e perplexo" com a operação militar em solo equatoriano. "A operação militar colombiana no exterior nos surpreendeu muito e nos deixou preocupados e perplexos. Uma operação deste tipo entra em contradição com o esforço de abrir um canal diplomático", criando "graves tensões na América Latina", declarou D'Alema, que visitara o país há poucos dias.
Já o governo argentino se disse "consternado e preocupado" com o que considera uma "violação da soberania do Equador por parte da Colômbia". O chanceler argentino Jorge Taiana abriu em caráter emergencial um canal de diálogo com os governos do Brasil, Chile, Equador, Colômbia, Paraguai e Venezuela. Taiana definiu que os diplomatas argentinos nestes países devem "se manter ativos e em permanente contato para troca informações, realizar consultas e trabalhar para coordenar uma posição comum" ante o virtual conflito.
Igualmente, a presidente chilena Michelle Bachelet questionou a incursão colombiana no território equatoriano. A líder chilena exigiu uma explicação do governo colombiano, que no entanto se nega a comentar o assunto e foca toda a sua atenção no tema dos documentos encontrados em computadores pertencentes às FARC. "Isso nos preocupa muito. Lamentamos e não podemos estar de acordo com que não se respeite a fronteira, por qualquer razão e, sobretudo, pelo Equador ter se sentido agredido com esta intervenção", destacou Bachelet.
A declaração diplomática mais contundente e importante, no entanto, foi a do ministro das Relações Exteriores da França, Bernard Kouchner. A França é interessada na libertação da franco-colombiana Ingrid Betancourt, ex-candidata à presidência no país andino. "Esta não é uma boa notícia", sentenciou Kouchner sobre a morte de Raul Reyes, que o diplomata classifica como "o homem com quem falávamos e mantínhamos contatos". Talvez, ironicamente, a Colômbia também ache emails entre Kouchner e Reyes e decida classificar a França como país terrorista. Talvez isso nos diga um pouco sobre o caráter político da divulgação destas cartas específicamente, em que Rafael Correa e um ministro do Equador são citados.
As relações políticas com grupos como as FARC, goste ou não a imprensa internacional, são necessárias e uma realidade local. Para o leitor, restam duas opções: ignorar a complexidade do sistema político colombiano [leia mais abaixo], com a corrupção do narcotráfico inserida em todos os poderes estatais desde sua Presidência, ou ter um olhar mais profundo sobre a necessidade da saída negociada - base dos dois documentos divulgados pelo jornal El Tiempo ( aqui e aqui ).
Base teórica para um cenário complexo
O documento, de fato, parece serdeReyes.Isto porquehá citaçõesacadêmicas, algo que é corrente nas mensagens do guerrilheiro com a imprensa internacional. Cita, por exemplo, um professor doutor da Universidade Nacional da Colômbia (UNAL), que explica: "A verdade é que 'status político' é algo distinto de terrorismo. Na realidade, existem grupos políticos e Estados que incorrem de diversos modos em atos terroristas, sem que percam nem sua condição de Estados nem a de grupos políticos rebeldes ou insurgentes (...) Os Estados Unidos incorreram e incorrem em atos terroristas contra a população civil com o pretexto de combater o terrorismo global. Tais atos ilegais e inconstitucionais são objeto hoje de investigação por parte do FBI e outras agência oficiais contra tais ações e as da CIA, por atividades realizadas não só na Base de Guantânamo, como também em outro lugares do mundo, como Abu Graibh".
Reyes destaca que os EUA não aceitam a Convenção de Genebra. Citando um relatório da Anistia Internacional, Reyes assinala que a qualificação de terroristas dada às FARC e ao Exército de Libertação Nacional da Colômbia (ELN) obedece aos ditames, à ingerência indevida dos EUA, ao desconhecimento por parte destes do princípio da autodeterminação dos povos e à condição imperial de seu governo.
Reyes explica ainda que nem sempre as relações entre Correa-Chávez estiveram boas, pois Uribe chamava Correa constantemente para tentar avançar com sua atitude de confronto com Chávez. Em grande parte sem frutos.
Há reféns políticos, destaca Reyes, em poder do governo colombiano. "Os reféns se tornaram uma mercadoria política, isto deveria doer em todos, tanto colombianos como estrangeiros. Utilizar vidas humanas e o seqüestro, semelhante crime de lesa humanidade, para ganhar dividendos políticos, é muito triste", considerou o ministro da Defesa da Colômbia, Juan Manuel Santos, contando que a imprensa internacional irá ignorar que ele mantém reféns políticos sob o poder do Estado, incluindo insurgentes das FARC e da ELN, sem qualquer direito de defesa e incomunicáveis - métodos ensinados pelos treinamentos que a CIA realiza oficialmente no país.
A reação na Colômbia é mais ponderada do que a reação desproporcional de um Estado militarizado e com generais sedentos pela guerra. Esta reação do narcogoverno de Uribe foi ampliada pela imprensa mundial de forma leviana. No próprio país, pessoas com grande conhecimento de causa pediram calma, como é o caso do ex-congressista colombiano Luis Eladio Pérez, recentemente libertado pelas FARC.
Outra ex-congressista, Gloria Polanco de Lozada, considerou positivo que as FARC tenham declarado que a morte de Raul Reyes não afetará o processo que busca a troca de todos os seqüestrados por rebeldes presos. As FARC tem libertado reféns de forma unilateral, mesmo com as ameaças de ataques militares - que se confirmaram agora - há anos.
Tanto Pérez como Lozada lamentaram a situação entre os três países e defenderam que a crise seja resolvida pela via diplomática. Segundo a Folha Online, o ex-legislador reforçou sua gratidão a Chávez e à senadora colombiana opositora Piedad Córdoba por suas gestões para a troca humanitária e afirmou que sua libertação e a de seus companheiros não teria sido possível sem a intervenção de ambos. Eles foram libertados na quarta-feira, dia 27 de fevereiro, sem o holofote da mídia internacional.
Impunidade e injustiça social alimentam violência
O jornalista português Nuno Ramos de Almeida, que já visitou muitas regiões do país e mantém críticas às FARC, destacou em setembro de 2007 a injustiça que reina na Colômbia. "Estive em aldeias em que os paramilitares entraram e mataram à frente de toda a gente dezenas de pessoas. Houve homens que foram serrados com moto-serras, mulheres violadas na frente dos filhos. A impunidade destes grupos é tão grande que a jornalista Jineth Bedoya, de um dos maiores jornais colombianos ("El Espectador"), foi raptada, agredida e violada por dezenas de presos paramilitares, durante uma visita que fazia a uma cadeia de "alta-segurança" de Bogotá".
Nenhuma matéria ou notinha de rodapé na imprensa internacional, cabendo este tipo de informação aos meios alternativos. Neste caso, os "direitos humanos" são, na visão do poder hegemônica, direitos políticos, concedidos segundo critérios específicos definidos pelo poder estatal colombiano, injusto e autoritário.
Em 1984, repressão brutal minou alternativas pacíficas
Nuno Ramos confirma que grande parte destes crimes continuam a acontecer durante o mandato do atual presidente colombiano Uribe, que "acabou com as negociações de paz iniciadas pelo anterior presidente Pastrana". Nuno completa: "Conversações difíceis, até porque a desconfiança impera nos dois lados. Na última vez que a guerrilha abandonou as armas, no ano de 1984, e acreditou nas promessas de democratização do governo da Colômbia, foram assassinados, pelos esquadrões da morte, 3.000 militantes da Frente Patriótica (partido criado pelas FARC), entre os quais vários senadores, deputados e dois candidatos presidenciais."
O jornalista português comenta que costuma-se acusar a guerrilha colombiana de não passar de um bando de traficantes de droga. "Sobre a cocaína na Colômbia é preciso esclarecer que ela atinge toda a sociedade. Durante apresidência de Gavíria (1990-94), foi encontrada droga no avião oficial que aterrou nos Estados Unidos; os colombianos chamam, por piada, a Força Aérea de "Cartel Azul", porque quando dois aviões militares foram fazer manutenção em Miami, encontraram-se duas toneladas de coca; recentemente os paramilitares liquidaram o seu antigo chefe Carlos Castaño, devido a uma divergência de negócios", informa.
O jornal O Estado de S. Paulo , a exemplo do comportamento da imprensa internacional de grande alcance, optou por ignorar a complexa realidade das selvas dos Andes e sugere que as FARC controlam todo o processo de produção das drogas - ignorando, como destacamos, que o processo de manipulação da coca é artesanal, impedindo o domínio sobre o processo industrial. E, igualmente, deixam para seus leitores uma visão simplista do conflito - adversa da realidade -, reforçando a tese maniqueísta do bem contra o mal e posicionando as FARC como o mal extremo e o narcogoverno de Uribe como comprometido com a "luta contra o terrorismo".
Nesta relação entre a guerrilha e a droga, a relação é igualmente complicada, confirma Nuno. "Uma vez perguntei a um comandante das FARC, o comandante Jairo, sobre a relação entre a guerrilha e os traficantes. Ele respondeu-me que "a guerrilha existia muito antes da droga e que a sua razão de vida não é o tráfico, mas que a guerrilha sobrevive com o apoio dos camponeses e, como tal, não vai impedir os camponeses de cultivar a coca". Embora as FARC afirmem ser favoráveis a uma política de substituição de culturas, é também verdade que os guerrilheiros cobram uma taxa sobre o negócio da droga".
Não há, no entanto, uma relação direta com as drogas - e sim com os camponeses que cultivam a matéria-prima que gera, após um extenso processo industrial que envolve objetivamente os países industrializados, a droga.
Nuno finaliza sua observação com sua opinião sobre o conflito: "É verdade que a droga não fez a guerrilha, mas também é verdade que o pó e o seu dinheiro corrompe tudo o que toca. Esta guerra sem fim que se vive na Colômbia tornou a luta armada dos camponeses numa guerrilha sem revolução, em que o desespero os leva a considerar qualquer forma de luta. Se em 1984, o líder guerrilheiro Marulanda condenava os sequestros como contrários à luta política, hoje, os raptos normalmente chamados "pescas milagrosas" são consideradas formas normais de luta. Como a esquerda aprendeu à sua custa há muito tempo, os fins não justificam os meios e o facto do governo da Colômbia ter presos em condições inumanas milhares de militantes de esquerda não pode justificar raptos como a da candidata presidencial Ingrid Betancourt". [ original aqui ]
Longe de um final feliz, a "crise" atual é decorrente de um processo que se intensifica nos anos 60 e cujas conseqüências são um Estado corrompido e os principais líderes do narcotráfico com o poder estatal nas mãos ou atuando com a conivência explícita deste (impunidade). As FARC, o bode expiatório deste lucrativo setor da economia (o tráfico de drogas e armas, que não podem ser desvinculados), continuam a resistir e a morte de Raul Reyes não impedirá que a luta desta organização continue e nem que o processo de paz seja interrompido. Governos são eleitos e depostos. A organização popular, ao contrário, é bem mais duradoura e resiste às imprecisões da imprensa internacional e aos ataques à soberania popular das nações.
[ http://www.fazendomedia.com/2008/internacional20080303b.htm ]
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